Três anos atrás, quando comecei a escrever (n)este blogue, a impressão que tinha era de que se tratava de uma espécie de passatempo. Compunha umas frases, por vezes uma história, e ao ver depois aquilo "publicado" no ecrã do computador, ressentia um estranho contentamento. Era assim a modos de realizar o sonho de quando, ainda menino, colava umas nas outras folhas rabiscadas e com elas fazia o meu próprio jornal.
O que de início foi ocupação esporádica, com o correr do tempo transformou-se em tarefa regular, absorvente, tanto mais gratificante quanto escapa às tenazes da economia. É actividade gratuita, não lucrativa, libertária, de independência total num contexto sem imposições nem hierarquias, medos ou cadilhos, na realidade aquela que melhor condiz com o meu espírito anárquico.
Apresenta ainda um aspecto particular: o do leitor. Em minha opinião o leitor do blogue tem uma atitude diversa da de quando lê um jornal ou um livro, e há de parte a parte um contacto mais íntimo, quase que personalizado, independente das caixas de comentários (ausentes neste) ou das possibilidades do e-mail. Pode bem ser que isso derive da recorrência dos visitantes que o Sitemeter regista, e da impressão, talvez falsa, de que as visitas são feitas por interesse, não por acaso.
Seja de que modo for, tenho tido com isto inesperadas satisfações, entre elas a alegre ilusão de que, em momentos que posso verificar, há gente com curiosidade de ler o que pus hoje no TC.
Assim, você que até aqui chegou, saiba que lhe estou grato por esta "conversa", que só na aparência é de sentido único.
Café De Jaren, Nieuwe Doelenstraat 20, Amsterdam. Dois andares de salas espaçosas, o rio Amstel a tocar-lhe a esplanada, um pessoal feminino escolhido a dedo pela amabilidade e a beleza.
Quando passo por lá, em geral entro, se bem que aquilo seja mais lugar para yuppies and beautiful people do que para reformados. Acontece, porém, que tenho uma relação de nostalgia com o edifício, que antes de ser café foi banco, e antes de ser banco teve lá instalado durante muitos anos o instituto de dramaturgia da universidade. Nele aprendi umas coisas de teatro, desaprendi outras, ganhei a certeza de que escrever para o palco estava fora do meu alcance, mas desse passado guardei simpatias que perduram.
Assim, pois, se como ontem me acontece ir por ali, vêm as recordações, pago-me um café. Talvez por ser a meio da tarde, havia pouca gente e consegui sentar-me a uma das mesas mais cobiçadas, as que ficam junto da grande vidraça que dá para a esplanada e para o rio. O tempo morrinhento parecia influir no tom das conversas, que se mantinham num discreto zum-zum.
A excepção era a mesa junto da minha, onde duas jovens mulheres ora bichanavam aos ouvidos uma da outra, ora explodiam em gargalhadas.
Num gesto descuidado uma delas empurrou a cadeira contra a minha. Quando se voltou a pedir desculpa dei-me conta que era a bela e talentosa actriz que recentemente contracenou num filme com Tom Cruise. Sorriu, murmurou uma desculpa, acenei e ela voltou-se de novo para a amiga, retomando a conversa.
- Não compreendo – dizia aquela – Ele sempre teve essa fama. Já durante o primeiro casamento era assim. O que eu gostava de saber era como é que fazes para o acalmar.
A resposta saiu clara e em voz alta, acompanhada pelo riso de ambas, mas ninguém pareceu dar conta.
É uma vergonha. Ou melhor: são duas vergonhas, e não adianta esconder. Confesso já. Mesmo que não me livre do peso, fica o consolo de ter demonstrado carácter.
Primeira vergonha: tenho uma coisa com Mónica Marques. Tentarei explicar adiante as circunstâncias que a originaram, tanto mais bizarras quanto eu nada sei da pessoa.
Referir a segunda vergonha dói mais ainda: daqui a escassos meses faço oitenta anos.
Ambos estes elementos emprestam um sabor amargo a uma situação que algures, por exemplo na Índia ou no Iémen, é corrente nos usos e sancionada pelo Livro. O proibido entre nós, o geronte que se oferece uma garota de dez anos ou doze anos, é nessas paragens coisa corriqueira, olhada até como sensível conforto da velhice.
Continuando. Entre os vinte e poucos e os quase quarenta, muito andei entre o Rio e São Paulo. Não juro que tenha sido tempo paradisíaco, mas por entre os trambolhões houve também horas de folia em que Evas, dextras nas coisas do feitiço e do candomblé, me tentaram com mais de uma maçã.
São isso episódios de meio século passado e a memória vai diluindo a lembrança dos corpos, as juras feitas. Mantém-se, mas ténue, a visão de um sorriso, uma meiguice, a luz da tarde num apartamento da Avenida Atlântica, o rosto de Donatella, enfim, momentos desses. No todo são como que acontecimentos de uma vida que, de tão agitada, hoje me parece alheia e contrasta forte com a pacatez dos meus dias.
Infelizmente, uns meses atrás, oito, para ser exacto, essa pacatez foi perturbada quando pessoa amiga, conhecedora das citadas vivências, me ofereceu um livro intitulado Transa Atlântica, acrescentando, cúmplice, que de certeza o acharia interessante.
- Marques? Do García Márquez?
- Não. Da Mónica Marques.
Desconhecia a dama, transa não era vocábulo do meu tempo, mas lá o encontrei no Houaiss, e dos significados escolhi o que melhor acompanhava as pernas nuas e a minissaia da capa.
Devo dizer que de começo estranhei e a leitura não me entusiasmou. Mas à medida que nela progredia, fui caindo de susto em assombro, menos por culpa da autora, do que pelo transtornado desejo que sempre tenho de ser personagem nas histórias doutrem. Se a coisa me atrai, em vez de ler tresleio, quando dou por mim estou enterrado até às orelhas nas reviravoltas da vida alheia. Mas desta vez exagerei mais do que costumo, fazendo do que lia o pano de fundo da minha alucinação.
Assim me vi num Éden sem passado nem futuro, só presente, abundante de festa e sol, caipirinhas, praias douradas, Mónicas púberes e menos púberes, Donatellas maduras, mulatas com o sangue de sete nações, aqui e ali um garanhão, além uma corça, acolá um doce veado.
Estava eu nesse enlevo, certo de que se iriam repetir os gozos dos meus melhores anos, quando em modo igual ao com que Vénus e Ursula Andress ("a major sex symbol of the 1960s and James Bond object of desire in Dr. No") saemdas ondas, se ergueu radiante uma jovem esbelta, felina e pernilonga que, estendendo ambas as mãos ...
Os abanões da minha mulher, perguntando se me tinha dado alguma coisa – com os idosos nunca se sabe - demoraram a tirar-me do devaneio, mas por fim, fechando o livro e escondendo a capa, balbuciei que me sentia cansado.
- Leitura interessante?
Tomei o modo afectado de quem só lê a Agustina :
- Nestes modernos é sexo e mais sexo, bebida, festa... A rapariga escreve escorreito, é original e mostra talento...
- Rapariga? Conhece-la?
Com característica leviandade feminina virou-me as costas, desinteressada da resposta.
À noite terminei o livro e sonhei o resto. Desde então, quando o abro, Mónica Marques, creio que é ela, sai dentre as páginas e dá-me o braço, sussurra ao ouvido que não tenho que ir fazer oitenta anos. Venda a alma, deixe-me levar, e ela mostrará como se volta aos trinta.
"Se o gajo é tão inteligente, porque é que não é rico?"
"Se ela fosse esperta não era criada de servir."
Frases assim são retrato impiedoso de quem as pronuncia.
Petulância, estupidez, auto-satisfação, ignorância do mundo e da vida, desdém pelo semelhante, a barriga cheia de certezas. Tento esquecer, mas se as oiço ou leio lá se me vai em estilhaços a compreensão e o amor do próximo. E isso é o que eles por maldade ou descuido dizem em voz alta, mal iria se soubéssemos o que lhes vai na cabeça.
Sapiente foi Ele, que nos criou desiguais e mascarados, pois se nos fosse dado ler pensamentos há muito que éramos espécie extinta.