sexta-feira, abril 30

A "Mete-Medo"

Travei a tempo, mas ao começar isto quase ia caindo na tentação folclórica de alindar o antigamente. Bem fiz, porque não há alindamentos nem saudosismos que masquem a realidade da miséria. E grande miséria havia. H.G. Wells andou pelos arredores de Lisboa nos anos 30, descobrindo no “jardim da Europa à beira-mar plantado” uma pobreza mais dramática e miserável do que a que vira na Rússia.

Nesse tempo, o da minha infância, aqui na aldeia as mulheres usavam saia até aos tornozelos, blusa de gola, corpete, lenço na cabeça, xaile pelos ombros. Em geral mais luto que cores garridas, e um surro que, embora total, só mais tarde me faria espécie. Tinham o ar de avantesmas e, por muito que sorrissem, a mim, criança impressionável, assustava vê-las entrar na igreja, onde fingindo rezar a Deus e aos santos, de certeza contratavam com o Diabo.

Delas todas, a que eu mais temia tinha estatura de granadeiro, um rosto bruto, olhos de loucura. Ao acaso duma conversa, soube ontem da sua história.

Paria filhos uns atrás dos outros e, uns atrás dos outros, todos morriam em pouco tempo. De fome. O leite que os manteria em vida precisava-o ela para sobreviver, para o seu “trabalho” de ama dos ricos.

Talvez mais que a miséria, a dor, o ódio, a tristeza e a impotência devem-lhe ter transfigurado o rosto, que de tão disforme justificava a alcunha que a distinguia: a “Mete-Medo”.

quinta-feira, abril 29

Amizades

À semelhança do detector de mentiras, seria útil que existisse um termómetro das amizades. Um aparelho que lhes medisse a força, a febre, que avisasse quando se aproximam do ponto crítico, do momento em que vão desabrochar, se já alcançaram o topo, se são passageiras ou das que ficam. Enquanto esse invento não chega temos de confiar no que observamos e depender das oscilações do frágil aparelho dos sentimentos. Assim, algumas boas amizades nascem sem razão aparente, enquanto outras, boas e antigas, se acham à mercê duma palavra torta, um sorriso menos caloroso. Há as que definham como a vida dos anciãos e as que, tal uma vela, lentamente se vão apagando . Uma nasce espectacular como a sorte grande, outra finda com os relâmpagos e trovões que se imaginam no Dies Irae.

Será possível contar o número de amizades? Estabelecer, mesmo que aproximadamente, quem é mais amigo, menos amigo? Dizer se, numa escala de cem, certa amizade não passa dos dez, anda pelos vinte e cinco ou está nos oitenta? Anos atrás, quando num inquérito quiseram saber se me assemelhava aos meus amigos, respondi mal-humorado que não tinha amigos. Claro que os tenho. Felizmente. Amigos e amigas. O que não tenho e ainda não há é o termómetro.

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In Pó, Cinza e Recordações – Quetzal, 2015

Curiosa liberdade

 

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Na União Europeia sem fronteiras "o Parlamento Europeu concorda com o passaporte corona: a liberdade de viajar está cada vez mais próxima."  E ninguém ri, ninguém chora, ninguém se revolta. Os cães ladram e a caravana passa.

quarta-feira, abril 28

A cada um a sua cruz

É uma cruz. Levezita. Pouco mais que um incómodo. E os ingénuos que me obrigam a carregá-la só se dão conta do que fazem e dizem quando, perdida a paciência, começo a rabiar.
Querem eles saber se esta ou aquela figura de livro meu é personagem autobiográfica, ficam de olho arregalado e a boca salivando no aguardo da resposta.
Favorito é A Amante Holandesa, onde um homem triste e desencantado se dá ao prazer inocente de mirar fotografias e desenhos de jovens corpos femininos.
Um dia, uma desarvorada não se conteve, chegou tão perto que lhe senti o bafo e, num sussurro, quis saber se "aquele era eu". Estive vai-não-vai para consolá-la, tanto mais que o olhar da dama prometia confidências, mas desisti, desapontei-a com a verdade.
 "Aquele" não sou eu. Se de algum modo há pedaços de mim no que escrevo, nunca o leitor, nem mesmo o que nasceu adivinho, terá a arte precisa para destrinçar o que tranço.