Curioso, o acaso que nos faz abrir um livro(*) e reler, com um sorriso triste, esta ironia antiga. Mas de certo modo consola que o retrato do Portugal de 1871 nada tenha a ver, nem de longe, com o Portugal de 2008. Só um espírito azedo pretenderá o contrário:
“O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Já se não crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso… A ruína económica cresce, cresce, cresce… O comércio definha. A indústria enfraquece. O salário diminui. A renda diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.
Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária de casas explora o aluguel. A agiotagem explora o juro.
De resto a ignorância pesa sobre o povo como um nevoeiro… Não é uma existência, é uma expiação. E a certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se por toda a parte: “O país está perdido!” Ninguém se ilude… E que se faz? Atesta-se, conversando e jogando o voltarete, que de norte a sul, no Estado, na economia, na moral, o país está desorganizado – e pede-se conhaque!
Assim todas as ideias certificam a podridão; mas todos os temperamentos se dão bem na podridão!”
-------------------------------
(*) Uma Campanha Alegre (vol. I)- Eça de Queiroz.
quinta-feira, julho 31
quarta-feira, julho 30
Antigamente
Antigamente, sem hesitar, eu entregaria a defesa dos meus interesses a um advogado, o cuidado da minha saúde a um médico, a segurança da minha pessoa a um polícia. Se as circunstâncias o mandarem também hoje terei de o fazer. Mas sem ilusões. Antes como a rês que ao ser tirada do estábulo nunca sabe se a vão levar para o pasto ou para o matadouro.
terça-feira, julho 29
Mendigos (5)
Que fique a imagem para vergonha e remorso dos que rasgam os jeans por moda ou "solidariedade" para com os miseráveis.
E de novo se repete o texto:
A maioria dos que agora somos ainda não tinha nascido. Uns quantos viram e romantizaram. Outros não viram ou não se lembram. Eu não esqueço, e continua a doer-me a recordação do tempo em que os mendigos batiam às portas da minha aldeia transmontana. Às portas dos pobres, que eram quem mais pronto lhes dava a esmola. (*)
(*) As fotografias são do começo dos anos 50. (Clique para aumentar)
E de novo se repete o texto:
A maioria dos que agora somos ainda não tinha nascido. Uns quantos viram e romantizaram. Outros não viram ou não se lembram. Eu não esqueço, e continua a doer-me a recordação do tempo em que os mendigos batiam às portas da minha aldeia transmontana. Às portas dos pobres, que eram quem mais pronto lhes dava a esmola. (*)
(*) As fotografias são do começo dos anos 50. (Clique para aumentar)
segunda-feira, julho 28
Genista lydia
Nascido em comunhão com a terra, os meus conhecimentos da natureza são práticos. Diferencio um carvalho dum castanheiro, um macho dum cavalo; sei que a rama da batata não cresce alta como a do tomate; que o voo da pomba é silencioso e o da perdiz barulhento. Mas de vez em quando tenho inveja dos que sabem o nome e os detalhes das plantas, das flores, das árvores; dos que distinguem pelo pio ou pela pena a espécie dos pássaros.
O meu receio, porém, é de que, pelo menos nesse particular, a um aumento do saber corresponda uma diminuição do sentimento. Não sei se se continua a olhar com alegria ingénua para a giesta em flor quando se lhe chama Genista lydia, se lhe conhece a genealogia e se estudou a composição química do solo em que ela melhor se desenvolve.
O meu receio, porém, é de que, pelo menos nesse particular, a um aumento do saber corresponda uma diminuição do sentimento. Não sei se se continua a olhar com alegria ingénua para a giesta em flor quando se lhe chama Genista lydia, se lhe conhece a genealogia e se estudou a composição química do solo em que ela melhor se desenvolve.
domingo, julho 27
"O Rei da Terra"
Pelo simples gosto de apreciar mais uma vez o seu talento, releio O Rei da Terra, de Dalton Trevisan (1925-).
Grande escritor. Curioso destino o deste homem que fez de Curitiba um universo, tem passado a vida a ser director de fábrica e, nas horas vagas, se tornou um dos grandes, senão o maior dos contistas brasileiros.
No Brasil é famoso, mas pouco lido. Em Portugal poucos o conhecerão. Nos Estados Unidos terá uma mão-cheia de leitores, na Holanda outra mão-cheia. Dá pena que seja assim, mas essa é a realidade.
Do talento, como do crime, também se pode dizer que não compensa.
Grande escritor. Curioso destino o deste homem que fez de Curitiba um universo, tem passado a vida a ser director de fábrica e, nas horas vagas, se tornou um dos grandes, senão o maior dos contistas brasileiros.
No Brasil é famoso, mas pouco lido. Em Portugal poucos o conhecerão. Nos Estados Unidos terá uma mão-cheia de leitores, na Holanda outra mão-cheia. Dá pena que seja assim, mas essa é a realidade.
Do talento, como do crime, também se pode dizer que não compensa.
quinta-feira, julho 24
O fim da internet livre
Isto é consigo, comigo, com todos nós:
http://www.globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=9627
http://www.globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=9627
Mendigos (4)
Recorda-se com pena e espanto que há dias, no Porto, uma mulher de 95 anos tenha morrido de fome.
E pela quarta vez se repete o texto:
A maioria dos que agora somos ainda não tinha nascido. Uns quantos viram e romantizaram. Outros não viram ou não se lembram. Eu não esqueço, e continua a doer-me a recordação do tempo em que os mendigos batiam às portas da minha aldeia transmontana. Às portas dos pobres, que eram quem mais pronto lhes dava a esmola. (*)
(*) As fotografias são do começo dos anos 50.
E pela quarta vez se repete o texto:
A maioria dos que agora somos ainda não tinha nascido. Uns quantos viram e romantizaram. Outros não viram ou não se lembram. Eu não esqueço, e continua a doer-me a recordação do tempo em que os mendigos batiam às portas da minha aldeia transmontana. Às portas dos pobres, que eram quem mais pronto lhes dava a esmola. (*)
(*) As fotografias são do começo dos anos 50.
terça-feira, julho 22
A cara que temos
É uma dor que vai e vem, talvez ciática, por vezes tão aguda que me impede o andar.
Jovem ainda e simpática, atenta, concentrada no que faz, a neurologista manda-me que caminhe na ponta dos pés, sobre os calcanhares, diz-me que feche os olhos e ponha os indicadores no nariz, faz aqueles testes dos reflexos com o martelinho, puxa aqui, torce acolá, raspa-me a sola dos pés, pica-me as pernas...
Como não encontra o que poderia ser a causa da mazela resolve que se terá de fazer um MRI, aparelhagem em que já noutra ocasião me vi metido. E enquanto escreve o seu relatório entrega-me um folheto com perguntas a que devo responder.
Vou lendo. Se tenho um pacemaker. Se tenho uma peça dental de fixação magnética. Se no corpo tenho bomba ou aparelho que não possa ser retirado. Se em qualquer parte do corpo tenho fragmentos de metal. Se tenho válvulas metálicas no coração. Se tenho uma prótese auditiva metálica. Se sofro de claustrofobia. Se alguma vez me foi injectado líquido contrastante. Se se deram complicações. Quantos quilos peso.
Preenchi, assino. A neurologista, sorridente, parece hesitar, diz que quer fazer ainda uma pergunta, mas…
- Diga, diga.
- O senhor, por acaso, tem balas no corpo?
- Balas? Não!
Despedimo-nos. O átrio do hospital está cheio de gente e dá-me a impressão de que um ou outro me olha de modo estranho. Balas no corpo! Será que a minha cara justifica a pergunta e aqueles olhares?
Jovem ainda e simpática, atenta, concentrada no que faz, a neurologista manda-me que caminhe na ponta dos pés, sobre os calcanhares, diz-me que feche os olhos e ponha os indicadores no nariz, faz aqueles testes dos reflexos com o martelinho, puxa aqui, torce acolá, raspa-me a sola dos pés, pica-me as pernas...
Como não encontra o que poderia ser a causa da mazela resolve que se terá de fazer um MRI, aparelhagem em que já noutra ocasião me vi metido. E enquanto escreve o seu relatório entrega-me um folheto com perguntas a que devo responder.
Vou lendo. Se tenho um pacemaker. Se tenho uma peça dental de fixação magnética. Se no corpo tenho bomba ou aparelho que não possa ser retirado. Se em qualquer parte do corpo tenho fragmentos de metal. Se tenho válvulas metálicas no coração. Se tenho uma prótese auditiva metálica. Se sofro de claustrofobia. Se alguma vez me foi injectado líquido contrastante. Se se deram complicações. Quantos quilos peso.
Preenchi, assino. A neurologista, sorridente, parece hesitar, diz que quer fazer ainda uma pergunta, mas…
- Diga, diga.
- O senhor, por acaso, tem balas no corpo?
- Balas? Não!
Despedimo-nos. O átrio do hospital está cheio de gente e dá-me a impressão de que um ou outro me olha de modo estranho. Balas no corpo! Será que a minha cara justifica a pergunta e aqueles olhares?
segunda-feira, julho 21
Sábado à tarde
O calor da tarde era demasiado. Raquel abriu o jornal vagarosamente, sem vontade de ler. Na primeira página um ministro búlgaro abraçava Solana e, por baixo, em maiúsculas, a notícia de que o nível do Reno já baixara mais que no ano anterior.
As janelas estavam abertas, ouvia-se o ladrar dos cães, correndo uns atrás dos outros. Pegou outra vez na garrafa e pô-la à boca, sem se dar ao trabalho de usar o copo. O leite frio, quase gelado, tornara-se para ela um vício tão exigente como o fumar. A garrafa, porém, estava vazia e, durante um instante, perplexa, não conseguiu recordar-se se era a primeira ou a segunda.
Irritada, atirou com o jornal. Apoiando-se com dificuldade nos braços da cadeira, levantou-se, caminhou lentamente para a cozinha. Os dias piores eram os do fim-de-semana. Não fossem os cães teria a impressão de que se achava ali num deserto. Os vizinhos saíam para a praia de manhã cedo e quando voltavam já era noite. No Verão só raramente os via.
A casa não era grande, mas o corredor parecia aumentar de comprimento. Como era possível que a cozinha estivesse fechada? Estaria outra vez a piorar dos olhos? Tinha a certeza de que a deixara aberta e em casa não havia mais ninguém.
- Quem é?
Foi andando apoiada à parede. Empurrou a porta com cuidado, hesitando um instante antes de entrar, certa de que ouvia passos que se afastavam.Tirou outra garrafa do frigorífico, bebeu lentamente, contou as que sobravam. Nove, o bastante até segunda-feira.
Naquele momento ouviu telefone. Um tilintar desagradável e tanto mais inesperado porque só raramente lhe telefonavam. A sala parecia-lhe longe, uma distância absurda, fatigante, mas vencendo-se caminhou para lá. Ia a meio do corredor quando um dos cães passou a correr, seguido por outros dois. Como teriam entrado? Era impossível que fossem capazes de saltar pelas janelas, demasiado altas.
O telefone silenciou. Um instante depois recomeçou a tocar e levantou-o do descanso. Reconheceu a voz da irmã que vivia em Paris, aquele modo aflito de gritar "Allô! Ana? Allô!", mas não tinha vontade de conversar, nem de lhe ouvir as queixas. Pousou o aparelho, perguntando-se se teria força bastante para voltar à cozinha, onde tinha deixado a garrafa.
As janelas estavam abertas, ouvia-se o ladrar dos cães, correndo uns atrás dos outros. Pegou outra vez na garrafa e pô-la à boca, sem se dar ao trabalho de usar o copo. O leite frio, quase gelado, tornara-se para ela um vício tão exigente como o fumar. A garrafa, porém, estava vazia e, durante um instante, perplexa, não conseguiu recordar-se se era a primeira ou a segunda.
Irritada, atirou com o jornal. Apoiando-se com dificuldade nos braços da cadeira, levantou-se, caminhou lentamente para a cozinha. Os dias piores eram os do fim-de-semana. Não fossem os cães teria a impressão de que se achava ali num deserto. Os vizinhos saíam para a praia de manhã cedo e quando voltavam já era noite. No Verão só raramente os via.
A casa não era grande, mas o corredor parecia aumentar de comprimento. Como era possível que a cozinha estivesse fechada? Estaria outra vez a piorar dos olhos? Tinha a certeza de que a deixara aberta e em casa não havia mais ninguém.
- Quem é?
Foi andando apoiada à parede. Empurrou a porta com cuidado, hesitando um instante antes de entrar, certa de que ouvia passos que se afastavam.Tirou outra garrafa do frigorífico, bebeu lentamente, contou as que sobravam. Nove, o bastante até segunda-feira.
Naquele momento ouviu telefone. Um tilintar desagradável e tanto mais inesperado porque só raramente lhe telefonavam. A sala parecia-lhe longe, uma distância absurda, fatigante, mas vencendo-se caminhou para lá. Ia a meio do corredor quando um dos cães passou a correr, seguido por outros dois. Como teriam entrado? Era impossível que fossem capazes de saltar pelas janelas, demasiado altas.
O telefone silenciou. Um instante depois recomeçou a tocar e levantou-o do descanso. Reconheceu a voz da irmã que vivia em Paris, aquele modo aflito de gritar "Allô! Ana? Allô!", mas não tinha vontade de conversar, nem de lhe ouvir as queixas. Pousou o aparelho, perguntando-se se teria força bastante para voltar à cozinha, onde tinha deixado a garrafa.
domingo, julho 20
Alforges (8)
De casaco e gravata
Uma fotografia tirada no dia dos meus dez anos mostra-me pela primeira vez de gravata. Recordo vagamente que minha mãe, cheia de impaciência e descontente com o resultado, várias vezes fez e desfez o nó, até que por fim lhe conseguiu dar o volume preciso. Quando lhe perguntei a razão de tanto incómodo, respondeu-me ela que nos trajes e nos modos era preciso parecer bem às pessoas.
A noção do parecer bem e as suas exteriorizações, sofreram desde essa época longínqua mudanças de tal modo radicais, que hoje só são aceitáveis quando se lhes pode acrescentar a desculpa da caricatura ou do disfarce. Como num carnaval. Ainda se vêem homenzinhos de dez anos com gravata nas festas e nos casamentos, mas com carta branca para se lambuzar e andar aos coices. Porque é só a brincar, é só disfarce. Um ministro em uniforme de grande gala, bicórnio, condecorações, é notícia de primeira página e corre o risco de ser ridicularizado. Quando nas cerimónias mais solenes os soberanos ainda reinantes deitam pelos ombros o manto de arminho, logo se recorda a cómica autocoroação do imperador Bokassa no seu efémero império africano. Ainda há quem tente vestir-se para “parecer bem às pessoas” num concerto, num jantar. Simplesmente, um pouco de elegância sóbria no traje ou apenas o decoro, logo destoam entre os jeans esgarçados e o desalinho em moda. Qual o homem que se irá barbear, quando o preceito corrente é a barba de três dias?
Ao escrever isto poderei dar a impressão de que suspiro pela formalidade do passado ou me incomoda a liberalidade do presente. Assim não é. Estou mesmo suficientemente entranhado pelo espírito do século para, de vez em quando, me permitir também liberdades com que antes não sonharia. Poucas, diga-se de passagem, e em escala modesta. Mas o que de facto me transtorna é a minha insegurança perante as regras de etiqueta vigentes ou, melhor dizendo, a subtileza dos ditames a que elas obedecem e a celeridade da sua mudança. Porque de ditames se trata, e rigorosos. O que à primeira vista aparenta ser licença, no fundo é decretado e obriga a uma estrita arregimentação. Ao observador perspicaz não escapará que as cores, os modelos, ademanes e cortesias que no passado eram válidos durante anos, agora são-no no máximo durante uma estação, e já na seguinte se tornam anátema. Que se insista em usá-los e é-se logo apontado como excêntrico ou incorrigível bota-de-elástico.
Mais perturbador ainda, a regra de hoje tem tendência para ser o contrário da de ontem. Além disso, por mais tola que a regra seja, o bom-tom actual ordena que se não exteriorize o pasmo ou a irritação que ela nos causa. O mandamento é o da anuência sem reservas. Que nos seja imposta a presença dum poeta aviltado, de camisa aberta até ao umbigo e pés fedorentos em sandálias do tipo Jesus nikes, a nossa obrigação é manter o sorriso, como se não tivéssemos opinião nem olfacto.
Uma dama insiste em chamar a atenção para as suas pernas recobertas com absurdas meias de rede representando pássaros e galhos, cabe-nos não ter opinião nem olhos. Outra dama, com inocência ou de propósito, permite-se um trajar obsceno, é nosso dever, conforme manda a regra, acharmos tudo bem, tudo aceitável.
No fundo, e mais que os exageros, que são de todos os tempos, é esse assentimento automático o que faz desesperar. Na verdade não são as modas que importam, pois por natureza são passageiras. Preocupante é, sim, o desprendimento com que elas marcam as relações mútuas. Cada um de nós torna-se uma ilha, isolado dos outros pela espessa névoa do interesse fingido e da falsa aceitação sem nenhum desejo de, para aliviar o isolamento, se dar ao trabalho de realmente querer “parecer bem”.
Uma fotografia tirada no dia dos meus dez anos mostra-me pela primeira vez de gravata. Recordo vagamente que minha mãe, cheia de impaciência e descontente com o resultado, várias vezes fez e desfez o nó, até que por fim lhe conseguiu dar o volume preciso. Quando lhe perguntei a razão de tanto incómodo, respondeu-me ela que nos trajes e nos modos era preciso parecer bem às pessoas.
A noção do parecer bem e as suas exteriorizações, sofreram desde essa época longínqua mudanças de tal modo radicais, que hoje só são aceitáveis quando se lhes pode acrescentar a desculpa da caricatura ou do disfarce. Como num carnaval. Ainda se vêem homenzinhos de dez anos com gravata nas festas e nos casamentos, mas com carta branca para se lambuzar e andar aos coices. Porque é só a brincar, é só disfarce. Um ministro em uniforme de grande gala, bicórnio, condecorações, é notícia de primeira página e corre o risco de ser ridicularizado. Quando nas cerimónias mais solenes os soberanos ainda reinantes deitam pelos ombros o manto de arminho, logo se recorda a cómica autocoroação do imperador Bokassa no seu efémero império africano. Ainda há quem tente vestir-se para “parecer bem às pessoas” num concerto, num jantar. Simplesmente, um pouco de elegância sóbria no traje ou apenas o decoro, logo destoam entre os jeans esgarçados e o desalinho em moda. Qual o homem que se irá barbear, quando o preceito corrente é a barba de três dias?
Ao escrever isto poderei dar a impressão de que suspiro pela formalidade do passado ou me incomoda a liberalidade do presente. Assim não é. Estou mesmo suficientemente entranhado pelo espírito do século para, de vez em quando, me permitir também liberdades com que antes não sonharia. Poucas, diga-se de passagem, e em escala modesta. Mas o que de facto me transtorna é a minha insegurança perante as regras de etiqueta vigentes ou, melhor dizendo, a subtileza dos ditames a que elas obedecem e a celeridade da sua mudança. Porque de ditames se trata, e rigorosos. O que à primeira vista aparenta ser licença, no fundo é decretado e obriga a uma estrita arregimentação. Ao observador perspicaz não escapará que as cores, os modelos, ademanes e cortesias que no passado eram válidos durante anos, agora são-no no máximo durante uma estação, e já na seguinte se tornam anátema. Que se insista em usá-los e é-se logo apontado como excêntrico ou incorrigível bota-de-elástico.
Mais perturbador ainda, a regra de hoje tem tendência para ser o contrário da de ontem. Além disso, por mais tola que a regra seja, o bom-tom actual ordena que se não exteriorize o pasmo ou a irritação que ela nos causa. O mandamento é o da anuência sem reservas. Que nos seja imposta a presença dum poeta aviltado, de camisa aberta até ao umbigo e pés fedorentos em sandálias do tipo Jesus nikes, a nossa obrigação é manter o sorriso, como se não tivéssemos opinião nem olfacto.
Uma dama insiste em chamar a atenção para as suas pernas recobertas com absurdas meias de rede representando pássaros e galhos, cabe-nos não ter opinião nem olhos. Outra dama, com inocência ou de propósito, permite-se um trajar obsceno, é nosso dever, conforme manda a regra, acharmos tudo bem, tudo aceitável.
No fundo, e mais que os exageros, que são de todos os tempos, é esse assentimento automático o que faz desesperar. Na verdade não são as modas que importam, pois por natureza são passageiras. Preocupante é, sim, o desprendimento com que elas marcam as relações mútuas. Cada um de nós torna-se uma ilha, isolado dos outros pela espessa névoa do interesse fingido e da falsa aceitação sem nenhum desejo de, para aliviar o isolamento, se dar ao trabalho de realmente querer “parecer bem”.
sábado, julho 19
sexta-feira, julho 18
Adeuses
Uma tarde, anos atrás, no hall do aeroporto de Lisboa, chamaram-me a atenção dois grupos de ciganos que, silenciosos, se encontravam a pequena distância um do outro.
A calcular pelo luxo do vestuário e a quantidade de ouro e jóias que os enfeitava, gente abastada. Um grupo, rodeado de malas caras, ia partir para o Brasil. O outro grupo era por certo de familiares e amigos que tinham vindo despedir-se. Uma cena fora do comum, pois de toda evidência aquela gente se pertencia e contudo não trocava palavra. O único sinal de emoção era o pranto de uma anciã no grupo que ficava, e que duas mulheres apoiavam, sussurrando-lhe palavras de conforto.
Afastei-me, receoso de ser indiscreto, mas continuei a observar a cena que tanto me intrigava. E descobri que o que primeiramente me parecera indiferença entre eles, era um ritual. Um ritual de despedida. Tão harmonioso e cheio de carinho que quase senti inveja de não lhes pertencer, e ao mesmo tempo recordei com desagrado os abraços, a excitação, o triplo beijo, as porradas nas costas e os acenos desvairados que são a marca corrente dos nossos adeuses.
Um homem de idade, com a postura e a calma do verdadeiro chefe de família, ia ao grupo que partia, segurava uma pessoa ou uma criança pela mão e levava-a gentilmente para junto dos que ficavam. Aí parecia escolher alguém, colocava nas mãos dessa pessoa as mãos do viajante e afastava-se um momento. Tive a impressão que os dois trocavam então frases idênticas numa língua desconhecida, repetiam certos gestos, se tocavam ligeiramente as faces uma única vez. Quando todos os que iam viajar tinham tomado parte na cerimónia, pegaram na sua bagagem e com um último olhar ao outro grupo, mas sem qualquer gesto ou aceno, desapareceram na multidão. Entre os que ficavam só a anciã continuava a chorar. O homem de idade tirou solenemente o chapéu e colocou-o contra o peito, num gesto reverente, enquanto os restantes permaneciam quietos e tensos, como quem guarda um minuto de silêncio.
Achei solene e bonito. Depois fui-me à vida, a remoer como me desagradam as nossas despedidas. De pequeno eram sempre enormes emoções, soluços, rios de lágrimas. Íamos já longe a caminho do comboio e ainda me parecia ouvir, ecoando pela serra, as lamentações bíblicas da minha avó, queixando-se de que aquele adeus era o último, que nunca mais nos tornaria a ver.
O resto da família e os vizinhos participavam nesse teatro. E isso, que duas vezes por ano gerava na criança que eu era uma grande aflição, tornou-se cicatriz indelével no espírito do adulto.
Talvez que por esse e outros traumas semelhantes, estações e aeroportos sejam para mim calvários. Ver num cais uma multidão que gesticula, que chora, agita lenços e atira beijos a um navio que se afasta, provoca-me uma angústia indizível.
Se vou de viagem, prefiro partir sem acenos, nem olhar para trás. Mas há os irremediáveis deveres da cortesia, e então mesmo o preparo da despedida mais simples se me torna bicho-de-sete-cabeças. Como dizer adeus de maneira sóbria, conveniente? De que modo? Com que palavras? Dantes escondia a minha perturbação atrás de saudações que, por serem estrangeiras, me pareciam neutras. De preferência dizia ciao, adiós, au revoir, goodbye... Mas procurando no mais fundo de mim próprio descubro que também isso já não é solução, porque finalmente, depois de tantos anos, continua a pesar-me o dizer adeus.
A calcular pelo luxo do vestuário e a quantidade de ouro e jóias que os enfeitava, gente abastada. Um grupo, rodeado de malas caras, ia partir para o Brasil. O outro grupo era por certo de familiares e amigos que tinham vindo despedir-se. Uma cena fora do comum, pois de toda evidência aquela gente se pertencia e contudo não trocava palavra. O único sinal de emoção era o pranto de uma anciã no grupo que ficava, e que duas mulheres apoiavam, sussurrando-lhe palavras de conforto.
Afastei-me, receoso de ser indiscreto, mas continuei a observar a cena que tanto me intrigava. E descobri que o que primeiramente me parecera indiferença entre eles, era um ritual. Um ritual de despedida. Tão harmonioso e cheio de carinho que quase senti inveja de não lhes pertencer, e ao mesmo tempo recordei com desagrado os abraços, a excitação, o triplo beijo, as porradas nas costas e os acenos desvairados que são a marca corrente dos nossos adeuses.
Um homem de idade, com a postura e a calma do verdadeiro chefe de família, ia ao grupo que partia, segurava uma pessoa ou uma criança pela mão e levava-a gentilmente para junto dos que ficavam. Aí parecia escolher alguém, colocava nas mãos dessa pessoa as mãos do viajante e afastava-se um momento. Tive a impressão que os dois trocavam então frases idênticas numa língua desconhecida, repetiam certos gestos, se tocavam ligeiramente as faces uma única vez. Quando todos os que iam viajar tinham tomado parte na cerimónia, pegaram na sua bagagem e com um último olhar ao outro grupo, mas sem qualquer gesto ou aceno, desapareceram na multidão. Entre os que ficavam só a anciã continuava a chorar. O homem de idade tirou solenemente o chapéu e colocou-o contra o peito, num gesto reverente, enquanto os restantes permaneciam quietos e tensos, como quem guarda um minuto de silêncio.
Achei solene e bonito. Depois fui-me à vida, a remoer como me desagradam as nossas despedidas. De pequeno eram sempre enormes emoções, soluços, rios de lágrimas. Íamos já longe a caminho do comboio e ainda me parecia ouvir, ecoando pela serra, as lamentações bíblicas da minha avó, queixando-se de que aquele adeus era o último, que nunca mais nos tornaria a ver.
O resto da família e os vizinhos participavam nesse teatro. E isso, que duas vezes por ano gerava na criança que eu era uma grande aflição, tornou-se cicatriz indelével no espírito do adulto.
Talvez que por esse e outros traumas semelhantes, estações e aeroportos sejam para mim calvários. Ver num cais uma multidão que gesticula, que chora, agita lenços e atira beijos a um navio que se afasta, provoca-me uma angústia indizível.
Se vou de viagem, prefiro partir sem acenos, nem olhar para trás. Mas há os irremediáveis deveres da cortesia, e então mesmo o preparo da despedida mais simples se me torna bicho-de-sete-cabeças. Como dizer adeus de maneira sóbria, conveniente? De que modo? Com que palavras? Dantes escondia a minha perturbação atrás de saudações que, por serem estrangeiras, me pareciam neutras. De preferência dizia ciao, adiós, au revoir, goodbye... Mas procurando no mais fundo de mim próprio descubro que também isso já não é solução, porque finalmente, depois de tantos anos, continua a pesar-me o dizer adeus.
quinta-feira, julho 17
Pobres monarcas
Poder viver como um rei era a expressão consagrada nos sonhos do comum. Hoje em dia, porém, deixou de ser válida. Os mais abastados dos soberanos que ainda restam, coitados, terão umas centenas de milhões de dólares (euros ou libras), o sultão do Brunei dois ou três biliões, mas essa gente, além da constante aflição de ver os juros baixar, vive no medo ainda mais constante de que os políticos e a plebe, usando das manhas da democracia, lhes tirem os palácios e os pés-de-meia.
Assim, tal como as multinacionais têm mais poder que os governos, os negociantes da Ásia deixam atrás de si a pelintrice das monarquias. Vejam os irmãos Ambani, que juntos possuem 85 biliões de dólares. O mais novo, Anil Ambani, está a ponto de vender uma das suas empresa por uns 70 biliões. O mais velho, Mukesh, a fazer morder-se de inveja o benjamim, com quem vive em discórdia, ofereceu como presente de aniversário à mulher um Boeing de 60 milhões de dólares e vai gastar 1 bilião de dólares na construção de uma residência. Talvez para que se veja de longe, a casa terá vinte e sete andares (para a mulher e três filhos deve chegar), três pistas para helicópteros e uma garagem para cento e sessenta e cinco carros. Entre jardineiros, paquetes, camareiras, cozinheiros, porteiros, mordomos, choferes, guarda-costas e outros, andarão por ali uns seiscentos servos.
Quanto rei não gostaria de viver assim!
Assim, tal como as multinacionais têm mais poder que os governos, os negociantes da Ásia deixam atrás de si a pelintrice das monarquias. Vejam os irmãos Ambani, que juntos possuem 85 biliões de dólares. O mais novo, Anil Ambani, está a ponto de vender uma das suas empresa por uns 70 biliões. O mais velho, Mukesh, a fazer morder-se de inveja o benjamim, com quem vive em discórdia, ofereceu como presente de aniversário à mulher um Boeing de 60 milhões de dólares e vai gastar 1 bilião de dólares na construção de uma residência. Talvez para que se veja de longe, a casa terá vinte e sete andares (para a mulher e três filhos deve chegar), três pistas para helicópteros e uma garagem para cento e sessenta e cinco carros. Entre jardineiros, paquetes, camareiras, cozinheiros, porteiros, mordomos, choferes, guarda-costas e outros, andarão por ali uns seiscentos servos.
Quanto rei não gostaria de viver assim!
quarta-feira, julho 16
Diário (2)
Era daquelas amizades que não se sabe como nascem. E amizade não é bem o termo. Anos atrás aconteceu falarmos, depois houve uma vaga troca de gentilezas, dois ou três encontros, creio também que um jantar ou dois.
Esquecia-o, mas lá trazia o correio um recorte de jornal onde o mencionavam, um opúsculo com os seus poemas, maus poemas, um livrinho de contos, maus contos…
Eu agradecia a oferta e a dedicatória com palavras banais, e voltava a esquecê-lo. Depois houve um longo período em que telefonava com frequência. O intróito eram as perguntas sobre a saúde. Queria também saber se o que agora me ocupava era romance, conto ou novela. Finalmente, se eu já começara a preparar material para aquela ideia que ele tinha tido de escrever a minha biografia.
Respondia-lhe com evasivas. Ontem chegou-me a notícia de que faleceu e não posso negar o alívio que sinto.
Esquecia-o, mas lá trazia o correio um recorte de jornal onde o mencionavam, um opúsculo com os seus poemas, maus poemas, um livrinho de contos, maus contos…
Eu agradecia a oferta e a dedicatória com palavras banais, e voltava a esquecê-lo. Depois houve um longo período em que telefonava com frequência. O intróito eram as perguntas sobre a saúde. Queria também saber se o que agora me ocupava era romance, conto ou novela. Finalmente, se eu já começara a preparar material para aquela ideia que ele tinha tido de escrever a minha biografia.
Respondia-lhe com evasivas. Ontem chegou-me a notícia de que faleceu e não posso negar o alívio que sinto.
Mendigos (3)
Repete-se o texto:
A maioria dos que agora somos ainda não tinha nascido. Uns quantos viram e romantizaram. Outros não viram ou não se lembram. Eu não esqueço, e continua a doer-me a recordação do tempo em que os mendigos batiam às portas da minha aldeia transmontana. Às portas dos pobres, que eram quem mais pronto lhes dava a esmola. (*)
(*) As fotografias são do começo dos anos 50.
A maioria dos que agora somos ainda não tinha nascido. Uns quantos viram e romantizaram. Outros não viram ou não se lembram. Eu não esqueço, e continua a doer-me a recordação do tempo em que os mendigos batiam às portas da minha aldeia transmontana. Às portas dos pobres, que eram quem mais pronto lhes dava a esmola. (*)
(*) As fotografias são do começo dos anos 50.
terça-feira, julho 15
Alforges (7)
A Praga
Por vezes penso que ainda há esperança e que o bom senso levará a melhor. Mas ao ler que este ano, em torno de mundo, mais de seiscentos milhões de turistas terão atravessado as fronteiras e ido de praia para museu, de catedral para ruínas romanas, de parque de campismo para parque de atracções, de porto típico para gruta pré-histórica, mergulho em desalento. Perseguem-me as imagens que todos conhecemos dos monstruosos ajuntamentos. Meio milhão de corpos numa praia, meio milhão ou mais na seguinte. Filas de automóveis com dezenas de quilómetros. Os doze milhões de basbaques que anualmente passam as portas da catedral de Notre Dame em Paris. Doze milhões! Para ir ver e dizer que viram. Para poderem escrever para casa o postal com as palavras imortais: 'Esplêndidas férias. Vamos bem.'
Mas Notre Dame e milhares de outros monumentos, reservas naturais, praias e florestas, não vão bem. Por toda a parte são visíveis os estragos que lhes causa a desenfreada “admiração” do turista. As estátuas enegrecem de ser tocadas por centenas de milhar de mãos gordurosas, soalhos históricos cedem sob o peso das massas de gente, as praias tomam a desolação de lixeiras, vitrais e pinturas sofrem com o suor condensado de milhões de corpos. Os mesmos milhões que se julgam conscientes da necessidade de melhorar o meio ambiente, da urgência de salvar as espécies raras da fauna e manter límpida a água dos rios e dos mares.
Contudo, nenhuma força contrariará o instinto poderoso de rebanho que os leva a procurar na Costa Brava o mesmo sol que brilha nos seus quintais. Nenhum sermão os convencerá de que o seu comportamento não é o dos indivíduos que eles próprios julgam ser, mas o de eternos carneiros, tão dóceis que nem sequer precisam pastor: vão porque os outros vão ou porque os outros foram.
Nessa ânsia de movimento e imitação, de ver e palpar, pela simples força do seu número conseguem destruir o que tinha resistido aos séculos. O granito das escadarias romanas quebra, o mármore dos templos gregos esboroa, as estátuas da Renascença vêem o seu bronze corroído. Tão inconscientemente perigosos se tornam, que já ouvi aldeãos dizer “Vêm aí os turistas”, no mesmo tom preocupado com que falam das pragas que lhes ameaçam as colheitas.
Felizmente nem tudo ainda está perdido. Pelo menos na Itália - a Itália de quem sempre se diz que é desleixada, que não sabe cuidar - as autoridades tomaram a sábia medida de pôr a bom recato as obras de arte mais frágeis, substituindo-as por réplicas. Os franceses fizeram o mesmo com as grutas de Lascaux, cujas pinturas rupestres conseguiram sobreviver dezassete mil anos, mas por pouco escaparam à curiosidade dos basbaques. Para eles, que nada respeitam e com tudo se contentam, foi criada a ilusão de Lascaux II. E eles acorrem de longe às dezenas de milhar nos seus uniformes de veraneante, a máquina fotográfica a pendular sobre a barriga, o vídeo a tiracolo, a mulher e a filharada a reboque, para nas grutas, nas praças e nas igrejas se embasbacarem diante do pechisbeque.
Quando li essas boas notícias, tomou-me um sentimento metade malícia, metade tristeza. Eu sei que nada exterminará o turista: ele procria, associa-se, faz prosélitos. Oiço dizer que os seiscentos milhões deste ano serão mais de seiscentos e cincoenta milhões em 2010. Os próprios governos aliciam-no para que viage mais e mais. Porque viajando deixa lucro. (Os danos causados? Quem então viver que cuide.) A indústria e o comércio enfeitiçam-no com folhetos sobre paragens exóticas, onde o sol brilha em permanência e todos os dias são de festa. Onde o mar é sempre calmo, o bosque sempre verde, o amor, a amizade e o sexo sempre à mão. E ele, crédulo, só sonha em partir.
Por isso não há esperança, o que entristece. Mas há um prazer malicioso em imaginar o turista, macaqueador por excelência, caminhando em massa para os museus de réplicas num mundo de pacotilha.
Por vezes penso que ainda há esperança e que o bom senso levará a melhor. Mas ao ler que este ano, em torno de mundo, mais de seiscentos milhões de turistas terão atravessado as fronteiras e ido de praia para museu, de catedral para ruínas romanas, de parque de campismo para parque de atracções, de porto típico para gruta pré-histórica, mergulho em desalento. Perseguem-me as imagens que todos conhecemos dos monstruosos ajuntamentos. Meio milhão de corpos numa praia, meio milhão ou mais na seguinte. Filas de automóveis com dezenas de quilómetros. Os doze milhões de basbaques que anualmente passam as portas da catedral de Notre Dame em Paris. Doze milhões! Para ir ver e dizer que viram. Para poderem escrever para casa o postal com as palavras imortais: 'Esplêndidas férias. Vamos bem.'
Mas Notre Dame e milhares de outros monumentos, reservas naturais, praias e florestas, não vão bem. Por toda a parte são visíveis os estragos que lhes causa a desenfreada “admiração” do turista. As estátuas enegrecem de ser tocadas por centenas de milhar de mãos gordurosas, soalhos históricos cedem sob o peso das massas de gente, as praias tomam a desolação de lixeiras, vitrais e pinturas sofrem com o suor condensado de milhões de corpos. Os mesmos milhões que se julgam conscientes da necessidade de melhorar o meio ambiente, da urgência de salvar as espécies raras da fauna e manter límpida a água dos rios e dos mares.
Contudo, nenhuma força contrariará o instinto poderoso de rebanho que os leva a procurar na Costa Brava o mesmo sol que brilha nos seus quintais. Nenhum sermão os convencerá de que o seu comportamento não é o dos indivíduos que eles próprios julgam ser, mas o de eternos carneiros, tão dóceis que nem sequer precisam pastor: vão porque os outros vão ou porque os outros foram.
Nessa ânsia de movimento e imitação, de ver e palpar, pela simples força do seu número conseguem destruir o que tinha resistido aos séculos. O granito das escadarias romanas quebra, o mármore dos templos gregos esboroa, as estátuas da Renascença vêem o seu bronze corroído. Tão inconscientemente perigosos se tornam, que já ouvi aldeãos dizer “Vêm aí os turistas”, no mesmo tom preocupado com que falam das pragas que lhes ameaçam as colheitas.
Felizmente nem tudo ainda está perdido. Pelo menos na Itália - a Itália de quem sempre se diz que é desleixada, que não sabe cuidar - as autoridades tomaram a sábia medida de pôr a bom recato as obras de arte mais frágeis, substituindo-as por réplicas. Os franceses fizeram o mesmo com as grutas de Lascaux, cujas pinturas rupestres conseguiram sobreviver dezassete mil anos, mas por pouco escaparam à curiosidade dos basbaques. Para eles, que nada respeitam e com tudo se contentam, foi criada a ilusão de Lascaux II. E eles acorrem de longe às dezenas de milhar nos seus uniformes de veraneante, a máquina fotográfica a pendular sobre a barriga, o vídeo a tiracolo, a mulher e a filharada a reboque, para nas grutas, nas praças e nas igrejas se embasbacarem diante do pechisbeque.
Quando li essas boas notícias, tomou-me um sentimento metade malícia, metade tristeza. Eu sei que nada exterminará o turista: ele procria, associa-se, faz prosélitos. Oiço dizer que os seiscentos milhões deste ano serão mais de seiscentos e cincoenta milhões em 2010. Os próprios governos aliciam-no para que viage mais e mais. Porque viajando deixa lucro. (Os danos causados? Quem então viver que cuide.) A indústria e o comércio enfeitiçam-no com folhetos sobre paragens exóticas, onde o sol brilha em permanência e todos os dias são de festa. Onde o mar é sempre calmo, o bosque sempre verde, o amor, a amizade e o sexo sempre à mão. E ele, crédulo, só sonha em partir.
Por isso não há esperança, o que entristece. Mas há um prazer malicioso em imaginar o turista, macaqueador por excelência, caminhando em massa para os museus de réplicas num mundo de pacotilha.
segunda-feira, julho 14
Remexendo nas gavetas (28)
Miguel Torga
Ainda do volume XIII do Diário de Miguel Torga (*)
“Coimbra, 15 de Agosto de 1980 – Não consigo lê-lo sem forçar a natureza. Há em mim uma exigência intuitiva de autenticidade que pressente, de longe, a impostura de um texto. Lançar ao papel uma só linha que seja que não obedeça àquele imperativo que faz a honra da literatura parece-me um atrevimento sacrílego e um ultraje à vocação. Imagino sempre o autor diante da página vazia numa atitude recolhida de professo, à espera da graça do verbo. Ora, no caso vertente, trata-se de um daqueles bem-aventurados que, seguros do seu talento, nem perdem tempo a merecê-lo nem ocasião de o exibir. Apenas sensíveis às variações do gosto e aos favores do aplauso, pouco lhes importa a essencialidade e a têmpera da obra. Mundanos das letras, tanto no oportunismo como no impudor, agentes de si próprios, não há promoção a que resistam. Dão-me sempre a impressão de que escrevem os livros na montra das livrarias.”
Não importa saber a quem terá servido a carapuça, sim que são muitos aqueles a quem ela serve.
(*) V. post de 10/07
“Coimbra, 15 de Agosto de 1980 – Não consigo lê-lo sem forçar a natureza. Há em mim uma exigência intuitiva de autenticidade que pressente, de longe, a impostura de um texto. Lançar ao papel uma só linha que seja que não obedeça àquele imperativo que faz a honra da literatura parece-me um atrevimento sacrílego e um ultraje à vocação. Imagino sempre o autor diante da página vazia numa atitude recolhida de professo, à espera da graça do verbo. Ora, no caso vertente, trata-se de um daqueles bem-aventurados que, seguros do seu talento, nem perdem tempo a merecê-lo nem ocasião de o exibir. Apenas sensíveis às variações do gosto e aos favores do aplauso, pouco lhes importa a essencialidade e a têmpera da obra. Mundanos das letras, tanto no oportunismo como no impudor, agentes de si próprios, não há promoção a que resistam. Dão-me sempre a impressão de que escrevem os livros na montra das livrarias.”
Não importa saber a quem terá servido a carapuça, sim que são muitos aqueles a quem ela serve.
(*) V. post de 10/07
domingo, julho 13
Mendigos (2)
Repete-se o texto:
A maioria dos que agora somos ainda não tinha nascido. Uns quantos viram e romantizaram. Outros não viram ou não se lembram. Eu não esqueço, e continua a doer-me a recordação do tempo em que os mendigos batiam às portas da minha aldeia transmontana. Às portas dos pobres, que eram quem mais pronto lhes dava a esmola. (*)
(*) As fotografias são do começo dos anos 50.
A maioria dos que agora somos ainda não tinha nascido. Uns quantos viram e romantizaram. Outros não viram ou não se lembram. Eu não esqueço, e continua a doer-me a recordação do tempo em que os mendigos batiam às portas da minha aldeia transmontana. Às portas dos pobres, que eram quem mais pronto lhes dava a esmola. (*)
(*) As fotografias são do começo dos anos 50.
sábado, julho 12
iPod
Compreende-se a excitação, compreende-se o hype gerado pelo comércio, compreende-se a tontura dos jovens e menos jovens pelo brinquedo.
Mas tudo sofre se recordo a compra, no Verão de 1996, do meu primeiro telemóvel, um Nokia tipo NHE-4NX (Made in Germany) com 17 cm de comprimento, 5,5 cm de largura, 3.3 cm de espessura e 314 gr de peso. Esse Nokia era uma formidável novidade. O iPod, desculpem lá, é apenas um melhoramento.
Mas tudo sofre se recordo a compra, no Verão de 1996, do meu primeiro telemóvel, um Nokia tipo NHE-4NX (Made in Germany) com 17 cm de comprimento, 5,5 cm de largura, 3.3 cm de espessura e 314 gr de peso. Esse Nokia era uma formidável novidade. O iPod, desculpem lá, é apenas um melhoramento.
sexta-feira, julho 11
quinta-feira, julho 10
A mulher
Porque me acontece pisar alguns dos carreiros transmontanos por onde também ele andou, e a sua prosa às vezes faz eco aos meus sentimentos, releio o Diário de Miguel Torga. Copio do volume XIII:
“Coimbra, 12 de Outubro de 1978 – A mulher! Não me canso de a exaltar. O que o homem é a seu lado! Um Adão inocente, um Édipo perplexo, um Otelo cego. Flor emblemática da Criação, perfumada de futilidade, só ela sabe pecar sem remorsos, procriar sem vanglória, entender sem lógica. E sofrer paradigmaticamente, já que foi sempre a Antígona heróica da grande tragédia da vida. Dona do mundo e depositária do futuro, nunca o quis parecer, sequer. Gentilmente, deixou essa presunção ao pobre companheiro que, depois de tantos milénios de convívio, continua a revolucionar os tempos, sem perceber que é ela o cordão umbilical da História.”
“Coimbra, 12 de Outubro de 1978 – A mulher! Não me canso de a exaltar. O que o homem é a seu lado! Um Adão inocente, um Édipo perplexo, um Otelo cego. Flor emblemática da Criação, perfumada de futilidade, só ela sabe pecar sem remorsos, procriar sem vanglória, entender sem lógica. E sofrer paradigmaticamente, já que foi sempre a Antígona heróica da grande tragédia da vida. Dona do mundo e depositária do futuro, nunca o quis parecer, sequer. Gentilmente, deixou essa presunção ao pobre companheiro que, depois de tantos milénios de convívio, continua a revolucionar os tempos, sem perceber que é ela o cordão umbilical da História.”
quarta-feira, julho 9
Festa de casamento
Cena banal, mas cheia de humor, e que noutra altura, com disposição diferente, talvez me passasse despercebida. Mais tarde, o que depois se quer descrever: quadro, luz, personagens, gestos, sai vago e baço, truncado. Os acrescentos, os arranjos, a busca de um equilíbrio nas palavras, aumentam a distorção, carregam a banalidade. Só os olhos registam. E o momento de humor, tão breve, ao acontecer já é lembrança.
Três mulheres de idade. Paradas diante da porta como ovelhas que hesitam em atravessar um fosso. Agarrada à ombreira, arfando, a equilibrar o peso sobre o joelho, a primeira iça-se – não sobe, iça-se – sobre o degrau que separa o restaurante da sala e, dando meia volta, espera que as outras se icem também.
Dão-se os braços em apoio, vejo-as encaminhar-se para a minha mesa, o meu interesse tornado desagrado e irritação. Vozes descontroladas, meias frases, o riso desconexo, a lentidão cambaleante de quem já bebeu e se vai embebedar.
Avançam inclinadas para a frente, navios a atacar ondas imaginárias, popa ao alto, as saias repuxadas. Bustos, ventres e nádegas de dimensões alheias à magreza descarnada das pernas. Blusas de floreados e, a transparecer, cingindo mal as regueifas, o correame com que se apertaram.
Direitas a mim, como se as outras mesas, quase todas vazias, lhes fossem invisíveis. Flacidez, pregas, encorrilhas da carne que os decotes domingueiros levianamente mostram. Todas três assim, nem que tivessem combinado, ou procurando talvez a segurança que a igualdade dá. Sorriem-me. Sorrio.
Se se podiam sentar? Pois podiam, claro. Não, eu não esperava mais ninguém. Estivessem à vontade. Realmente era cedo ainda. Não, não tínhamos sido os primeiros a chegar. Mas quase. O senhor de cabelo branco? Eu não conhecia. Elas também não. E vá de rir com a grande piada.
- Importa-se? Podia chegar a mesa para este lado?
O contacto desagradável e mole da mão pousada no meu braço. Anéis a mais, pulseiras desirmanadas, um verniz das unhas do tempo da rumba.
Aproveitei para empurar discretamente a cadeira e pôr-me de través. Não fazia ideia quem fossem. Família da noiva. Talvez vizinhas.
A empregada veio com uma bandeja cheia de copos e pôs-me diante a cerveja que eu tinha pedido, a espuma a derramar.
- Olhe! Faz favor…
A velha estendeu o braço, mas a rapariga não quis ouvir, desaparecendo por entre os que chegavam, a bandeja erguida acima da cabeça, profissional e desinteressada.
Três mulheres de idade. Paradas diante da porta como ovelhas que hesitam em atravessar um fosso. Agarrada à ombreira, arfando, a equilibrar o peso sobre o joelho, a primeira iça-se – não sobe, iça-se – sobre o degrau que separa o restaurante da sala e, dando meia volta, espera que as outras se icem também.
Dão-se os braços em apoio, vejo-as encaminhar-se para a minha mesa, o meu interesse tornado desagrado e irritação. Vozes descontroladas, meias frases, o riso desconexo, a lentidão cambaleante de quem já bebeu e se vai embebedar.
Avançam inclinadas para a frente, navios a atacar ondas imaginárias, popa ao alto, as saias repuxadas. Bustos, ventres e nádegas de dimensões alheias à magreza descarnada das pernas. Blusas de floreados e, a transparecer, cingindo mal as regueifas, o correame com que se apertaram.
Direitas a mim, como se as outras mesas, quase todas vazias, lhes fossem invisíveis. Flacidez, pregas, encorrilhas da carne que os decotes domingueiros levianamente mostram. Todas três assim, nem que tivessem combinado, ou procurando talvez a segurança que a igualdade dá. Sorriem-me. Sorrio.
Se se podiam sentar? Pois podiam, claro. Não, eu não esperava mais ninguém. Estivessem à vontade. Realmente era cedo ainda. Não, não tínhamos sido os primeiros a chegar. Mas quase. O senhor de cabelo branco? Eu não conhecia. Elas também não. E vá de rir com a grande piada.
- Importa-se? Podia chegar a mesa para este lado?
O contacto desagradável e mole da mão pousada no meu braço. Anéis a mais, pulseiras desirmanadas, um verniz das unhas do tempo da rumba.
Aproveitei para empurar discretamente a cadeira e pôr-me de través. Não fazia ideia quem fossem. Família da noiva. Talvez vizinhas.
A empregada veio com uma bandeja cheia de copos e pôs-me diante a cerveja que eu tinha pedido, a espuma a derramar.
- Olhe! Faz favor…
A velha estendeu o braço, mas a rapariga não quis ouvir, desaparecendo por entre os que chegavam, a bandeja erguida acima da cabeça, profissional e desinteressada.
terça-feira, julho 8
Mendigos (1)
A maioria dos que agora somos ainda não tinha nascido. Uns quantos viram e romantizaram. Outros não viram ou não se lembram. Eu não esqueço, e continua a doer-me a recordação do tempo em que os mendigos batiam às portas da minha aldeia transmontana. Às portas dos pobres, que eram quem mais pronto lhes dava a esmola. (*)
(*) As fotografias são do começo dos anos 50
(*) As fotografias são do começo dos anos 50
domingo, julho 6
Alforges (6)
Tempestade
De manhã cedo, antes de sairem de casa, ele tinha dito que era melhor levarem guarda-chuvas, porque o dia não passava sem chover. Uma olhadela ao céu fora bastante para o seu instinto de marinheiro. Aqueles pontinhos cinzentos e negros a acumular-se no horizonte não eram barcos, como tinha dito a sogra a olhar pelo binóculo, mas as nuvens que agora, empurradas pelo vendaval, descarregavam aguaceiros sobre a praia.
O sogro, a vizinha e os miúdos, tinham-se abrigado dentro da barraca. Os outros correram para uma taberna que havia ali perto. Ele e a mulher, por teimosia, como se a chuva os não molhasse, e não fazendo caso da cunhada, que de longe berrava para que se abrigassem, permaneciam sentados na areia, imóveis, encarando-se, tal como se achavam quando a zanga e a tempestade tinham começado.
Nos últimos tempos as brigas eram para eles prato diário, regular e fatal como a acção e reacção das leis da natureza. Uma palavra, às vezes só um gesto, uma toalha caída no chão, um palito numa xícara, um pouco de cinza de cigarro deitada por desleixo num prato - e pronto! - rebentava a zaragata.
Os insultos explodiam. Deitavam-se à cara pecados velhos julgados esquecidos, culpas remotas, birras que datavam da juventude em que se tinham namorado. Mesmo as palavras ternas doutras ocasiões lhes serviam para magoar.
- Não te atrevas, Maria! Olha que um dia mato-te!
Da primeira vez a ameaça teatral a tinha assustado, chegou mesmo a fugir para a rua. Mas daí em diante, mal ele começava aos pulos, a gritar que a esfaqueava, ela ia ao guarda-loiça da cozinha, pegava na faca de cortar o peixe e punha-lha na mão:
- Toma lá!
- Não me tentes, mulher! Não me faças perder a cabeça!
Exagerando o tremor pousava a faca sobre a mesa. Depois as mãos, tensas, a hesitar, remexiam nos bolsos à procura dos cigarros e do isqueiro.
Em geral as desavenças terminavam assim. Ele, em silêncio, oferecia-lhe um cigarro que ela aceitava, acendia-lho, e às vezes iam depois juntos ao café beber uma cerveja: o cessar-fogo entre duas batalhas.
De longe a longe tinha sucedido serem aquelas cenas a causa indirecta de inesquecíveis jantares, e o filho do meio talvez nunca viesse a saber que fora gerado por descuido, depois de uma dessas refeições copiosas, cheias de promessas, de nunca mais, de votos de paz para o futuro.
Continuavam sentados e não parava de chover. Ambos teimosos, ele de calção de banho, a tiritar, ela com um biquíni fora de moda. Ainda se ouvia o trovão, mas os relâmpagos tinham cessado e, no horizonte, o céu mostrava já uma aberta azul.
- Tens lume? - perguntou ele, mostrando os cigarros encharcados.
Ela desatou às gargalhadas e deitou-lhe o braço pelos ombros.
De manhã cedo, antes de sairem de casa, ele tinha dito que era melhor levarem guarda-chuvas, porque o dia não passava sem chover. Uma olhadela ao céu fora bastante para o seu instinto de marinheiro. Aqueles pontinhos cinzentos e negros a acumular-se no horizonte não eram barcos, como tinha dito a sogra a olhar pelo binóculo, mas as nuvens que agora, empurradas pelo vendaval, descarregavam aguaceiros sobre a praia.
O sogro, a vizinha e os miúdos, tinham-se abrigado dentro da barraca. Os outros correram para uma taberna que havia ali perto. Ele e a mulher, por teimosia, como se a chuva os não molhasse, e não fazendo caso da cunhada, que de longe berrava para que se abrigassem, permaneciam sentados na areia, imóveis, encarando-se, tal como se achavam quando a zanga e a tempestade tinham começado.
Nos últimos tempos as brigas eram para eles prato diário, regular e fatal como a acção e reacção das leis da natureza. Uma palavra, às vezes só um gesto, uma toalha caída no chão, um palito numa xícara, um pouco de cinza de cigarro deitada por desleixo num prato - e pronto! - rebentava a zaragata.
Os insultos explodiam. Deitavam-se à cara pecados velhos julgados esquecidos, culpas remotas, birras que datavam da juventude em que se tinham namorado. Mesmo as palavras ternas doutras ocasiões lhes serviam para magoar.
- Não te atrevas, Maria! Olha que um dia mato-te!
Da primeira vez a ameaça teatral a tinha assustado, chegou mesmo a fugir para a rua. Mas daí em diante, mal ele começava aos pulos, a gritar que a esfaqueava, ela ia ao guarda-loiça da cozinha, pegava na faca de cortar o peixe e punha-lha na mão:
- Toma lá!
- Não me tentes, mulher! Não me faças perder a cabeça!
Exagerando o tremor pousava a faca sobre a mesa. Depois as mãos, tensas, a hesitar, remexiam nos bolsos à procura dos cigarros e do isqueiro.
Em geral as desavenças terminavam assim. Ele, em silêncio, oferecia-lhe um cigarro que ela aceitava, acendia-lho, e às vezes iam depois juntos ao café beber uma cerveja: o cessar-fogo entre duas batalhas.
De longe a longe tinha sucedido serem aquelas cenas a causa indirecta de inesquecíveis jantares, e o filho do meio talvez nunca viesse a saber que fora gerado por descuido, depois de uma dessas refeições copiosas, cheias de promessas, de nunca mais, de votos de paz para o futuro.
Continuavam sentados e não parava de chover. Ambos teimosos, ele de calção de banho, a tiritar, ela com um biquíni fora de moda. Ainda se ouvia o trovão, mas os relâmpagos tinham cessado e, no horizonte, o céu mostrava já uma aberta azul.
- Tens lume? - perguntou ele, mostrando os cigarros encharcados.
Ela desatou às gargalhadas e deitou-lhe o braço pelos ombros.
sábado, julho 5
Blogroll
Num mail cheio de pontos de interrogação, a amiga, preocupada, quis saber o que tinha eu feito ao Diogo.
- Nada! Nem o conheço. Mas porquê?
- É que ele tirou o título do teu blogue do blogroll do dele.
- E isso importa?
Ela achava que sim, pois blogue a sério tem lugar cativo nos blogrolls do Eduardo, do João, e do Francisco, da Ana, do Pedro, do Zé Mário, do Fernando…
Senti-me tentado a responder com a desculpa de Eça a Ramalho, dizendo como ele: “É que eu estou longe! Não sei dessas coisas!...”
Mas o longe deixou de existir, os tempos são outros, a única explicação que lhe pude dar é que continuo fraco no que respeita contactos e etiqueta.
- Nada! Nem o conheço. Mas porquê?
- É que ele tirou o título do teu blogue do blogroll do dele.
- E isso importa?
Ela achava que sim, pois blogue a sério tem lugar cativo nos blogrolls do Eduardo, do João, e do Francisco, da Ana, do Pedro, do Zé Mário, do Fernando…
Senti-me tentado a responder com a desculpa de Eça a Ramalho, dizendo como ele: “É que eu estou longe! Não sei dessas coisas!...”
Mas o longe deixou de existir, os tempos são outros, a única explicação que lhe pude dar é que continuo fraco no que respeita contactos e etiqueta.
sexta-feira, julho 4
Novidade?
Leio que estão à venda portáteis que medem pouco e pesam quase nada. Claro que são formidáveis no volume da memória e na velocidade dos cálculos. Este meu IBM PS/note de 1992, ainda vivo, pouco disso tem, mas mede tanto como uma folha A4, 5 cm de espessura e 1.8 kg. de peso. O ecrã é a preto e branco.
Alforges (5)
A vida do campo
“O lavrador não necessita de relógio. Regulado pelo ritmo do sol, pela terra, pelas estações do ano, a sua vida desenrola-se harmoniosamente. Ao contrário do que acontece com o citadino, a família do lavrador não inclui somente a mulher, os filhos, os pais e os primos, mas também os pomares, os prados, os animais. Ele é capaz de falar seriamente com um cão, uma vaca, um castanheiro, pois a sua sensibilidade é idêntica para uma árvore, um bicho, um parente ou um vizinho. Infelizmente, porém, a maior parte dos benefícios que saem da terra não pertencem ao lavrador. Os bancos e os intermediários exploram o seu trabalho e são eles que, finalmente, sem esforço, recebem a parte maior.”
Rafael, vinte e quatro anos, solteiro, desempregado, morador num quarto de águas-furtadas, leu duas vezes o artigo do jornal. Lavrador. Tinha a impressão de que lhe agradaria ser lavrador. Já por várias vezes tinha fantasiado como seria agradável viver no campo. A luminosidade do céu! Os cheiros!... Via-se a sair de manhã cedo, acompanhado por dois (ou três?) cães.
A mulher - supunha-se casado, sem filhos, preparava o almoço, depois de ter colhido na horta os legumes que ele cuidadosamente plantara. Tudo natural, puro, segundo as velhas leis da natureza que garantiam a saúde e a sobrevivência.Ao meio-dia regressaria a casa. A pé? A cavalo? A falar verdade a sua preferência ia para o cavalo, se pudesse ser um baio como os da polícia.
Dormiria a sesta. Depois, aí por volta das quatro da tarde, voltaria para a montanha. Se chovesse ficaria em casa, na sala, diante da lareira acesa. A mulher - era extraordinário não ser capaz de imaginar o timbre de voz que ela teria, como também ainda estava indeciso se os olhos seriam castanhos ou azuis - a mulher, pois, continuava na cozinha, agora a lavar a loiça.
Talvez lesse um bocado, os cães e os gatos (dois) estirados diante do lume. A chuva continuaria a cair grossa, mesmo depois do anoitecer, só mais tarde é que a lua banharia as vertentes com a sua luz pálida.
Fantasiava ver-se a caminho da feira numa manhã de sol, o camião carregado de ovelhas, os cães sentados ao seu lado. A seguir à venda dos animais iria ao café beber com os amigos.
Certas noites seriam de tempestade e trovão, os relâmpagos iluminando a aldeia com estranhos clarões. A mulher, assustada e a tremer, agarrava-se a ele.
Alguém batia à porta . Foi abrir. Era a Teresa, o “esqueleto” do andar de baixo que há meses o não deixava em paz, aparecendo às horas menos convenientes.
- Estavas a ler? - perguntou ela, apontando o jornal.
- Um artigo.
- Sobre quê?
Não respondeu, incomodado com aquela curiosidade, mas também porque inconscientemente detestava mulheres magras. A sua, mulher de lavrador, teria a postura da gente do campo, cheia sem ser gorda, de peitos repletos.
- De que trata? - insistiu ela.
- O quê?
- O artigo.
- Da miséria dos lavradores. É uma vergonha. O lavrador é um escravo da banca e do comércio.
- Achas?
- Acho - disse ele, irritado.
Ela sorriu e começou a despir-se.
“O lavrador não necessita de relógio. Regulado pelo ritmo do sol, pela terra, pelas estações do ano, a sua vida desenrola-se harmoniosamente. Ao contrário do que acontece com o citadino, a família do lavrador não inclui somente a mulher, os filhos, os pais e os primos, mas também os pomares, os prados, os animais. Ele é capaz de falar seriamente com um cão, uma vaca, um castanheiro, pois a sua sensibilidade é idêntica para uma árvore, um bicho, um parente ou um vizinho. Infelizmente, porém, a maior parte dos benefícios que saem da terra não pertencem ao lavrador. Os bancos e os intermediários exploram o seu trabalho e são eles que, finalmente, sem esforço, recebem a parte maior.”
Rafael, vinte e quatro anos, solteiro, desempregado, morador num quarto de águas-furtadas, leu duas vezes o artigo do jornal. Lavrador. Tinha a impressão de que lhe agradaria ser lavrador. Já por várias vezes tinha fantasiado como seria agradável viver no campo. A luminosidade do céu! Os cheiros!... Via-se a sair de manhã cedo, acompanhado por dois (ou três?) cães.
A mulher - supunha-se casado, sem filhos, preparava o almoço, depois de ter colhido na horta os legumes que ele cuidadosamente plantara. Tudo natural, puro, segundo as velhas leis da natureza que garantiam a saúde e a sobrevivência.Ao meio-dia regressaria a casa. A pé? A cavalo? A falar verdade a sua preferência ia para o cavalo, se pudesse ser um baio como os da polícia.
Dormiria a sesta. Depois, aí por volta das quatro da tarde, voltaria para a montanha. Se chovesse ficaria em casa, na sala, diante da lareira acesa. A mulher - era extraordinário não ser capaz de imaginar o timbre de voz que ela teria, como também ainda estava indeciso se os olhos seriam castanhos ou azuis - a mulher, pois, continuava na cozinha, agora a lavar a loiça.
Talvez lesse um bocado, os cães e os gatos (dois) estirados diante do lume. A chuva continuaria a cair grossa, mesmo depois do anoitecer, só mais tarde é que a lua banharia as vertentes com a sua luz pálida.
Fantasiava ver-se a caminho da feira numa manhã de sol, o camião carregado de ovelhas, os cães sentados ao seu lado. A seguir à venda dos animais iria ao café beber com os amigos.
Certas noites seriam de tempestade e trovão, os relâmpagos iluminando a aldeia com estranhos clarões. A mulher, assustada e a tremer, agarrava-se a ele.
Alguém batia à porta . Foi abrir. Era a Teresa, o “esqueleto” do andar de baixo que há meses o não deixava em paz, aparecendo às horas menos convenientes.
- Estavas a ler? - perguntou ela, apontando o jornal.
- Um artigo.
- Sobre quê?
Não respondeu, incomodado com aquela curiosidade, mas também porque inconscientemente detestava mulheres magras. A sua, mulher de lavrador, teria a postura da gente do campo, cheia sem ser gorda, de peitos repletos.
- De que trata? - insistiu ela.
- O quê?
- O artigo.
- Da miséria dos lavradores. É uma vergonha. O lavrador é um escravo da banca e do comércio.
- Achas?
- Acho - disse ele, irritado.
Ela sorriu e começou a despir-se.
quinta-feira, julho 3
Disposição
Disposição como a que neste momento sinto não é boa conselheira para tratar do que, também neste momento, me incomoda ou aborrece. Um pouco mais de meia hora de “passeio” pela blogosfera portuguesa, uma vista de olhos a uns quantos jornais, e pronto, a boa disposição matinal levou um pontapé. Azedei. Ele é um não-acabar de pedantices e gastronomias, análises políticas de um partidarismo tonto, análises económicas idem, elitismo bacoco, referências a filósofos obscuros mas "geniais", pareceres sobre George W. Bush cum suis, vaidades que me pergunto se aquilo não está a pedir manicómio…
Em forma de exorcismo deixo aqui esta fotografia,(*) tirada num tempo em que era maior a minha esperança na simplicidade do mundo e na do meu semelhante.
---------------------
Feira do gado em Moncorvo, 09-1972.
(Clique para aumentar)
Subscrever:
Mensagens (Atom)