quarta-feira, fevereiro 24

A liberdade tem um preço

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"Não, o Alentejo não é a minha terra prometida. Resta-me, portanto, reconhecer que o sentimento de pertença é o meu ângulo morto. Sou rafeiro, mestiço, bastardo, não uma bastardo de sangue, mas um bastardo de solo. Não sou alentejano e os bairros onde cresci à volta de Lisboa tornaram-se-me estranhos; quando lá volto, sinto que entro num filme cujos diálogos já não conheço; tento representar o papel que me é devido por respeito aos meus pais.

A cidade onde vivo, Lisboa, também não é minha, serei sempre um estrangeiro na corte. É um sentimento estranho, quase fantasmagórico, mas é no Porto que me sinto em casa; é com as pessoas do norte que estabeleço uma empatia imediata, epidérmica, visceral. Então porque não mudar a minha vida para o Porto, Braga ou Aveiro? Seria mais um esforço patético e sentimental. Se não posso ser o filho pródigo do sul, também não vou ser o cristão-novo do norte. Não tenho nem terei terra. Não pertenço.
A migração familiar que nos fez sair da miséria e que me permitiu desafiar as leis de ferro da minha avó e dos Espírito Santo, é também a causa deste vazio. A liberdade tem um preço."
…………..
in Alentejo Prometido, de Henrique Raposo – Fundação Francisco Manuel dos Santos.
 

domingo, fevereiro 21

No arquivo

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Mexi numa pasta de arquivo, não encontrei o que procurava, mas já que tinha as mãos na massa fui lendo, folheando, dei-me à pachorra de ouvir conversas gravadas em cassettes há mais de trinta anos, pasmar para fotografias desbotadas, ler correspondência que avivou amizades antigas.
Durante um bom bocado retornei aos meus cinquenta anos, revivi aborrecimentos e alegrias, confrontei gente que desde então safara da memória: Salvatore B., o quarentão distinto que diziam assassino a soldo; Miguel T., sertanejo umas vezes, noutros dias carioca, vivendo de expedientes em Lausanne; Francine, a belga que tudo sabia sobre os azulejos da Viúva Lamego; o senhor Mateus que viera à Holanda comprar vacas leiteiras, mas descobrira o Yab Yum e adiava o regresso; Peter M., mitómano que se dizia ucraniano e nobre, mas era apenas grego e porteiro.
Revi-os a eles, recordei como eu então era e fechei a pasta com alguma pena das ocasiões que não tive, do que passou, das horas que perdi.
 

quinta-feira, fevereiro 18

O terceiro dia

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terça-feira, fevereiro 16

Tanta água passada

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Segundo Congresso dos Escritores Portugueses, Lisboa, Março 1982

domingo, fevereiro 14

De Pilsener Club

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Pode ser da chuva, que há dias cai com um cinzento da Lapónia, misturada com o que aqui se chama natte sneeuw (neve molhada), um fenómeno mais capaz de criar sombras na alma do que o nevoeiro cerrado. Pode ser ainda que seja desta minha inata insatisfação que, por ter sonhado muito, me leva a esquecer os momentos felizes e a aumentar o desgosto que causam as miudezas do dia-a-dia.
Também se dá o caso que, ultimamente, não tenho correspondido às amizades com a benevolência de espírito que nos torna companhia agradável.
Ando azedo. Sugeri atrás que a chuva pode ter a ver com o meu estado de alma, mas no fundo sei que assim não é, reconheço de sobra que o aborrecimento me vem mais das situações em que não posso ser franco, gasto tempo a rendilhar frases, quando a minha vontade seria dizer a verdade nua e crua.
É facto, ando azedo, sinto-me hipócrita, e esta neve molha mais do que a chuva. Que saudade tenho de quando, em tardes assim, corria para o De Pilsener Club e lá ficava até que a genebra e a companhia aclarassem o céu e a minha alma.

sexta-feira, fevereiro 12

Writer's block

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O enredo que imaginou é mais ou menos assim: ela odeia a mãe. A ele calhou de repente uma herança. O terceiro personagem, sem razão  clara de donde lhe vem o ódio, tem ideia de que há-de matar um deles, talvez ambos.
Ao acordar, o jovem escritor, "viu" claramente as cenas, "ouviu" os diálogos e, como em transe, escreveu de um jacto:

"Sinto-me como se fosse eu o alvo preferido de não sei que poder oculto ou, tal um escravo, me tivessem posto à sujeição de vontades alheias, que dispõem de mim e me forçam a proceder de um modo na aparência lógico, razoável, mas que na prática se mostra insensato.
Por certo vem daí a insegurança de que não consigo libertar-me, a hesitação em agir, o receio de que, por princípio, qualquer iniciativa que tome seja  desatinada ou contraproducente.
Marca-me também o ser filho de pai incógnito e mãe solteira, ferrete de que não me livro, embora tenha deixado de ser o vexame que nalgumas alturas me levou a compreender como é fácil perder o juízo e dar um passo irremediável.
Numa salvei-me por um triz, noutra acudiram-me, desde então olho com pena para o rapaz que fui, os medos que demorei a vencer, as ocasiões que perdi".

Parou aqui, ignora quantas vezes o releu, pergunta-se que mistério será o ter livro na cabeça há tanto tempo e ser incapaz de o passar ao papel.

quinta-feira, fevereiro 11

Selos

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Parece que existe há dois ou três anos, talvez mais, mas para mim ontem foi  novidade: recebi uma carta e, para meu grande pasmo – primeiro julguei que  fosse brincadeira – o selo mostrava o rosto de um amigo que, sei-o desde que o conheço, é pessoa que em nada se distingue na cinzenta maioria que somos. Mas então com cara num selo? Mas então o selo dos correios não era para homenagear reis, heróis, prémios Nobel, proezas altas como os Descobrimentos? Era, já não é. Por € 9.95, e colocando a sua ou outra cara no programa adequado, Post.nl , os correios neerlandeses mandam-lhe de volta 10 selos válidos para franquear cartas.
E eu que, miúdo, me pasmava de ver selos com a figura de Vasco da Gama, de Camões, de Pasteur! Onde vai isso?