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Vamos repetir o estribilho de que a realidade ultrapassa
a ficção e, uma vez mais, mencionar as enxaquecas de que sofre o comum dos
escritores em busca de enredo que lhe permita escrever o sonhado bestseller e escapar de vez ao martírio de
uma inspiração que demora, e as mais vezes nunca chega.
O dia-a-dia, esse não sofre de writer's block, enredos e peripécias tem de sobra. Conte-se então o
caso verídico e, pelo que sei, neste momento ainda sem desenlace.
Pai, mãe, duas raparigas ainda nos vinte, boa gente, vivendo nas alturas confortáveis
em que os problemas de dinheiro se limitam ao aborrecimento muito relativo das
flutuações da Bolsa, já que a base iguala a solidez das pirâmides do Egipto.
O combinado era passarem o Natal no apartamento que têm
em Paris, pelo que a mãe e a filha mais nova saíram de Amsterdam na semana
anterior. A má sorte fez a sua entrada quando já tinham passado Arras e, sem
explicação plausível, o carro se despistou matando a mãe.
A filha escapou com ligeiros ferimentos, mas facilmente
se imagina o ambiente em que passaram o Natal.
A 26 de Dezembro a má sorte voltou. A filha mais velha
recebeu o resultado do diagnóstico que aguardava: no ponto em que se encontra a
doença que lhe constataram terá de ser submetida a uma transplantação de
células-tronco. O doador mais indicado é o pai.
Só ele, pobre e desesperado amigo, sabe que dentro em
breve, imparável, a má sorte de novo lhes
vai bater à porta quando se negar a ser o doador de que a filha precisa, e tiver
então de confessar que nenhuma delas lhe pertence, ambas geradas por alguém que
desconhece e com quem a mãe o enganou.
O enterro está marcado para de amanhã a oito.