sábado, abril 30

Desapareceram os galhos

 

Devia ser o contrário, mas quanto mais visivelmente arrogantes, cheios de si, seguros do que julgam ter visto, que julgam saber e do que o mundo lhes deve, cônscios da sua importância, da alta craveira a que se elevam, da unicidade da pessoinha que são, mais me esforço para manter o sério.
Não vá você agora julgar que me refiro a ministros, banqueiros, cientistas geniais, escritores  candidatos ao Nobel. Com esses não tenho trato, vivem noutra rua. Falo de gente no meu dia-a-dia, o vulgo, o povão, a grande massa que vai dos chamados humildes à mais mediana das medianias.
Houve tempo em que a precaução mandava que os humildes se comportassem com humildade, e os que o não eram fingissem as virtudes de mostrar respeitinho, aceitando todos que cada macaco se aquietasse no galho onde as circunstâncias o tinham posto. Mas na atmosfera energética e acelerada em que vivemos, desapareceram os galhos e, sem apoio para assentar o traseiro, a macacada perdeu as estribeiras.
Há dias calmos, noutros ganho a certeza de que a maioria dos que me rodeiam, de facto caiu da palmeira para o volante. Mesmo os que não tiraram carta nem têm carro.

sexta-feira, abril 29

A dor dos outros

 

Eles discutem as causas e as consequências, a história e as previsões, as técnicas, as estratégias, o que deveria ter acontecido, as culpas, o que de certeza nunca acontecerá, como vai ser a vitória, com que fúria serão espezinhados os vencidos, que caro lhes vai sair o preço da insolência, a miséria dos amanhãs, o...

Vejo-os, oiço-os, não lhes desejo bem nem sofrimentos, só umas semanas em Azovstal.

quarta-feira, abril 27

Armadilhas

 

Tive um aos dezoito anos, íntimo mesmo, podia dizer que era do peito, e esse fez-me o favor de me trair, lição que ficou. Por isso não tenho amigos. Melhor dizendo: mantenho relações de amizade, sem resguardo, mas vou cuidando não dar mais nem receber para além da zona de segurança. Anda o espírito em paz, dorme-se bem, evita-se o ranger dos dentes e a azedia do estômago.

Mesmo assim, tão arrevesada é a natureza humana, que por mais precauções que se tomem e barreiras que se levantem, há sempre um espírito traiçoeiro, quando menos nos precatamos caímos na armadilha.

Não adianta o queixume. Vale mais aceitar o desfalque, aprender a lição e, sobretudo, gozar o espectáculo do regozijo do "amigo", momentos antes de se dar conta de que já nos levantámos.