quinta-feira, junho 30

Garbo?

Deixe que lhe diga a minha estranheza pelo seu anseio de polémicas. Os tempos vão de guerras, de crueldades, mas isso acontece longe e entre povos desatinados, incapazes de resolver querelas seculares acerca da família do Profeta ou por questões de poderio.
Nós, gente de sensata cobardia, usamos a capa dos brandos costumes, já nos parece demais uma zanga no estacionamento ou um olhar vesgo no supermercado.

Fôssemos nós abertamente maus, que não somos, nem conseguimos sê-lo, mas também não nos podemos dizer bons. O nosso drama é sermos bonzinhos, gentilmente viscosos e escorregadios como pele de enguia, netos em linha directa de Janus, o das duas caras.

E com a gente que somos deseja você duelos de florete? Levantou-se em tempos a fábula das mocas de Rio Maior, ficção semelhante à que Camilo tinha escrito, de valentões armados de estadulhos a varrer as feiras de Lanhoso e do Arco de Baúlhe. Pauladas e catanadas não é connosco, e quando por acaso é vamos para um longe onde não nos conheçam, como em tempo remoto fizemos em África e no Oriente. 

Se uma ou outra imitação de duelo por aí acontece, é em ambiente perfumado, as mãos enluvadas de camurça a esgrimir penas de pavão. "Coisas de gaja", como recentemente  aprendi a dizer, interessante frase que me leva a referir a palavra "garbo" que você elegantemente usou.

Estava ela tão fundo entre as ferramentas do meu artesanato, que num primeiro impulso quase abri o dicionário. Porque, convenhamos: há quantos séculos deixou de haver garbo, se é que alguma vez o houve entre nós, fora da lírica de Camões?

quarta-feira, junho 29

Toujours l'amour

 

Alguns sabem-no, e ao mundo de facto não interessa, mas aponto aqui o meu descaso por certa poesia, o ballet moderno, a arte abstracta, aquelas piadas a que os crentes chamam instalações, os espectáculos de massa com gente aos pulinhos, os fanáticos de Paul Auster, os que citam Woody Allen, mais uns quantos itens que, alongando o rol, certamente iriam valer-me olhadelas de través e inimizades que de momento não me apetece provocar.

Iniciou esta minha má disposição o folhear acidental de uma revista em que um cavalheiro na casa dos  cinquenta, referindo um poema seu, dissertava sobre os mistérios de Cupido.

Li, olhei o retrato do homem – já em pequeno me avisaram de que quem vê caras não vê corações – reli, mas em vez de uma saudável gargalhada, caí no azedume e desenfreei.

Felizmente, tudo se passou na intimidade das quatro paredes e, estando sozinho em casa, não houve testemunhas da minha fúria nem gravação dos impropérios.

A meio da tarde o acesso tinha passado, e quando há pouco me sentei a escrever este desabafo, dei por mim a sorrir de que ainda haja poetas que, para falar de amor, recorram à fímbria do vestido, ao doce azul do olhar, à serena elegância do passo, aos braços que se enroscam quais serpentes, ao corpo marmóreo, ao sorriso felino, às labaredas da paixão.

Sinceramente me pergunto se, nas minhas orações, devo pedir ao Senhor que se compadeça e me acalme, ou se será melhor que neste e naquele faça secar a veia poética.

 

terça-feira, junho 28

Striptease

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Despimo-nos quando escrevemos. Banal ou não, cada frase é um momento de Striptease, um apelo, uma cedência, um desejo, um grito, por vezes um pedido de esmola, um anseio de carinho.

Pelos jornais passo os olhos, há muito enojado do conteúdo rasca – "Mamas e Cuecas de Cristina Ferreira",  pais violadores, mortos no contramão, idosa assaltada – e no Facebook não entro, o tempo que me sobra dos livros gasto-o, fascinado, na leitura ou na visita de blogues. Demorando nos favoritos, lendo aqui e ali criquices e futilidades, lamentos, choros escondidos, dor funda, poesia sem jeito, para de súbito topar com boa prosa e verdadeira ciência, um poema que alegra, um desabafo que comove.

Quando os anos findam aparecem dessas listas a classificar o melhor disto, o número um daquilo, já no passado as vi de autores de blogues que mutuamente  trocavam elogios e galhardetes. Mas no meu parecer é hora de que um desses académicos que se esfalfam nas análises de Saussure, Barthes, Derrida e Baudrillard, se deite a estudar a blogosfera portuguesa. Cuidando, todavia, em deixar o trigo e o joio. Nada de escolhas, prémios ou separações, pois é a amálgama do bom, do sofrível, do mau, do ridículo e do péssimo que faz o encanto desta destravada  barafunda em que, voluntariamente ou por descuido, mostramos muito do que somos, do que nos diverte e aflige. De facto um Striptease.

 

segunda-feira, junho 27

Boa-tarde

  

Boa-tarde para si, que encontrando a porta aberta decidiu entrar. Ainda bem, pois para descanso do seu espírito, não se pode dar conta da perplexidade que me toma - de facto preocupação - ao saber-me no papel de visitado e, como se estivesse numa enfermaria em estado comatoso, nada ter para dizer à visita.

Inventar casos? Espremer um pouco mais de sumo pseudo-filosófico? Fingir que tenho anedotas para contar? Histórias sensacionais? Cenas bizarras? Queixar-me da choldra?

Pudesse eu. Despeça-se, antes que este nevoeiro se lhe pegue.

 

 

domingo, junho 26

A passar tempo


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O xeique e as cataratas

 

Ouvi-a  contar na meninice, impressionou-me de uma maneira que então não compreendi, mas são muitas as ocasiões que a recordo, talvez porque invejo quem tem fé.

Aconteceu nos anos trinta em Marrocos. Depois de pesquisas sem fim, e furos sem conta no deserto, os franceses tinham finalmente encontrado petróleo. Compreende-se a alegria dos que viam o bom resultado de anos de trabalho, tal como a satisfação do xeique que ali governava, e se via rico à maneira das histórias das Mil e Uma Noites.

A importância da descoberta justificava que se convidasse o xeique para uma visita oficial ao “califa” da França, o que iria acontecer com pompa e circunstância.

Antes dessa visita alguém se lembrou de que o xeique, habituado ao deserto, certamente gostaria de ver os Alpes. Levaram-no lá, mas mostrou-se indiferente, na peregrinação a Meca avistara  montes mais gran­diosos. Contudo, numa volta da estrada depa­rou-se-lhe uma maravilha: uma torrente de água cristali­na, cuja espuma reflectia o sol com cintilações de diaman­te, e se des­penhava-se sem cessar da altura de duas ou três dunas.

Pediu que parassem, aproximou-se do pre­cipí­cio onde a água desapa­recia rugin­do, viram-no quedar-se extático, a cabeça erguida para o céu, recol­hido em oração.

Passado tempo um dignitário aproximou-se, dizendo-lhe que não podiam demorar, corriam o risco de chegar atra­sados ao palácio onde os esperava o “califa” da França.

Sereno, o xeique retorquiu que Alá tinha querido que ele, seu humilde servo, pre­senciasse um milagre, de modo que enquanto a água continuasse a jorrar não sairia dali, com receio de insultar o Todo-Poderoso.

Custou a convencê-lo de que a catarata existia há milénios, e por fim, caminhando às arrecuas, o xeique voltou ao carro. Foi então que o ouviram dizer: - Imen­sa e incompreensível para os homens é a bondade de Deus!