domingo, maio 31

Um lado bom da quarentena


Vai para três meses que o sono é a sua benfeitoria e sinceramente dá graças, pois se antes lho tivessem perguntado o Serafim Baptista afirmaria, com aquele exagero que guardamos da infância quando vemos tudo em grande, que a sua vida tem sido uma de constantes irritações e insónias.
De modo geral, em questões de sono e repouso todos temos fraca memória e muitas vezes, se numa noite nos calham duas ou três horas em branco, guardamos daí uma impressão de excessivo cansaço e desconforto, por vezes também o inquietante sentimento de que nos espera má nova ou contrariedade, se bem que para a maioria o quotidiano pouco espaço deixe para atentar em presságios, hoje ainda menos com esta tontice da pandemia, o mundo inteiro em sobressalto e na santa esperança de que se taparmos a cara o vírus cansa-se de nos afligir e vai-se embora.
À semelhança de quase todos os tagarelas, o Serafim tem um modo particular de na conversa saltar de um assunto para outro, e isso tanto para manter presa a atenção de quem o atura como para evitar que o interrompam, mas no seu caso também para satisfazer a infundada vaidade de que o timbre da sua voz iguala o de um tenor de ópera, bizarria que com mais umas quantas se lhe perdoa, pois além de fiel na amizade é aquele tipo de pessoa de quem se diz que seria incapaz de fazer mal a uma mosca.
Nada e criada em Bilbao, a Maruxa e ele já festejaram as bodas de prata, não têm filhos, vivem em razoável mediania, quem os vir dirá que são um casal sessentão daqueles que sugerem uma vida pacata e de conformismo, refeições a horas certas, avessos a mexericos, cautelosos na familiaridade com a vizinhança.
Essa é a aparência, a fachada que mostram na rua, o casal que se vê passar e sem hesitação se imagina ternurento, mas entre quatro paredes outro galo canta, diz ele que se fosse questão de poder escolher de boa vontade aguentaria um inferno para não ter de sofrer aquele purgatório, uma mulher com quem nunca se sabe de que lado sopra o vento, pois é pontada aqui e pontada ali, enxaquecas, verrugas, nevralgias, constantemente a apalpar o corpo em busca de mazelas, vendo cancros em cada borbulha, nas manchas da pele, o quarto de banho uma farmácia.
Jura que não lhe passaria pela cabeça ser insensível ao drama que vai pelo mundo, mas no instante em que ouviu falar da iminência de quarentena foi como um relâmpago: a obrigação de Maruxa, filha única, era correr a Bilbao dar-se conta de que aos pais nada faltava.
- E lá está, coitada!

sábado, maio 30

A desobediência à lei


Como milhões doutros desde Março estou na situação de condenado ao isolamento, cumprindo pena de prisão domiciliar e com o favor de umas fugidias ocasiões para respirar ar fresco. Não serei eu a discutir os prós e os contras do mandamento que de uma maneira ou outra a todos afecta, para isso há sobra de comentadores e especialistas de ramos variados, qual deles o mais histérico a anunciar o terror da morte lenta por asfixia.
Deus lhes perdoe e a mim também, que comecei a escrever isto com outro propósito e me ia deixando arrastar pelo pasmo de que não seja necessária uma ditadura para nos cortar a liberdade de maneira tão radical e, dolorosa surpresa, com o apoio da maioria.
Estou pois fechado desde Março e ontem telefonou uma amiga dizendo que me viria entregar um documento, o que aconteceu a meio da tarde. Ao toque da campainha abri a porta, encarámo-nos, o documento provavelmente caiu, só recordo que nos abraçámos e beijámos com a amizade que nos temos há décadas. Ficou para um café, depois para jantar e uma maratona de conversa, deixando-me o curioso sentimento de como era boa a vida no antigamente de Fevereiro passado, como podem ter tanto valor os beijos e os abraços da amizade e o gosto que dá desobedecer ao que manda a ditadura..

sexta-feira, maio 29

Questão de gostos

(Clique)
Eduardo Pitta, homem elegante, dá hoje aqui um deplorável exemplo da galantaria nacional. É pena, porque no mesmo artigo de Elsevier lá se diz que a “bazuca” não terá a potência que o governo português deseja, mas sempre irão umas “migalhas” substanciais, que infelizmente não chegarão para tapar tanto buraco nem para encher todos os bolsos.