domingo, março 31

Bilhetes (6)


Puta de vida, a que tantos levam e mereciam melhor. Sempre à espera, sempre à espera da cunha, do jeito, de ver se o Fonseca cumpre o que prometeu, se o Aníbal traz a encomenda, se o banco espera mais uns dias até que as coisas se arranjem, ou se desta vez a Raspadinha… Nem seria preciso um prémio grande, cinco mil já dava.
E a espera continua, a cunha não será metida nem o jeito dado, o Fonseca vai esquecer como sempre, e o Aníbal, também como sempre, dirá que não conseguiu, mas amanhã não falha, certeza certezinha a encomenda vem. E talvez o banco espere.

sábado, março 30

O 'Sempre em pé'



À medida que os anos correm vamo-nos desenganando, aprendemos que há verdade no provérbio e de facto nem tudo o que parece é, mas só os mais sábios ou melhor preparados para a vida sabem como se cria calo na alma, aceitam as decepções com um encolher de ombros e passam adiante.
São esses que deviam servir de exemplo, mas uma coisa é a sabedoria popular, outra e bem diferente a frieza com que uma vez o semelhante, noutras vezes o Destino, nos atiram pontapés tão certeiros que ficamos de rastos e a duvidar se voltaremos a ser quem éramos.
O Miguel Brunhoso é dos que ganhou calo. Da infância até agora, ainda longe da velhice, a sua vida é uma estonteante sucessão de altos e baixos, quedas e ressurreições, algumas tão extraordinárias que mesmo num romance de cordel pareceriam inverosímeis. Essas são as de que nós, seus amigos, estamos ao corrente, e lhe valeram a alcunha de ‘Sempre-em-pé’. Das outras fala por alto, como se receasse que entrando em detalhes diminuísse o brilho das suas vitórias.
Nem todos gostamos do Miguel, mas apreciamos-lhe a fibra, temos respeito pelo modo como enfrenta cada novo contratempo com redobrada coragem. Todavia, há um ponto em que alguns de nós temos dificuldade em acompanhar o seu raciocínio de que neste tempo de confusão em que o que era mau agora é bom, o feio se tornou lindo, o pecado é virtude, e já não se sabe com segurança quem é homem ou quem é mulher, fantasia ele a urgência de uma nova ordem que – palavras suas – restaure os valores tradicionais e reponha a sociedade nos carris sobre os quais, durante séculos, harmoniosamente rolou.
Não adianta contradizê-lo, menos ainda apontar-lhe que o tempo dos ditadores passou, o poder é hoje mais secreto e subterrâneo do que nunca, os que figuram de presidente nem sequer se esforçam a disfarçar que são pau-mandado. O Miguel, porém, recusa ouvir,  quanto a ele a coisa está por pouco, a raiva é muita e não faltam armas, nada adianta andarem os políticos a prometer melhorias e amanhãs que cantam, ou a assustar-nos com as tretas do clima, da poluição, dos oceanos de plástico, porque basta uma faúlha e vai tudo pelos ares.
Diz ele aquilo, mas é pose, sabe tão bem como nós que aqui e ali poderá arder uma central nuclear, um vulcão no oceano causar um tsunami, um terramoto matar centenas, mas entretidas como andam nenhuma sociedade quer abalos, mudanças ou revoluções, agora tudo se faz a sorrir e a gritar slogans, a agitar cartazes, ao ritmo de pandeiretas e tirando selfies.

quarta-feira, março 27

Bilhetes (5)


Do ponto de vista da evolução política a Holanda é neste momento um país interessante. Depois de a partir dos anos 60 ter acolhido grande número de emigrantes marroquinos e turcos, estes e os seus descendentes foram assimilados pela sociedade holandesa, um grande número ocupa posições de destaque nas artes, na literatura, nos meios de comunicação, na ciência, na medicina, no funcionalismo, sobressaindo entre eles o burgomestre de Roterdão e a presidente do Parlamento, ambos marroquinos.
Por certo há também a chamada ‘Mocro-mafia’, importante número de traficantes de droga, que se distinguem pelo número de assassinatos, e era esses que Geert Wilders queria que fossem deportados para Marrocos, caso tivessem ainda passaporte marroquino. Mas a política é a política, deturpar factos faz parte do jogo, acusaram Wilders de que queria deportar todos os marroquinos. O seu partido, o PVV, foi o segundo nas eleições de 2017, mas não foi chamado a participar no governo, sendo ‘democraticamente’ ignorada a opinião dos 1.300.000 cidadãos que nele tinham votado.
Desde então muito mudou, o governo de coligação tem-se mostrado incapaz de resolver importantes problemas, promete hoje nega amanhã, esquece, volta a prometer,  entusiasma-se em demasia com o clima, ninguém prevê vida fácil para nenhum dos partidos que o compõem. Entretanto, Thierry Baudet (1983) um jovem historiador tinha fundado em 2015 um novo partido de direita, Forum voor Democratie, que nas legislativas conheceu um inesperado mas modesto êxito, tendo ganho dois lugares no Parlamento.
Depois os moinhos moeram e, inesperadamente, porque talvez esteja em sintonia com a vontade de uma maioria, nas recentes eleições para o senado foi o partido mais votado, e muito provavelmente alcançará um bom resultado nas próximas legislativas. Todavia, o êxito do FVD, desagradou a tantos que causou uma estranha novidade: nas redes sociais, em manifestações da rua em Amsterdam e noutros locais, a extrema-esquerda e os activistas de vários credos do clima, das verduras, dos animais e da bondade universal pedem alto e bom som nada menos que a morte – sim, o assassinato - de Thierry Baudet. Assustou-se alguém?
Johan van Oldenbarneveld, um político que tinha ousado desafiar o poder foi enforcado em 1584. Teve de se esperar até 2002, quando Pim Fortuyn também mostrou que teria de haver mudança, e de maneira estranha apareceu um assassino que o liquidou. A respeito de Thierry Baudet as autoridades e os colegas políticos aconselham-no a que seja prudente e não descure a sua segurança.
As próximas legislativas serão em Março de 2021 e até lá muita água vai correr.

domingo, março 24

A vista do precipício


Vai adiando, diz-se que talvez ainda sobre tempo, mas tem horas em que pagaria para poder fugir de si próprio, com a ideia de que se desconhece, possesso de medos que chegam não sabe donde, com intenções que nunca descobre.
Ignora quantos meses ainda terá fôlego, ou como tantas vezes antes vai cair no desalento. Só que desta seria final, não se vê capaz de limpar a lousa e recomeçar, trazer à lembrança os rostos, os nomes, os momentos, o que parecia certeza e era ilusão, noutras ocasiões certeza mesmo, com efeitos de cacetada.
Porque sabe que não há bóia a que se possa agarrar, força que o livre do garrote da memória, ou se ainda terá paciência para fingir que continua à espera do que nunca virá, pois só foi assim no sonho, a esperança de que pelo menos uma vez pudesse acontecer e encontrasse salvação.
Perde-se a rever, a recordar, fazendo inventários, tentando descobrir explicação para os altos e baixos, a querer lógica onde tudo parece contraditório, irreal, desnorteante. Os momentos que deveriam ser de repouso são de cansaço, impedem-no de ver claro em si próprio, nos outros, no que aconteceu e o que desejou, o que estava ao alcance, o que parecia real e era só miragem. Numa ou noutra altura quase consegue ver-se apenas no agora, um curto instante, esquecido das humilhações, da crueldade sua e alheia, das horas de desespero, do terror que dá a vista do precipício. Mas é alívio de pouca dura, o pensamento logo o devolve para o que foi, obriga-o a chamar o que quer esquecer, parecendo que assim o avisa de que tudo tem preço e terá de pagar.
O mais que guarda são vergonhas e sentimentos de culpa, como se fosse ele o alvo preferido de não sabe que poderes ocultos ou, tal um escravo numa galera, o tenham posto à sujeição de vontades alheias, que dispõem, o forçam a proceder de um modo razoável na aparência, insensato na prática.
Marcam-no ferretes de que não se livra, vexames que lhe mostraram como é fácil perder a cabeça, dar o passo irremediável. Umas vezes salvou-se por um triz, um negro de unha, noutras acudiram-lhe, desde então olha com pena para o rapaz que foi, o homem na meia idade, os medos que não conseguiu vencer, as aventuras que sonhou, a crueza das que viveu.
Sofreria menos se conseguisse parar o fingimento e calar as vozes que só ele ouve, pôr fim às imagens que desfilam sem descanso, como se a vida, pelo menos a sua, tenha de ser um repisar de raivas e misérias, lutas, esperas, decepções, armadilhas, escuridão, becos sem saída.