terça-feira, março 31

Cãibras

Uns acharão graça, para outros será motivo de troça, tudo depende do carácter de cada, da sua sensibilidade, sentido do humor, disposição do momento, ou em que medida vê no próximo o seu semelhante.

O Guilherme, o Benjamim, o Alípio, o Tó da Esmeralda, além de vizinhos são, como eu, regularmente atormentados por cãibras. Quem delas sofre não precisa de explicação, o resto que imagine o que sofriam os condenados à tortura da polé nas masmorras do Santo Ofício. Daí que a nossa conversa, passada a fase do estado do tempo e de como foi a viagem, infalivelmente recai sobre o achaque em que as pernas, numa amostra das penas do Inferno, se nos retorcem apertadas pela turquês do Diabo.

Uns dizem que é falta disto no sangue ou falta daquilo nos ossos, que será dos nervos, da frieza dos lençóis, vitaminas a menos... Certo é que nem as meninas da farmácia conhecem remédio que faça bem, ou pelo menos dê alívio.

Estamos nisto há anos. Se quero ser preciso, estávamos nisto há anos. Melhor ainda: estávamos nisto há anos até ontem.

Ontem, ao começo da noite, a nossa vizinha Hilda bateu à porta. Surda, sorridente, segredeira, a simpatia em pessoa, desta vez escondia as mãos sob o avental, o que de certo modo lhe dificultou o ritual beijoqueiro.

Olhando receosa em volta, sussurrou que vinha por causa das cãibras. E de novo a olhar receosa, avisou que se devia guardar segredo.

Feita a jura, explicou ela que, vai para seis meses, o Guilherme deixou de sofrer de cãibras. E nem ele compreende o milagre, nem ela lhe vai confessar que isso aconteceu devido a uma promessa que fez à Santa Maria Adelaide, de Arcozelo, mas também por virtude dum remédio milagroso que a cunhada lhe mandou de França.

Dizendo isto retirou de sob o avental o objecto que se vê na fotografia. Deve este ser colocado aos pés da cama, entre os cobertores, de modo que o paciente não dê conta. Se ele por acaso perguntar que perfume é aquele, diz-se-lhe que deve ser da lexívia.

Carinhosa, sabendo que também sofro, a Hilda deu-me de presente o remédio que, para alívio do meu mal, encomendara especialmente à cunhada. Também já prometeu dez euros à santa.

No que respeita o perfume e o esconderijo, ela acha que isso só vale para quem não teve estudos.



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sábado, março 28

Compasso de espera

Agradece-se a visita, e que desculpe quem veio esperando novidade. Os próximos dias serão de intervalo, porque vou daqui

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sexta-feira, março 27

Cadeias

Lê-se nas estatíscas municipais: pelas ruas do centro de Amsterdam passam diariamente umas trinta e oito mil pessoas. Significa isso que, andando eu por ali como de costume hora e pico, me cruzo com mais de um milhar de desconhecidos. Corpos de todos os tamanhos e feitios, rostos dos tipos mais variados, os comportamentos inesperados da multidão anónima.

Amanhã vou-me de viagem e segunda-feira chego à aldeia. Lá, alma mais alma menos, entre válidos, inválidos, acamados e trôpegos, somos à volta de oitenta e cinco. Desses, se o dia é soalheiro, cruzo-me no melhor com seis ou sete. Rostos que conheço desde que me conheço, sempre os mesmos sorrisos, quase sempre as mesmas falas.

Ando neste vaivém trimestral vai para dez anos. Perguntando-me para quê e porquê, ao mesmo tempo incapaz de esconjurar o feitiço. Porque feitiço é, bruxaria poderosa.

Como não encontro explicação, digo-me que no geral ninguém leva a vida que quer, menos ainda aquela com que sonhou.

Começa-se com a ilusão de que tudo é possível, mas depressa surgem os obstáculos, os fossos, as armadilhas, os vendavais, as cadeias. Sobretudo estas últimas. E de nada adianta acreditar no benefício dos comprimidos, na bondade do semelhante, nos favores do padre Pio ou da Santa da Ladeira: desastres e reveses, doenças, as misérias várias que acompanham o existir, o que tiver de acontecer fatalmente acontecerá, ao seu fado ninguém escapa.

Às suas cadeias também não.

quinta-feira, março 26

A fama

Em defuntos e famas o bom conselho é: não mexer. No que respeita os primeiros as razões saltam à vista, mas, pelo menos para mim, tratando-se de reputações o caso torna-se bicudo. É facto que, como o comum da gente, aceito com pouca vontade de investigar a fama que, pelos séculos adiante, gozam os grandes políticos, grandes generais, os grandes isto e aquilo.

Compreendo que os depositem em panteões, lhes ergam estátuas, lhes gravem o nome em letras de ouro, e que de geração em geração se vá repetindo que foram grandes.

Aqui descambo um pouco, pois se estava a pensar em fama não era a dos caudilhos, mas a da gente da escrita, o tipo a que os estudiosos se referem falando de “grande homem das Letras”, qualificativo seguido, em geral, de pontos de exclamação.

Nesse particular Raul Brandão (1867-1930) é uma das minhas bêtes noires. Se adrego de dar com estudo ou artigo que trate dele e da sua obra, desanda-se-me o entendimento.

Leio isto e mais num que acidentalmente me vem à mão:

O catastrofismo ‘finissecular’ de pendor apocalíptico, ora desesperante ora esperançoso, atinge progressivamente na sua obra uma dimensão patética e interrogativa.” E mais adiante: “... tudo isso se torna nele simultaneamente interior e exterior e pode designar-se, nas suas diversas variantes, como o energismo onírico que radicaliza a vida e, em última instância, lhe propicia o único sentido possível.”

Quer o Diabo que em tempos muito idos, por obrigação de trabalho, eu tenha dedicado algum tempo a estudar Raul Brandão. No passado, como agora, o que muito me irrita é a desfaçatez de, para que se lhe não manche a fama, sistematicamente se esconder um lado, para mim essencial, da mentalidade do escritor e da sua atitude de cidadão.

Como se dá o caso de estarmos mais uma vez em crise, e os políticos e banqueiros se desunharem em busca de soluções, pelo menos no que respeita a nossa Lusitânia Raul Brandão, no vol. III das suas “Memórias” sugere esta, que jamais recordo de ter encontrado em artigo ou estudo que lhe dissesse respeito:

“A nossa ruína não vem dos políticos nem do regime... o mal é da raça... Se quisermos modificar o país, temos de fazer exactamente o mesmo que se faz com os cavalos, temos de mandar vir homens do Norte, ingleses, escandinavos, suecos, e de manter aqui e além postos de cobrição”.

Ainda nas “Memórias” explica ele que o nosso povo é o fruto de “cruzamentos complicadíssimos de selvagens da época quaternária com iberos, ligures, fenícios...”, nascido de “mães que comiam os filhos”... e dos árabes que em “ondas de sangue negro inundam a península, gente incapaz de civilização, incapaz de coesão nem ideal. Vinham da remota África cevar-se.... A nossa decadência começa com as conquistas, não por causa do oiro, mas por causa dos cruzamentos. O sangue preto alastra no povo... Com uma raça mesclada faz-se um grande país, havendo uma elite que a dirija. O pior é que o sangue negro começa, a certa altura, a alastrar na raça condutora, que não pode conservar-se indemne.”

Mesmo o antagonismo entre Porto e Lisboa é-nos explicado pelo tripeiro Raul Brandão como uma questão de raça: “Ao passo que o semita, no sul, queimava gente aos milhares, nunca foi possível no Porto, devido ao elemento árico, fazer um auto de fé.”


Ah! A fama!

terça-feira, março 24

Jimmy Rosenberg

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Guitarra... A portuguesa e a outra, que nesse tempo se chamava violão.
“O António Fidalgo veio do Porto para morrer.
Dez anos mais velho, foi um dos heróis da minha meninice. Genial tocador de guitarra. Com o senhor José Cigano, negociante de cavalos, e o Zézinho Teixeira, formava um trio que deixou fama. Ao ouvi-los senti pela primeira vez as emoções fundas que a música dá, estranhas e inquietantes para a criança que eu era. Misteriosas também, porque intraduzíveis em palavras.”
Isto está aí para trás, num post de 7 de Fevereiro de 2007.
Guitarra... Violão...
Menino sem rádio, a música foi tomando conta de mim aos poucos e, à força de ouvir os que sabiam, à volta dos oito, nove anos, já dedilhava qualquer coisa. Aperfeiçoei-me como pude e descobri que talento não tinha. Como poderia jamais pedir meças a Django Reinhardt, Andrés Segovia, Yepes, Bream, Paco de Lucia, Eric Clapton, Laurindo Almeida, John McLaughlin, Jimmy Rosenberg... fiquei-me a admirá-los.
Jimmy Rosenberg?
Oiça-o aqui , Jimmy Rosenberg, garotinho de doze anos, e aqui, em Fevereiro de 2008 em Amsterdam. E mais esta interpretação de Sweet Georgia Brown aqui.
Sim, sim, é cigano, é holandês, e corre-lhe nas veia o sangue de um primo: Django Reinhardt.

segunda-feira, março 23

Chuva de Março

(Clique para se assustar)

Amsterdam - A janela do meu quarto de trabalho às 3 da tarde. Do parque fronteiro nem folha nem pássaro. Chuva que promete durar o resto da semana e é razão de sobra para fugir para onde há Verão. Pena não ser já, mas no sábado fujo mesmo.

Comidas

Animais amestrados num circo, jardins zoológicos, aquários, jaulas, gaiolas... desde que me conheço tudo o que seja prisão me repugna.

Indivíduo de bom trato, pai e marido exemplar, cumpridor dos mandamentos, religioso de muita virtude, vejo-o com outros olhos ao dar-me conta que, dia e noite, meses, anos, mantém o cão preso a cinco metros de corrente.

Por cobardia, mas também para manter a sanidade mental, desligo a televisão cada vez que ela me confronta com os animais criados em “fábricas” e aviários. Costeleta de porco, “posta” de vitela, asa de frango, se mos põem no prato tento comê-los, mas a náusea pode mais. De nada adianta que me confortem com a informação de que desde séculos remotos, para poupar a sensibilidade, na cozinha oriental tudo é cortado em minúsculos pedacinhos – mesmo os fetos.

Vegetariano ainda não consigo ser e por enquanto fico-me pelo peixe, se bem que não me veja a comê-lo como aqui.