sexta-feira, março 30

"Bonzinho"

Descobri que era tímido por volta dos oito ou nove anos, ao ouvir minha mãe dizer a uma vizinha que eu era "bonzinho".
Pelos jeitos aquele "bonzinho" era o nome colectivo para os meus temores, vergonhas, acanhamentos, e o mais que me levava a baixar os olhos, tremer, fechar a boca, punha depois em estado cataléptico e com vontade de sumir.
Já adulto, muitas vezes tive de respirar fundo e, como se o fizesse a um terceiro,  dar-me mentalmente empurrões para ser capaz de subir a um pódio e falar a um público, pois a vontade que tinha era de esconder-me ou deitar a fugir.
O tempo e a experiência foram pouco a pouco diminuindo o meu acanhamento, mas só passados os sessenta me vi definitivamente livre dele. Grande alívio. Já não tropeço no hall dos hotéis, converso nas festas, não gaguejo nas entrevistas, não coro quando se me dirigem, vivo sossegado, senhor de mim, jamais fama, autoridade ou poder me fará baixar os olhos ou arrepiar caminho. Finalmente sou como deveria ter sido desde menino, deixei de ser "bonzinho".

quinta-feira, março 29

"... é como quem não vê".

Dizem os que não sabem, que para tudo há uma idade. A infância para os brinquedos, na juventude os amores, aos trinta e quarenta tratar da vida, a seguir o declínio, para os velhos o repouso e a solitude da antecâmara da eternidade.
Além de que semelhantes asserções se prestam a confusão, quem as enuncia tiraria proveito se pensasse duas vezes, olhasse para si próprio, olhasse depois em redor e, cuidadosamente, só então abrisse a boca.
É escasso o interesse que tenho em saber o que vai na cabeça do meu semelhante, que ideia faz ele do mundo, ou que miragens o divertem, mas de vez em quando sou confrontado com afirmações, não direi de ignorantes, mas de ingénuos que deslizem alegremente na arrogância da pouca tarimba.
Digo isto com conhecimento de causa, pois à volta dos dezoito ou quê também tive essa fase.
Acontece agora que, depois de debitar ontem aqui umas divagações sobre o amor, vêm duas damas, que suponho jovens, repreender-me pelo que lhes parece ridículo e baboso.
Aos seus olhos assim será, e talvez elas encontrem apoio na conhecida expressão: "If youth only knew: if age only could!". Mas excepções abundam, e é privilégio ter um  passado para recordar e fruir alegremente o presente.

quarta-feira, março 28

Sem peias nem travões

Imagino-o por vezes, mas nunca o farei. Não te vou dizer palavras de carinho e conforto, dar  esperança, iludir-te com fantasias de beleza, adormecer-te com a promessa de ilhas encantadas,  juventude eterna. Quero-te bem demais para te enganar ou possuir. E porque assim é não te mostrarei caminhos, nem livrarei de perigos e sorvedouros. Se errares, ou caíres, serei o primeiro ao teu lado, mas não ouvirás culpas nem censuras.
Há quem jure que o amor é prisão, deliciosa prisão, fantasiam-no com grades, desejam-se carcereiros. Esses desconhecem o puro afecto, de nada adianta dizer-lhes que o amor é liberdade sem peias nem travões, comunhão milagrosa dos que por inteiro se querem dar.

terça-feira, março 27

Potência

Discordam sobre os detalhes. Ela já não sabe se tinha visto na televisão ou lido na Caras, ele diz que se lembra muito bem, foi no jantar de anos do Amadeu, a Sílvia é que tinha ouvido na Renascença.
- Não foi não.
- Foi sim senhor.
Tê-los por companhia tornou-se incómodo. Fale-se da seca ou da carestia, ou do último enterro, e eles descobrirão maneira de voltar ao assunto Tomam um ar esquisito, começam a olhar para as mãos dos presentes, e ela, dada a inconveniências, não hesita em usar a força contra quem as esconde, põe-se a examinar os dedos com ares de vidente.
Vira a mão dum lado e doutro, mede, pisca o olho ao marido, este  examina com o modo do clínico que vem dar uma segunda opinião.
- É ou não é?
- De facto é – confirma ele. E dirigindo-se ao examinado: - Testosterona tens tu de sobra!
Esses são os que riem e acham interessante. Os fracos na hormona não apreciam a brincadeira, e há também os que vêm com exemplos e demonstrações em contrário, afirmando que a prova é feita com o dedo médio.
- Nada disso – explica ela. – O sentimento de agressividade do homem, a vontade de vencer, realizar, o drive sexual, tudo é condicionado pelo seu índice de testosterona. E esse é revelado pela diferença de tamanho do dedo anelar em relação ao dedo indicador. Grande diferença, grande potência. Pouca diferença ou tamanho igual…
Não é de estranhar que os amigos tenham começado a evitá-los, e alguns metam as mãos nos bolsos se por acaso os encontram.

segunda-feira, março 26

Cavaleiros, bosques e neblinas

Está nos trinta, mantém um blogue anónimo. Nele escreve uma prosa antiga de sentimentos e paisagens românticas, com abuso de luares, neblinas, manhãs radiosas, sedas e correrias de pés descalços sobre relvas orvalhadas, longos cabelos loiros agitados pela brisa, beijos castos, febres de paixão.
É também uma prosa de queixas. Ele, o amado, ora lhe segreda palavras divinais, ora se mostra frio, indiferente, quase bruto, para numa reviravolta a apertar nos braços e cobrir de beijos.
Não relata cenas de cama. Tudo acontece em jardins, em parques, quintas com casas senhoriais e castanheiros frondosos. Há Porsches junto da escadaria. Perpassam cavaleiros montados em animais de raça, e ela desejaria ver-se raptada, ameaçada, correndo perigo, milagrosamente salva quando já se sentia perdida. Salva, não pelo amado, mas por um belo e misterioso estranho, com quem, no último texto que dela li, caminha de mãos dadas e entranha-se num bosque, "no instante em que as labaredas do Sol poente incendeiam o horizonte."

Vai para cinco anos namora um dentista. Os pais são contra. O dentista não mostra entusiasmo, nunca fala de casar nem gosta de crianças, paixão tem-na pelo Jeep Cherokee e o Benfica.
Ela não compreende, entristece, pede que eu lhe explique e também - "Não há pressa, mas gostava" – que lhe diga o que penso da sua escrita.
Não tenho coragem de lhe dizer que não quero pensar sobre a escrita alheia, e que a minha já me esgota o ânimo.

domingo, março 25

O gosto da solidão

Para muitos será da idade, para mim é do temperamento, este gosto da solidão que tenho desde que me conheço, o bem-estar e paz sem explicações, sem respostas a dar ou atitudes a fingir.  Os livros são-me boa companhia, na escrita passo horas sem conta nem queixa.
A família compreende, os cães e os gatos sabem-no pelo sexto sentido.
Atento no que acontece no vasto mundo, oiço os vizinhos, mas é mais obrigação e hábito do que verdadeiro gosto ou necessidade. Não sou uma ilha, faço mesmo quanto posso para demorar a sê-lo, mas em redor vou levantando uma cerca feita de sorrisos, acenos, concordâncias, para na medida do possível escapar aos assaltos. Os da banalidade, mas também os das boas intenções, os daqueles que não se dão conta que nem todas as dores são para partilhar, e os que mantêm abaixo do sofrível a craveira dos seus interesses.
Quero aprender, mas dispenso que pretendam ensinar-me o que já sei ou, ingenuamente,  aconselhem receitas para a cura da minha prazenteira solidão.

sexta-feira, março 23

Altos voos

Desejo de altos voos sempre tive e continuo a ter, porque também para isso a idade não dá cura. Mas altos voos é modo de dizer, são antes esperanças, sonhos tontos, aqueles que nos tomam antes do adormecer, quando o entendimento abranda, dando a ilusão de que podemos moldar o amanhã e corrigir os desmandos do passado.
Numa miragem recorrente vejo-me bem outro do que sou, espanto-me da facilidade que então tenho de resolver questões, evitar atritos, ver só harmonias, de fugir aos perigos e amar o meu semelhante com o fervor que recomenda o catecismo.
O despertar recambia-me para o trivial,  e quando me vejo ao espelho não reconheço o sujeito, demora a que a imagem da realidade se sobreponha à da fantasia. Com verdade digo então  para comigo, cá estamos. Porque realmente somos dois, o dos altos voos e o que se pergunta que maldição o impede de voar.

quinta-feira, março 22

Um quadro

É meio-dia e pouco, ar de pesada quietude, em parte nenhuma sinal de vida ou afazeres, céu sem aves, silêncio de mau prenúncio.
Deste lado da estrada o terreno ondula, vai descendo até ao ribeiro, agora um fio de água bordado de árvores ressequidas. Searas de terra vermelha. Deveriam estar formosas de cereal crescido, mas só aqui e ali aparecem manchas de verdura que nem ao palmo chegam.
No descampado surpreende o vulto de uma anciã coberta de luto, curvada a mondar sabe-se lá o quê, ou a arrebanhar  sabe Deus que gravetos. Companhia não se lhe adivinha, nem burro, se veio só deve ter andado horas, porque aldeias por ali não há.
Abrando a marcha. Paro. Lá longe, ela não dá conta, tão-pouco quero perturbá-la. Fico um instante. Não sei se me impressiona a seca ou aquela solidão.

quarta-feira, março 21

O teatro do meu ontem

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Não preciso de fingir, nem sofro com a recordação das lutas e o amargor das derrotas: vivo o hoje, espero o amanhã, todas as noites baixo a cortina de ferro no palco do teatro do meu ontem.

terça-feira, março 20

As "maminhas" do Henrique

É assunto que há tempos me rodava na cabeça, mas disparou quando o Henrique Raposo anunciou aqui a agitação que ia na Tunísia devido às "maminhas" da menina e do desdém do rapaz pelo que manda o Profeta, copulando neste mundo com a huri a que o crente só tem direito no outro.
Devo dizer que, do caso, me ficou primeiro a impressão de que era uma fotografia tola, e o olhar e a boquinha entreaberta da menina não prenunciavam cabeça com excessiva cabeça. No futebolista mal atentei, talvez porque continuo desinteressado  da sublime arte de pensar com os pés. Mas continuei a remoer sobre o caso das "maminhas" e o fascínio que nos machos exercem, mau grado séculos de arte, de pornografia, décadas de liberdade sexual para tutti quanti, e uma internet que, em permanência,  oferece oceanos delas.
Ocorreu-me também o Corta-Fitas, de que sou visitante diário. Aprecio o que lá se escreve , embora muitas vezes discordando, mas saboreio em particular a subtil estratégia de marketing, a qual combina as "maminhas" à sexta-feira com a exegese dominical dos textos sagrados.
Há outros exemplos, mas não me quero alargar, nem vou discorrer sobre o que se passa nos lares e nas camas, quando o senhor sonha com as "maminhas" que viu no E Deus Criou a Mulher, e a madama, capaz como todas de ler pensamentos, reflecte sobre o conteúdo do seu próprio estrofião.

Domingo passado, uns quilómetros antes de Bordéus, dou-me conta de que preciso encher o depósito, e o estômago avisa que é hora do almoço. Para não deixar a autoestrada submeto-me de mau grado à roubalheira de € 15 por um prato de batatas fritas, duas rodelas de pepino, uma andouillete. Os 35 cl. de mau vinho são € 8, o pãozinho € 2, a sobremesa será €5, o café € 3.
Começo pela andouillete, por acaso saborosa, é então que os três se sentam na mesa ao lado.  Compatriotas. Quarentões despachados. Fatos Armani ou semelhantes. Vozes de quem gosta de ser ouvido, modos e gargalhadas a marcar a distância que os separa da plebe em redor. Um deles vai buscar qualquer coisa ao carro, BMW de topo, e quando volta o colega diz-lhe que estacionou num lugar para inválidos.
- Que se fodam os inválidos!
E vá de gargalhar. Amesendam, mas precisam de largueza, puxam outra mesa. Para mim começa o espectáculo.
Os senhores trabalham na Polónia, vão a caminho de Lisboa, por momentos tratam a sério de assuntos profissionais, telefonam, riem muito. Entrementes vêm as "maminhas" de Varsóvia e arredores. As da secretária de X., que também é uma grande foda, e o cu divinal da Maria não sei quantos, os "odres" de sicrana; e a Franciska, essa é que eu ainda um dia destes enrabo, é só apanhá-la a jeito.
- Cuidado, pá. Pode estar alguém a ouvir.
Os olhos passam por mim e pelo resto, mas quem somos nós? Vamos ter ainda um quarto de hora de fodas e de mamas, de como as polacas são boas na cama, do entusiasmo com que corneiam os legítimos e apreciam a tesão meridional.
Levantam-se, saem a gargalhar na mesma balbúrdia em que tinham chegado. E eu, que de propósito demorei a sobremesa, fico a pensar neles, nas "maminhas" do Henrique, nas do Corta-Fitas, e de como é divertido este nosso mundo.


domingo, março 18

As "maminhas" do Henrique

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COMING SOON! 

AS "MAMINHAS" DO HENRIQUE
 

sexta-feira, março 16

Envelhecer

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 Tinham-me dito que assim seria, e contudo surpreende. Mudam os ambientes, mudam os cheiros, estranho as ruas que tão bem conheci e onde agora passam outras gentes, com outros modos. Os ruídos são diferentes. Nos corpos e nas caras, nos gestos, leio expressões novas, algo que me põe à distância e recorda o tempo em que me sentia estrangeiro e tudo era novidade.
Dão-me a vez, cedem lugar no eléctrico, afastam-se deixando-me passar, oferecem o braço nas escadas. Graças a Deus ainda dispenso ajuda, mas a cortesia não é apenas dar, é também saber receber, por isso aceito o braço, sorrio, agradeço. De bom grado, por vezes exagerando, desempenho o papel do idoso frágil e simpático. Escondo que assim me põem de parte e, sem querer, por bem querer, discriminam e magoam.
Mas aceito, não lamento. Revejo-me neles. Também tive pressa, também julguei que os outros pouco mais eram que paisagem. A paisagem que eu agora para eles sou.

quinta-feira, março 15

Quando dói!

O texto é de 1893. De 1932 a 1968, Salazar, o "subalterno audaz", tornou verdade a profecia de Fialho, mas depois dele voltou tudo ao mesmo, e em 2012 cá estamos, a "caterva de humildes pulhas que nós somos", aceitando o chicote. Dói.


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quarta-feira, março 14

É fado nosso

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a) in Os Gatos; Fialho de Almeida (1857-1911)
a) Fontes; António Maria de Fontes Pereira de Melo (1819-1887) chefe de vários governos da Regeneração.

terça-feira, março 13

Teatro de amor


De amor sabem falar os poetas. Nós, o comum, desajeitados e menos sensíveis, dizemos alguma coisa com os olhos, os gestos, mas sempre a pensar que ficamos aquém, incapazes de arriscar, perdendo-nos nos temores que imaginamos. Somos bem melhores no fingimento.

Vem. Deita-te. Apaga a luz. Cerra os olhos. Não fales. Imagina a quem queres que empreste as palavras que te vou sussurrar.

Lembras-te da esplanada, aquela tarde, o acaso do nosso encontro, quando ias sentar-te tropeçaste e eu te segurei para que não caísses? E depois combinámos jantar, ambos inocentes, descuidados, sorrindo de tudo, adivinhando os subentendidos, felizes com aquela alegria ingénua de crianças. E o primeiro beijo, lembras-te?
Não respondas. Ouve. Ainda não era amor, só a excitação do início, o aperceber da descoberta. A iminência do destino que, soldando-nos, de dois faria um.
O que veio depois é vivência de poucos, romance de paixão e loucuras, do espanto das confissões, da partilha dos segredos que envergonhavam e agora nos unem. A suavidade das mãos que se procuram quando nos deitamos. A harmonia dos sorrisos trocados. Certos olhares. O que os dedos aprenderam a soletrar na pele. A ternura dos momentos em que, compreendendo e perdoando, celebramos o reencontro.
É amor, sim, minha querida. Amor que se alimenta de pequeninas e grandes coisas, destes sussurros, dos beijos na escuridão das nossas fantasias, do modo como nos encaramos quando o dia começa.

Não digas nada. Aquieta-te. Espera até que eu saia e oiças fechar a porta.
....................
A fotografia, datada de 1920, é de Anndré Kertész (1894-1985).

segunda-feira, março 12

Cá estamos então

Cá estamos então, manhã de segunda-feira, olhos no longe, o pensamento rodando em torno da morte da bezerra.
Um desejo vago de que seria bom ter muito poder, e com ele melhorar o mundo, curar os doentes, valer aos aflitos, pôr em ordem o que está torto, distribuir esperança e alegria, ordenar o milagre de sol na horta e chuva no nabal.
Enfim, sonhos de soberania, tentando, seja ele por instantes, escapar ao diário, à obrigações, à rotina doméstica, telefonemas a fazer, desculpas a inventar, promessas que aborrece cumprir.
Quero voos, e sei-me preso a um rosário de miudezas, do que me dou conta lavando as xícaras do pequeno-almoço.

domingo, março 11

À espera da vida

(Hong-Kong - clique para aumentar)
Pouco a pouco foi descobrindo que a vida, a sua vida, é uma longa espera. Tempo infindo esperou os namoros que não teve, os amantes que a arrebatariam de paixão, os beijos que não deu nem recebeu. Esperou as horas loucas que tantos vivem, e depois longamente contam, indiferentes à melancolia de quem os ouve.
Uma manhã deu-se conta de que esperava menos. A falar verdade teve o sentimento de que deixara de esperar, e estranhou, sentiu-se vazia, desorientada, como se tivesse perdido um hábito ou lhe faltasse um arrimo.

Aos doze anos queria ser bailarina, aos dezassete matriculou-se em Medicina. Mudou para Economia e Sociologia. Doutorou-se aos vinte cinco. Durante um ano trabalhou na Bolsa de Londres. Passou dois em Nova Iorque, como investment banker, dois num banco de Hong Kong – "Nada de excepcional, sair do trabalho às quatro da manhã e às nove voltar ao escritório" -  e de novo em Londres com o mesmo ritmo.
Aos pais, à irmã, e a duas pessoas por quem tinha amizade, escreveu a mesma carta, falando da sua desilusão e da tristeza de não ter compreendido a vida. Tinha trinta e dois anos. Foi  ontem o enterro.

sábado, março 10

"Sting"

College Tour é um excelente programa da NOS, a televisão oficial holandesa, no qual um personagem em destaque é entrevistado perante um público de estudantes universitários. O programa destaca-se não só pela qualidade, mas também pelas personalidades que consegue atrair, as quais, em geral, aceitam poucos convites.
Em programas anteriores estiveram Madeleine Albright, Johan Cruijff, John Malkovich, Steve Balmer, o Dalai Lama, Richard Branson, Ayan Hirsi Ali, o primeiro ministro Mark Rutte, o arquitecto Rem Koolhaas.
O convidado do programa de ontem pediu que a assistência se reduzisse a umas centenas, em vez do milhar habitual, e eu, entre surpreso e maravilhado, passei uma hora a ouvir Sting.

quinta-feira, março 8

Dívidas

Dinheiro não devo e dispenso crédito, mas tenho dívidas. Dívidas de gratidão. É uma bela e longa lista, a dos que me mostraram caminho, deram a mão, protegeram, acudiram. Me salvaram dos outros e de mim próprio. Me disseram as palavras precisas nos momentos de raiva e desespero, livrando-me da cegueira, repondo-me nos carris donde mais de uma vez saltei.
Vejo-lhes as feições, recordo os momentos, são a galeria nobre onde encontro ânimo e estro. Sorrio a uns, a outros faço vénia, a uns quantos repito solene o meu obrigado. Foram  generosos, deixando-me aproveitar com a sua experiência, o seu saber, o conhecimento que tinham das gentes e da vida. Não fossem eles, e elas, eu há muito teria desaparecido num limbo de frustração, incertezas, desânimo.
São, como a família, aconchego e conforto, aquele porto de abrigo onde deitamos âncora, passada a tormenta da navegação.

quarta-feira, março 7

Falo com defuntos

(Jan van Eyck - 1390-1441. Clique para aumentar)
Não descubro volta a dar-lhe: falo com defuntos. Oiço vozes, tenho na cabeça todo um cinema onde repassam cenas minhas e da vida alheia, guiões que imaginei mas não deram filme, retalhos de querelas, momentos de euforia, tombos, meios desastres, benesses de última hora, precipícios evitados, outros onde ia a cair quando o anjo-da-guarda abriu as asas.
Trocando isto em miúdos, quer dizer que ando meio aborrecido e distanciado do mundo que me deveria ocupar, o dos vivos
É mau sinal, mas não lhe vejo remédio. Sei que abunda a inteligência, a beleza, a solidariedade. Sei que há lugares de eterna Primavera e gente que, dia após dia, tem razões de sorrir e cantar. Gente que reza nos templos, ama o semelhante e os animais, respeita os velhos, acode aos necessitados.
Assim é, mas longe, que aqui em redor pouco disso distingo, ou prefiro não ver. Fecho-me na solidão e chamo os defuntos, querendo saber deles se a viagem é longa, se chegando ao destino se prestam contas, se nos arrumam por tamanho, idade, raça ou nação, se de facto há por lá anjos a tocar harpas e trombetas.

Não julgues que desvario. A tua hora ainda não chegou e para ti, felizmente, a palavra solidão é ainda vazia de sentido.