"Antuérpia.
Nove e cinco da manhã, catorze de Abril de 2008. Yitzchak Abramowitz passa defronte do Century Hotel, na Pelikaanstraat,
muda de passeio, detém-se a olhar a montra da joalharia indiana no número 37, reparando
que alguns dos diamantes expostos são excelentes imitações.
Veste
o sobretudo preto e muito comprido, tradicional dos Chassidim, chapéu preto de
aba larga, junto de cada orelha descem-lhe peyos, as farripas encaracoladas que distinguem os judeus
ortodoxos. Tem oito segundos de vida.
No
peitoril da janela de um quarto andar, a carabina assente numa almofada, o
assassino vê-o afastar-se da montra, centra a mira telescópica, preme o gatilho.
A bala penetra a base do crânio e a figura avantajada de Yitzchak Abramowitz,
poderoso joalheiro, membro influente do Hoge Raad voor Diamant
(Conselho Superior do Diamante) cai de borco, um fio de sangue a escorrer da
boca.
Alguns
dos raros transeuntes cuidam que seja doença, um ou outro liga para o 112, mas a
maioria sabe que naquele bairro é melhor não ser testemunha, olha de través e segue
caminho.
Pelo
número de judeus que ali habita, e o clima de violência, a zona em redor da
Pelikaanstraat (Rua do Pelicano) ganhou para Antuérpia, o maior centro mundial
de diamantes, o sobrenome de Jerusalém do Norte.
No
século XIV já a cidade desempenhava esse papel, a ela aportavam os piratas e
aventureiros que do Oriente traziam pedras preciosas. Dois séculos depois seria
a vez de, juntamente com os da Índia, ali
chegarem os diamantes do Brasil. Mais tarde os da África do Sul, do Congo, da
Serra Leoa e de Angola.
Fora
esse comércio, um grande passo para a prosperidade de Antuérpia seria dado em 1456, quando um habitante de Bruges,
Lodewyk van Bercken, descobriu a técnica da lapidação, utilizando pó de
diamante, um disco metálico e azeite.
Aspecto
menos romântico de então é a actividade das guildas que, gozando de monopólio,
negavam aos judeus a possibilidade de negociar em diamantes, o que os obrigava
a especializar-se noutras profissões, entre eles a lapidação, o que ao longo
dos anoslhes viria a dar a possibilidade de quebrar a supremacia das guildas.
Em
1869 são feitas as primeiras descobertas importantes de diamantes na África do
Sul. Seguem-se as do Congo, Angola, Serra Leoa, mais tarde ainda, as da
Sibéria.
Ao
redor de 1880, um fenómeno independente dessas descobertas vai praticamente
revolucionar o comércio e a indústria dos diamantes de Antuérpia.
No
século XVVIII, no sudoeste da Ucrânia, surgira entre os judeus ortodoxos o movimento religioso dos Chassidim, com regras e
mandamentos em extremo severos. Talvez devido ao traje, aos peyos, ou ao rigor com que seguiam os ditames, eram vítimas favoritas dos
pogroms, começando a emigrar em massa para Antuérpia, atraídos pelo liberalismo
das autoridades e por haver aí uma grande comunidade judaica..
Tradicionalmente
negociavam em cereais, eram tendeiros, chapeleiros, magarefes, alfaiates, mas chegados
a Antuérpia os jovens Chassidim deixaram
as profissões humildes dos seus antepassados, dedicando-se a aprender as
técnicas da lapidação, e entrando posteriormente no negócio dos diamantes.
Até
recentemente desempenhavam um papel primordial,
não sendo exagero afirmar que dominavam o mercado na Bélgica e à escala mundial,
dando ao comércio de pedras preciosas e ouro na Pelikaanstraat uma
efervescência comparável à da Allenby Street em Tel Aviv ou da 49th Street de
Nova Iorque.
Num
negócio envolto em grande secretismo, e praticamente fechado a estranhos, a
multinacional sul-africana De Beers é força dominante, controlando a exploração
em África, sendo o principal fornecedor
das quatro Bolsas do Diamante sediadas em Antuérpia.
Um
número restrito dos negociantes mais poderosos é admitido às
"visitas" da De Beers, tendo o privilégio da primeira escolha dos
diamantes que lhes interessam, e de adquiri-los por um preço fixo.
Na
posse de colossais reservas de pedras preciosas, a De Beers controla a oferta e
a procura, mantém o preço mundial a um nível constante e, em consequência, faz
do diamante um atraente investimento.
Diga-se
de passagem que o negócio internacional do diamante bruto é de enorme interesse
económico, representando um valor anual de cerca sete mil milhões de euros. Vendido
como jóia, o seu valor depende em grande parte da imagem, e essa é cuidadosa,
eficiente, e inteligentemente manipulada pela indústria através de campanhas
publicitárias que, num curto período de tempo, conseguem estabelecer novas
"tradições".
O
Japão é caso paradigmático. Até 1968 era raro que nesse país se oferecesse à mulher
amada um anel com diamante. No decénio seguinte a população japonesa foi
submetida a uma publicidade massiva, resultando que em 1969 dois terços das
noivas usavam um anel com diamante, e actualmente, depois dos Estados Unidos, o
Japão se tornou o segundo mercado mundial.
Dada
a importância dessa imagem, o sector diamantista é muito susceptível a qualquer
acontecimento ou informação de aspecto negativo. Assim, as acções desenvolvidas
por movimentos dos Direitos Humanos, chamando a atenção para os "diamantes
de sangue" e as condições miseráveis em que trabalham os mineiros em
África, vieram perturbar a imagem da pedra preciosa em tanto que símbolo
valioso do amor, da felicidade e da afeição.
Como
se tal não bastasse, em 2001 surgiram as primeiras notícias de que o movimento
terrorista Al Qaida ganhava milhões de dólares com a venda ilegal de diamantes provenientes das minas de Serra
Leoa, controladas pela Frente Revolucionária
Unida, financiando assim as suas actividades.
Mas
é a infiltração da criminalidade que, de maneira perniciosa e a longo prazo, ameaça
afectar a imagem do diamante.
De
acordo com números recentes, as transações ilegais de diamantes brutos atingem cerca
dois mil milhões de euros, soma compreensível se se leva em conta que um pequeno volume de diamantes pode representar
um valor de milhões.
Sem
odor que o denuncie e fácil de transportar, esse "dinheiro comprimido" ("compressed cash") parece
feito à medida para toda a espécie de negócios escuros, como o pagamento de
drogas, de armas, ou para o branqueamento e a deslocação ilegal de somas
importantes.
Preocupante,
inesperada, de consequências surpreendentes para a comunidade judaica de
Antuérpia em geral, e em particular para os Chassidim e o negócio de diamantes
foi, após a queda da União Soviética em 1991, a chegada massiva de judeus
provenientes das antigas repúblicas soviéticas, sobretudo da Geórgia, Ucrânia,
Azerbeijão, Usbequistão e Casaquistão.
Entre
eles predominavam os elementos criminosos que, em cerca de vinte anos, conseguiram transtornar o
equilíbrio da comunidade e dar mau nome ao negócio, tornando-se um factor que os
governantes, eles próprios o confessam, acham difícil controlar ou preferem não
fazê-lo, seguindo o princípio de que todas as cidades necessitam de uma lixeira.
Essa
situação não deriva apenas da agressividade e do excepcional poder financeiro
das seis famílias de judeus da Geórgia que dão má reputação ao sector, mas
também do curioso apoio que as autoridades dispensam ao comércio legal,
permitindo o chamado Sistema de Don Pedro: os negociantes de diamantes são
autorizados a passar facturas fictícias, ocultando certas transacções e aumentando sensivelmente os lucros.
Pouco
resta do ambiente da zona da Pelikaanstraat, que no passado fazia recordar o romantismo dos livros de Malamud,
Bashevis-Singer, Potok, e dos quadros de
Chagall, dando ideia de uma réplica inocente da sjtetl (aldeia) judaica da
Europa Oriental, com os seus hábitos particulares, os trajes, a música kletzmer, as tradições, e
guardando estritamente o sjabbat.
Hoje
é um lugar de medo, violência, racismo, prostituição, assassinatos, e dos três
principais grupos que a habitam - judeus da Geórgia, Chassidim, judeus
não-ortodoxos – cerca de 25.000 pessoas, os primeiros vão lenta, mas
eficientemente, levando a melhor sobre os restantes.
É
entre esses que surgem "padrinhos" que quase reduzem o "Godfather" de Marlon Brandon a uma figura ingénua, e com a
diferença de que as suas acções não se limitam a uma cidade ou país, mas são à
escala do globo.
Tomemos
Leonid Minin (n. Odessa, 1947). Preso na adolescência por chantagem, nos anos
70 emigrou para Israel, regressando depois da queda da União Soviética. Começou
por negociar em petróleo, mas logo acrescentou as madeiras, metais e têxteis,
armas, droga, e o branqueamento de capitais. Entre os seus sócios contam-se
criminosos de topo como Vladimir Missyurin, Alexander Angert, "O Anjo",
ambos liquidados na Bélgica em 1994, e Boris Fastovsky, raptado em Amsterdam, e
cujo corpo nunca foi encontrado.
Persona non grata na
Suíça, no Mónaco, e em França, Minin foi considerado neste último país figura
proeminente da criminalidade internacional, e um dos líderes da chamada "Máfia
de Odessa".
Na
Bélgica foi arguido em dois casos, sendo suspeito no assassinato de Missyurin e
de, para obter um visto de residência permanente, subornar um deputado,
pagando-lhe 200.000 dólares.
Como
personagem ficaria a calhar num filme de Tarantino Em Agosto de 2000 foi preso na
vizinhança de Milão, no momento em que, no seu hotel, na companhia de quatro
prostitutas, festejava a realização de um bom negócio. Daí levou a Polícia 58
gramas de cocaína, diamantes no valor de 500.000 dólares, 150.000 dólares em
notas, e documentos sobre os seus interesses financeiros e as actividades que
desenvolve no comércio ilegal de diamantes, armas, madeiras e petróleo.
Igualmente
espectacular é a carreira do misterioso Viktor Bout (1967). Nasce em Dushanbe,
a capital do Tadgiquistão, e em 1991 termina o estudo de línguas estrangeiras
no prestigioso Instituto Militar de Moscovo. Aproveitando as reformas e
privatizações iniciadas com o governo de Ieltsin, entra no negócio de armas,
comprando a oficiais corruptos armamento do exército soviético, vendendo-o a
baixo preço aos países africanos e sul-americanos.
Torna-se
difícil, se não impossível, deslindar quais das suas actividades eram legais ou
ilegais, pois Viktor Bout combinava com sucesso as das suas companhias de
aviação e o comércio de armas e munições. Ao mesmo tempo financiava o
transporte de forças belgas das Nações Unidas para a Somália, dos contingentes
para Timor-Leste e - belo golpe para um
criminoso de alto calibre – o transporte de tropas americanas para o
Afeganistão e o Iraque.
Durante
a sua estadia na Bélgica era considerado "o maior negociante de armas do
mundo". Em Ostende estabeleceu uma companhia de aviação, a TAN (Trans
Aviation Network), e daí dirigia
negócios com Angola, a Libéria, o Ruanda e a Serra Leoa.
A
sua enorme rede de contactos cobria a Europa Ocidental e Oriental, a Rússia e a
África, mantendo relações de amizade com vários líderes políticos, sobretudo
nos países africanos, contando-se entre eles, Mobutu no Zaire, Charles Taylor
na Libéria, Kaddafi na Líbia, e Ahmed Shah Massoud no Afeganistão.
Em
2002 foi acusado pela Justiça belga e pelo governos dos Estados Unidos de no período
de 1994-2001 ter procedido ao
branqueamento de 325 milhões de dólares. A sua carreira, todavia, parece
mostrar mais afinidade com a ficção de Hollywood do que com a realidade. Assim,
quando o governo americano comunicou ao Ministério dos Negócios Estrangeiros russo
que havia um mandato internacional de captura de Viktor Bout, inquirindo se o
mesmo se encontrava na Rússia, a resposta foi negativa. Nesse mesmo dia, em
Moscovo, dava ele uma entrevista live numa estação de rádio.
Mas
a sorte e os bons amigos parecem tê-lo abandonado: em Março de 2008 foi preso
em Banguecoque. Extraditado para os Estados Unidos, em Abril de 2012 foi
condenado a 25 anos de prisão, a pena mínima para os crimes de que é acusado."
….
In Mentiras & Diamantes, Quetzal 2013