Vai adiando, diz-se que talvez
ainda sobre tempo, mas tem horas em que pagaria para poder fugir de si próprio,
com a ideia de que se desconhece, possesso de medos que chegam não sabe donde, com
intenções que nunca descobre.
Ignora quantos meses ainda terá
fôlego, ou como tantas vezes antes vai cair no desalento. Só que desta seria
final, não se vê capaz de limpar a lousa e recomeçar, trazer à lembrança os
rostos, os nomes, os momentos, o que parecia certeza e era ilusão, noutras ocasiões
certeza mesmo, com efeitos de cacetada.
Porque sabe que não há bóia a que
se possa agarrar, força que o livre do garrote da memória, ou se ainda terá
paciência para fingir que continua à espera do que nunca virá, pois só foi
assim no sonho, a esperança de que pelo menos uma vez pudesse acontecer e
encontrasse salvação.
Perde-se a rever, a recordar,
fazendo inventários, tentando descobrir explicação para os altos e baixos, a
querer lógica onde tudo parece contraditório, irreal, desnorteante. Os momentos
que deveriam ser de repouso são de cansaço, impedem-no de ver claro em si
próprio, nos outros, no que aconteceu e o que desejou, o que estava ao alcance,
o que parecia real e era só miragem. Numa ou noutra altura quase consegue
ver-se apenas no agora, um curto instante, esquecido das humilhações, da
crueldade sua e alheia, das horas de desespero, do terror que dá a vista do
precipício. Mas é alívio de pouca dura, o pensamento logo o devolve para o que
foi, obriga-o a chamar o que quer esquecer, parecendo que assim o avisa de que
tudo tem preço e terá de pagar.
O mais que guarda são vergonhas e
sentimentos de culpa, como se fosse ele o alvo preferido de não sabe que
poderes ocultos ou, tal um escravo numa galera, o tenham posto à sujeição de
vontades alheias, que dispõem, o forçam a proceder de um modo razoável na
aparência, insensato na prática.
Marcam-no ferretes de que não se
livra, vexames que lhe mostraram como é fácil perder a cabeça, dar o passo
irremediável. Umas vezes salvou-se por um triz, um negro de unha, noutras
acudiram-lhe, desde então olha com pena para o rapaz que foi, o homem na meia
idade, os medos que não conseguiu vencer, as aventuras que sonhou, a crueza das
que viveu.
Sofreria menos se conseguisse parar
o fingimento e calar as vozes que só ele ouve, pôr fim às imagens que desfilam
sem descanso, como se a vida, pelo menos a sua, tenha de ser um repisar de
raivas e misérias, lutas, esperas, decepções, armadilhas, escuridão, becos sem
saída.