domingo, outubro 27

O andarilho sem rodas

 

À cautela, de maneira a que não haja engano, ou quem isto lê me suponha fraco da cabeça e falho de entendimento: ao afirmar que sempre fui andarilho uso a palavra no sentido antigo, o do indivíduo que não somente anda muito, mas o faz por gosto.

Pode ser genético, dado que os das gerações que me antecederam, se tinham burros ou mulas poupavam antes a força dos animais do que a própria, já que esses eram muitas vezes o seu único capital.

Herdado ou não sempre gostei de andar, e guardo um bocadinho de vaidade pela proeza de, a festejar os oitenta, ter feito a pé a distância que separa o Pocinho da minha aldeia, Estevais de Mogadouro – não os quilómetros lisos da estrada, uns cinquenta, sim bastante mais, com as voltas e revoltas a subir e descer montes, uma ou outra vez errando o caminho.

Recordei a “valentia” desse feito dias atrás, quando o acaso me levou a ler um texto em que era questão das vantagens e benefícos da marcha a pé. Não só físicos mas também mentais, espirituais, e até de vários modos higiénicos. Eram citados os inevitáveis especialistas que, cada um à sua muito especializada maneira, detalhavam a científica e quase obrigatória necessidade de caminhar. Porque não somente se fortalecem os músculos e o esqueleto, mas o organismo inteiro leva como que uma muito benéfica revisão.

Asseguravam também que uma caminhada, definitivamente resulta num estado de espírito que diminui a tensão do cérebro, e o simples desviar os olhos para as florzinhas numa valeta, o voo de um pássaro, a imponência de uma árvore, basta para quebrar o círculo vicioso das preocupações e medos que em tantas horas nos afligem.

Talvez assim seja, mas comigo nunca resultou.

 

sábado, outubro 26

País sem jeito e sem futuro

 

Então não é o país de férias dos super-ricos, das várias realezas, e onde até Elon Musk tem casa?

Desengana-te Aqui

domingo, outubro 20

Os lados da barricada

 

Tempos houve em que a barricada tinha dois lados: num juntavam-se os que queriam atacar, no lado oposto os defensores.

Essa simplicidade há muito teve fim, mas bem pode ter sido ilusão minha, pois com isto dos anos é arriscado fazer afirmações definitivas. Além de que tudo muda, e de tão estranha maneira que, de verdade, talvez já nem se possa usar o termo no sentido antigo. Isso devido a que, desde a luta por direitos e à escaramuça nas ruas, até ao mais que excessivo multiplicar de ideais, partidos, certezas,  exigências e modas, hoje em dia tornou-se difícil, de facto quase impossível, tomar uma atitude e erguer uma barricada. O ingénuo que ouse tentá-lo, logo decobrirá que, do lado oposto ao do seu desagrado ou exigência, não vai encontrar um oponente, nem meia dúzia deles, mas mais do que quantas formigas saem a correr dos buraquinhos subterrâneos, assim que lhes cheira a açúcar ou rato morto.

Ficasse o transtorno por aí, poder-se-ia apelar à calma e restos de bom-senso, mas tanto esse como aquela vão indo a caminho das raridades, de modo que sendo prioritária a paz de espírito e desejável o descanso do corpo, resta o clássico encolher de ombros.

Parece uma atitude cobarde, mas está longe de sê-lo. Sabem-no em demasia os que já se viram em palpos de aranha ao descobrir que não há barricadas que separem, e resultam sempre mal as imitações de Dom Quixote.

 

 

domingo, outubro 13

O Inferno somos nós

 

L’enfer c’est les autres”. Os outros é que são o Inferno, sermoneou o franciú zarolho, no tempo em que por mais isto, aquilo, e abonados dons de vaidosa genialidade, recebeu o Nobel da Literatura, para de seguida orgulhosamente o recusar, pois temia que essa honra viesse a contribuir para a diminuição do apreço da sua obra.

Podem culpar-me de azedume, mas fosse eu dado a malícia perguntaria se ainda por aí há quem leia Sartre, embora me veja obrigado a confessar que no longínquo passado dos anos cinquenta o li, mas sem entusiasmo, incapaz de compreender o seu arrazoado, e assim não conseguir entrar na fileira dos que o tinham por apóstolo.

Porém, o que agora aqui vem ao caso, é refutar a afirmação do célebre filósofo, e defender que os outros de modo nenhum são inferno. Se porventura o forem, ou nele ameacem tornar-se, pouco custa sorrir um adeusinho, virar-lhes as costas e – em pensamento, claro – aplicar-lhes no sítio devido um bem assente pontapé de adeus, que isso em geral resulta.

A dificuldade está em provar que o Inferno existe, o Inferno das labaredas de fogueira colossal, e suplícios que tornariam suportáveis os tratos de polé da Santa Inquisição. Vénia pois a Dante, que o imaginou e descreveu. Vénia também aos sacerdotes da Santa Madre Igreja, que se estafam a apregoar a ameaça de para lá irmos, o perigo que corremos a cada passo que que nos leva a sair do bom caminho.

Nesse Inferno sou incapaz de acreditar, e o semelhante só me incomoda na medida em que lho permito. Contudo, do que não conseguirei libertar-me enquanto viver, é do inferno que transporto comigo a modos de mochila, donde inesperadamente, em graus variados mas sempre dolorosos, saltam medos e ameaças, falhas, amarguras, vergonhas, ocasiões perdidas.