sábado, dezembro 31

Mais um que finda

 

Nesta época de gentileza e bondade, escreveu alguém a felicitar-me, afirmando que sei muito da vida.

Assim fosse, assim não é. A muita idade e as várias andanças, incluindo nestas um ou outro momento de euforia, os pontapés do Destino, os dos semelhantes, e os trambolhões que por descuido ou tolice se dão, nada ajudam a compreender da vida. Impedem que se repita um ou outro transtorno, mas a vida, feliz ou infelizmente, é caminho para o qual não há mapa nem bússola.

Vamos andando, paramos aqui e ali, derrapamos nas curvas, caímos na valeta, fazemos o possível por ir direitos e a direito. Depois, cansaço ou susto de ver a meta perto, abrandamos o passo, criando nos que ainda vêm longe a ilusão de que conseguimos chegar até ali por sabedoria e esperteza.

Na verdade, porém, não escolhemos a rota, nem sequer caminhamos pelo próprio pé. Somos empurrados. A uns leva-nos a aragem, a outros o suão, muitos  aproveitam o vento içando velas, os desatinados enfrentam o ciclone.

Saber da vida? Nem sequer sabemos donde vem o vento ou quem o sopra. 

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Feliz Ano Novo a todos os que por escolha ou acaso passam por aqui, quanto mais não seja por me darem a ilusão de companhia.

 

sexta-feira, dezembro 30

Lavagem do cérebro

 

Bom seria poder limpar o cérebro como se lava a cara, mas não há água nem sabão que ajude, e assim por nada coisa nenhuma toma-nos o azedume.

Queremos sossego, e em vez dele vêm os pensamentos aos trambolhões, a memória acirra o que desejamos esquecer, repisa o que nos afligiu, repete ad infinitum  palavras que incomodaram.

Assuntos mesquinhos tomam proporções de nuvem negra. Uma banalidade faz disparar raivas. Envolve-nos que nem capote a tolice alheia, a desmesura das vaidades, a impertinência dos pequeninos orgulhos, a fanfarronice.

 

 

quinta-feira, dezembro 29

The Western Canon


Há um pouco mais de dois anos que ando a ler esta obra prima, mas as 546 páginas demoram a digerir, pois são constante prova de como custa compreender um espírito brilhante, e que pobrezinho é o meu conhecimento das grandes obras da Literatura.
 

quarta-feira, dezembro 28

O rei vai nu

 

 Não está na moda nem nas conveniências, raro está, abrir os olhos e dizer em voz alta que o rei vai nu. Mas bem era que se gritasse, porque já não é só o rei: a rainha, as princesas, as açafatas, os anões, os bobos... A corte inteira vai em pêlo.

Simplesmente, o nosso tempo é de gentilezas, e tudo são salamaleques, reverências, cumprimentos, abraços a este, palmas àquele.

Quando gente que considero me fez a recomendação, corri ao sítio, e li aqui que o melhor livro de ficção publicado em Portugal no século XX é A Ilustre Casa de Ramires e depois aqui que Para Sempre, de Vergílio Ferreira, é o melhor livro de ficção portuguesa do século XX.
Entre outras fortes e fundadas razões porque “Para Sempre...(é a)“escrita do limite no limite da escrita, articula a unidade e a totalidade, e portanto o efeito de harmonia, o estado de perfeição e de acabamento, com a vertigem da imperfeição e a força fragmentária de um discurso que exprime a tomada de consciência do terrível. Belo e Sublime, portanto, Para Sempre é um romance que atinge os princípios estéticos mais antigos no centro nevrálgico da própria Modernidade, que não convive bem — como sabemos — com categorias apriorísticas”.

Como sempre, saltam os eleitos do abc para a licenciatura, dela para o mestrado, o doutoramento, a cátedra, e quando finalmente se sentam nessa nuvem falam dum modo e com umas certezas que, pelo menos a mim, se me descaem os queixos.

Andei uns dias a perguntar-me se não seria inveja minha. Acho que é. Quem me dera saber como se atingem os princípios estéticos mais antigos no centro nevrálgico da própria Modernidade, e descobrir as razões que leva esta a embirrar com categorias apriorísticas. Talvez então me fosse dado escrever o melhor livro de ficção do século XXI.

 

terça-feira, dezembro 27

"O marquesismo-leninismo"

  

“No fim da década de 60 as classes abastadas da sociedade portuguesa e as camadas ditas intelectuais são atacadas por dois bacilos virulentos: o amor sáfico e o marxismo. Por extraordinário que pareça, o safismo vai atacar indiferentemente homens e mulheres. Nos homens os sintomas mais visíveis, provavelmente os únicos, detectam-se na linguagem. Indivíduos escorreitos, ou tidos por tal, começam a dizer que se sentem lésbicos; poetas que eram saudavelmente pederastas passam a ser doentiamente lesbianos. Escritores há que só anseiam por uma inspiração: a lésbica.

No que respeita ao outro sexo, a expressão mais trombeteada do bacilo foi um livro sensaborão, Novas Cartas Portuguesas das «Três Marias» (1972), tomado erradamente por um grito de Women’s Lib.
Do bacilo marxista pode dizer-se que foi igualmente gracioso. Nos salões encontravam-se, displicentemente atiradas sobre as mesas, as obras completas de Lenine. Caetano dera ordem para que a Censura não impedisse a sua impressão, desde que nas lombadas e nas capas, em vez do pseudónimo do Vladimir Ilitch figurasse Ulianov, o nome de família do cujo. E os banqueiros, os filhos dos banqueiros, os empreiteiros que ganhavam milhões em África, as condessas, «os-dez-homens-mais-bem--vestidos-do-ano» chamavam-se com piscadelas de olho, muito secretamente, para nos vãos das janelas, a sussurrar como quem conspira, dizerem uns aos outros que também tinham lido.
Ao serem anunciadas as eleiçıes de 1969, e ao saber-se que os comunistas concorreriam sob o manto da CDE, toda aquela gente-bem sentiu arrepios de gozo, tanto mais que, afirmavam alguns, cabalisticamente, «com os nossos comunistas não há perigo».
Levado como outros por esse delicioso entusiasmo de uma luta de classes a fingir, um D. Fernando, marquês de Fronteira, ofertou à CDE, para despesas eleitorais, meio milhão de escudos. O povo, ao tomar conhecimento, encontrou a designação
justa para essa novidade em ideologia política: "o marquesismo-leninismo.”

in Portugal, a Flor e a Foice – Quetzal, 2014

 

 

segunda-feira, dezembro 26

Einstein e o meu dia

 

Talvez nem mesmo Einstein me soubesse explicar como é que as vinte e quatro horas do dia variam tanto de indivíduo para indivíduo. As minhas, mal-grado o muito que corro, mostram-se singularmente curtas. Entre a higiene, umas ligeiras tarefas domésticas, duas linhas de escrita, almoçar, jantar, olhar distraidamente o céu e a paisagem, quando dou por mim é hora da deita. Umas poucas páginas de leitura e, como diziam antigamente os poetas, caio, salvo seja!, nos braços de Morfeu.

Televisão não vejo, rádio não oiço, música não escuto. Calculo por alto, mas entre visitar blogues e pesquisas no Google, gastarei uma hora. Outra hora vai-se-me a atender cães e gatos. Aos vizinhos e amigos é um adeusinho, um como vão esses ossos, dez minutos a ouvir-lhes contratempos e achaques.

Entretanto, nessas mesmas vinte e quatro horas, há gente que relê e depois comenta num longo ensaio a poesia de Kavafis; escreve outro sobre a noção do cómico de Joyce em Finnegans Wake; almoça com uma poetisa síria e de seguida participa com ela na gravação de um programa sobre o Médio-Oriente; comenta as últimas legislativas num artigo de fundo; toma parte numa mesa redonda sobre a componente neo-realista dos filmes de Vittorio de Sicca; janta com a prima da falecida Pina Bausch; dá uma entrevista à TV Globo; escreve umas coisas no seu blogue e acaba a noite num bar.

Gente assim, suponho eu, possivelmente tem criada que lhe lava a louça, faz a cama e arranja a casa, dá de comer ao gato. Porém, mesmo com esse conforto, há ainda que tomar banho, fazer a barba, telefonar a este, àquela, aqueloutro...

É aí que eu apreciaria a ajuda de um Einstein, pois semelhante actividade e tanta produção só me parece possível caso os dias não sejam iguais para todos.

Ocorre-me que aqui talvez se possa parafrasear Orwell: Todos os dias são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros.