domingo, maio 26

Ir à terra

 

Para muitos citadinos, talvez a maioria, e sobretudo aqueles de gerações com raízes na cidade, ouvir a expressão “ir à terra” deve provocar alguma estranheza, e porventura ser motivo de confusão ou gracejo. Todavia, mesmo que de boa vontade compreendam o significado, falta-lhes o conhecimento da mistura de emoções que ressente quem, estando longe, sobretudo no estrangeiro, anota a data em que irá à terra.

Pode parecer simples, mas a expressão está longe de traduzir os sentimentos que dispara, as obrigações que implica, os cuidados a tomar, o manter-se alerta para as sensibilidades deste e daquele. Ir à terra impõe rituais, exige atenção para hierarquias, obriga a considerações, cálculos, boa cara, idem o sorriso. Por vezes durante os preparos, longos e sempre adiados, é um cansativo avaliar isto e aquilo, este e aqueloutro, chega-se ao ponto de sentir inveja dos presidentes, que esses têm quem lhes trata da viagem e do protocolo. Fora de questão confessar o cansaço da jornada e dos arranjos, pois seria tomado como queixume de desagradecido.

Deve andar por duas centenas o número de vezes que já fui à terra, e se bem me lembro sobram os dedos da mão para a conta das que, exausto, mal disposto, ou apertado pelos sarilhos da vida, fui mau actor na ópera-bufa das boas-vindas.

Francamente mo censuraram, e numa ou noutra altura se há motivo ainda o recordam, mas nem a eles nem a mim passaria pela cabeça levar a mal, pois por longa de dezenas de anos que a ausência seja, como a minha é, não se descobriu ainda esponja, diluente, ou força capaz de remover o atavismo, sobretudo quando a comunidade é diminuta.

Daqui a nada vou à terra, e o que atrás fica é aviso que no íntimo repito.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 

sábado, maio 25

Assino por baixo

Vai haver um santinho internético - ou internáutico?  Vem aí a Bomba e as pequeninas Taylor Swifts sacudem o rabo. Importa? No aguardo do fim só importa o peluche de Bruxelas. Aqui

O discurso do ódio

"O discurso de ódio contra a “extrema direita”, não é discurso de ódio, são “boas prácticas de comunicação”, que moem, não matam mas podem levar a matar." Aqui

segunda-feira, maio 20

domingo, maio 19

A culpa morre solteira

Se bem recordo e não estou a exagerar, datam da década de cinquenta, em Paris, as ocasiões em que, pela última vez, tomei parte em intermináveis conversas de café. Como se tivéssemos voto na matéria, discutíamos a política em França e no mundo, as consequências da Guerra Fria, o que nos interessava de filmes, jornais, livros, o que tencionávamos fazer essa noite.

Para o dia seguinte talvez tivéssemos uma vaga ideia, mas o futuro parecia demasiado remoto para merecer atenção, e assim nos entretínhamos, jovens descuidados, iludindo-nos de que para nosso benefício os dias, e até os anos, ganhavam a dimensão que mais nos convinha.

A mudança de Paris para Amesterdão, além de pôr fim a esse juvenil passatempo, obrigou-me a   confrontar uma sociedade que tinha, e continua a ter, uma atitude diametralmente oposta no que refere a ocupação do tempo, dando prioridade a que nessa ocupação haja um elemento útil ou um benefício.

Já passaram sete décadas desde a mudança, mas num tão extenso número de dias são poucas, muito poucas mesmo, as conversas de café que recordo. A maioria delas tive-as com um amigo que a morte levou, mas cuja inteligência, cultura e sentido de humor continuam grata memória.

Quis o acaso que, dias atrás, me visse a participar num colóquio sobre o sentimento de culpa em várias sociedades. Terminada a discussão, um pequeno grupo decidiu que a altura era boa para, num café ali perto e a cerveja a ajudar, tentarmos compreender o motivo dos pontos de vista que nos opunham.

A surpresa veio de uma jovem de origem marroquina, que já nas discussões tinha brilhado, e sorrindo nos  explicou serem os árabes campiões no sacudir a água do capote. Segundo ela, um árabe não dirá que  perdeu o combóio por chegar atrasado, mas que na estação se tinha dado conta que o comboio partira sem o levar.

 

sexta-feira, maio 17

Sabe-se lá?

 Poderá a Cristina Resende, que me enviou uma carta em 15.10 2023, e só agora recebi, mandar-me o seu e-mail?

segunda-feira, maio 13

A memória sem ferrolho

Bom seria que existisse e houvesse à venda, um ferrolho para a memória. Tenho a absoluta certeza de que não discutiria o preço. É que para meu mal, além de que ainda não foi inventada semelhante geringonça, cabe-me a má sorte de, ao contrário do que dizem ser o que normalmente acontece na muita idade, a minha memória parece ter um refinado gozo em me mortificar, trazendo ao de cima a recordação de momentos desastrosos, passos em falso, misturando episódios da meninice com horas da vida adulta, enredos que ainda me fazem corar de vergonha. Sobretudo aqueles que, para poder esquecê-los, e fosse isso questão de dinheiro, de bom grado pagaria sem olhar ao preço, ou tivesse de me rebaixar para conseguir a cunha que me libertasse.

Para mal de todos, e de mim em particular, a memória desconhece transacções. Não é carrasco a quem se pague para finjir a tortura, nem funcionário corrupto que, a mão bem untada, sorri, pisca o olho e esquece a multa.

Prova não há, é suposição minha, mas dada a sobrenatural qualidade de como nela se misturam, confundem, agitam, trespassam e enrolam os infindos momentos de cada vida, tem a memória toda a aparência de ser instrumento de Satanás, já que – à cautela dou-lhe maiúscula – a  Ele se atribui a origem de quase tudo o que nos aflige e prejudica.

Convencido de que, tal como a muitos, a passagem dos anos faria diminuir a sobrecarga de recordações, vejo-me a braços com uma situação que outros talvez festejassem, mas a mim preocupa, tira o sono, põe azedo, dá ideia de praga rogada.

Infelizmente, a certeza que tenho da existência do Demónio não é compensada por uma crença em exorcismos, de modo que me encontro num beco sem saída ou, melhor dizendo: entre a espada e a parede, à espera do golpe de misericórdia.

 

quinta-feira, maio 9

O próximo

 

O próximo. Aquele que o geral das religiões manda que se lhe queira como a nós próprios, se lhe perdoe o mal que faz, o prejuízo que causa, o muito que incomoda. Que se use a esponja da misericórdia para lhe limpar o mau feitio, branquear-lhe a alma, esquecer o descaro com que, vez após vez, ele nos faz tropeçar, prejudica, dá palmadinhas nas costas ao mesmo tempo que prepara a rasteira, o golpe baixo, a intrujice.
É bico de obra querer seguir o mandamento e vermo-nos cara a cara com o pulha, pior ainda se é alguém que um dia mereceu amizade e respeito, mas caiu tão baixo na nossa consideração que ouvir-lhe o nome ou recordar-lhe as feições atrai a náusea.
Isto são pensamentos nada elevados, menos ainda pacíficos, para um começo do dia, mas a vida nem sempre tem lugar para atitudes nobres, altruísmos, perdões. Oferece a gente a outra face? Certo e seguro a bofetada não demora.