"Certas histórias, mesmo comezinhas, só se podem contar de maneira satisfatória quando se lhes acrescenta um luxo de pormenores. A compreensão de outras necessita do apoio de referências: data, momento histórico, circunstâncias, antecedentes... Em vez da meia dúzia de folhas planeadas enche-se com elas um caderno. Há as que obrigam o narrador a valer-se aqui e ali de uma frase estrangeira, não somente para avivar a cor local, mas também porque a tradução, daninha e insuficiente, conduziria a um purismo caricato.
Mais adiante contarei como era meu hábito diário pedir a monsieur Antoine "Un grand crème et un croissant beurre, s'il vous plaît". Seria estranho escrever, recorrendo aos dicionários: "Senhor António, faça favor de me dar uma xícara grande de café com leite e um pãozinho (ou bolo) amanteigado em forma de meia lua." Além de não parecer a mesma coisa e fazer rir, até o cheiro e o sabor se tornariam outros na imaginação do leitor.
Algumas histórias, pois, já antes de contadas apresentam tantas exigências e obstáculos, que a gente se pergunta se valerá a pena ir por diante. Para quê, realmente? Além disso, casos como o que segue ocorrem todos os dias. Uns mais horrorosos; outros, ao contrário deste, requintadamente premeditados. Depois, no nosso tempo, a morte inesperada e violenta deixou de interessar, e nas estatísticas já ela provavelmente equilibra o tipo antigo da morte natural.
A razão e desculpa que me posso dar para prosseguir, será talvez a simpatia que sempre tive pelos romances policiais. Ou o fascínio com que leio a descrição de crimes e dos seus motivos. A surpresa de ter de admitir que não é preciso chegar a extremos para que qualquer de nós deite mão da navalha, da pistola ou do veneno."
in Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia - Quetzal, 2011