segunda-feira, novembro 30

O comércio silencioso

 

Só pelas imagens que evocam, histórias há que nos acompanham a vida inteira. Ouvidas a primeira vez na escola, contadas por uma professora com o dom da palavra, a nossa imaginação vai-lhes depois acrescentando detalhes coloridos, e quando nos damos conta assumem proporções de romance. Personagens saídos do caótico depósito da nossa fantasia par-ticipam nela com intrigas e aventuras. Onde tudo era deserto criamos um oásis. Deixamos a modesta realidade do lar para habitarmos os palácios das Mil e Uma Noites. Transformamos o pouco em milagre. O comezinho em mistério.

Na sua simplicidade a história original é breve. Em1415, depois da conquista de Ceuta, os portugueses ouviram pela primeira vez falar da grande caravana que todos os anos se formava em Marrocos, e depois, vencendo as montanhas e o deserto ia a comerciar até ao coração da África. Por si só isso não era novidade, sim o facto de a caravana praticar o chamado «comércio silencioso».

Chegados ao rio Senegal os chefes mandavam tocar bombos e charamelas para anunciar a sua presença, enquanto os escravos descarregavam os camelos e colocavam as mercadorias na margem. A caravana retirava-se depois para o acampamento, passava aí a noite, e na manhã seguinte voltava ao rio.

Junto de cada lote dos seus próprios produtos os mercadores encontravam uma certa quantidade de pepitas de ouro, deixadas pelos negros que viviam nos montes da margem oposta. Se porventura a oferta lhes parecia insuficiente, diminuíam o seu lote e regressavam ao acampamento para passar a noite. Na manhã seguinte voltavam à margem. Em geral, a quantidade de pepitas também diminuía, e assim regateavam invisíveis e silenciosos durante dias sucessivos. Quando uma das partes se apoderava da mercadoria ou do ouro que lhe convinha, o negócio considerava-se fechado. Os chefes mandavam rufar novamente os tambores, em sinal de despedida, levantavam o acampamento e a caravana regressava a Marrocos. Sem nunca se encontrar ou se ver, ambas as partes mantinham um uso tão antigo que o próprio Heródoto já mil anos antes o referira.

Não sei por que razão ou propósito a professora nos contou a história, mas lembro o sol da tarde, o pesadume que causava o ar abafado da sala, obrigando alguns de nós a repousar a cabeça nos braços e a quase adormecer sobre os tampos das carteiras. À palavra caravana já eu, envolto num albornoz branco, seguia num camelo carregado de sacos de conchas, sofrendo com o calor e o chouto desajeitado do animal. A luz intensa e a poeira levantada pelas centenas de camelos à minha volta obrigavam-me a cerrar os olhos, mas as palavras da professora – que eu ouvia vagamente como uma espécie de música de fundo – depressa me fizeram sair do deserto e entrar nas montanhas do Atlas a tremer de frio. Veio depois a longa travessia da savana, a floresta temerosa, onde em redor se sentia a presença ameaçadora das feras. Finalmente estávamos diante do Senegal, rio largo de águas amareladas. Nesse momento juro que ouvi os tambores e as trombetas, recordo-me de ter desmontado com dificuldade, vejo ainda a expressão dos rostos exaustos dos escravos que tinham feito o caminho a pé.

Acordei na minha cama a tiritar de cansaço. Não tenho lembrança de nesse dia ter saído da escola, nem até hoje seis e sonhei em duas ocasiões o mesmo sonho, ou se, como sempre pedia quando rezava, nesse momento foi satisfeito o meu ardente desejo de, pelo menos uma vez, viajar no espaço e no tempo.

in Mazagran, Quetzal 2012

 

Um começo de sensatez

As grande cadeias  das loja do comércio de retalho na Holanda e várias associações de lojistas informaram as autoridades de que mau grado ser obrigatória a máscara no interior dos estabelecimentos, não vão repreender nem incomodar quem o não faça.

É um começo, bom seria que também publicassem o que se sabe dos danos presentes e futuros deste adereço de tão triste Carnaval.

domingo, novembro 29

O Destino pode e manda

Pouco importa que seja cansaço, aborrecimento, mudança de humor, há ocasiões em que o Cesário involuntariamente recorda certos episódios da sua vida, sobretudo aqueles que ainda hoje o deixam com a impressão de que se tivesse reagido conforme a sua natureza, tudo teria andado mais de acordo com os seus sonhos e maneira de ser.

De todos esses episódios o mais determinante foi de certeza o da noite em que depois do cinema e já à porta da casa dos pais, onde ainda morava, a Célia à queima-roupa e ao contrário das regras lhe perguntou se queria casar com ela.

Aquilo tinha sido mais do que inesperado, porque nunca a vira senão como amiga, mas também porque aos vinte e quatro anos a perspectiva de casamento não fazia parte dos seus planos, a única coisa que lhe ocorreu foi perguntar se por acaso estava grávida, descrente que pudesse ser dele, sempre cauteloso nas poucas vezes que tinham ido para a cama.

Não se assustasse, não estava grávida, era só que dos namorados que tinha tido apenas com ele se via a sonhar um futuro a dois e sentir-se capaz de dar o passo.

É esse o momento que agora inesperadamente recorda, enquanto ambos assistem na televisão à destrambelhada fala do Primeiro Ministro sobre o perigo do vírus, o número de mortos, de infectados, novas proibições, mais uns quantos avisos de catástrofe.

Continua a encarar o ecrã e a ouvir o político, mas uma parte de si mesmo parece ter-se separado, entra numa fantasia que permite escolhas no presente e no futuro, fabricando com elas relâmpagos de felicidade, dando resposta a perguntas que sempre evita fazer, certo de que se naquela ocasião em vez de vergar tivesse mostrado firmeza não se sentiria agora o meio-homem que com o correr dos anos Cecília fez dele: sem vontade própria, deixando-lhe as rédeas, às vezes fingindo de puto resmungão que contra vontade segue a mãe e sem remorso lhe deseja a morte.

- Não compreendi nada do que o Costa disse, nem das datas, nem do que vai mudar!

A voz de Cecília tira-o da sonolência, mas atordoado como está murmura qualquer coisa,  levanta-se, parecendo que lhe custa fazê-lo, pequena manha de que ela há vidas se apercebeu. O que agora a surpreende é que em vez de se apoiar no sofá como de costume, a fingir ou de facto à espera que as articulações se recomponham e a dor passe, aproxima-se a cambalear, no rosto uma expressão que lhe desconhecia e sem explicação lhe volta as costas.

Nunca ela ou qualquer de nós jamais saberá as vezes que nos matam em pensamento.

sábado, novembro 28

A gente de Don Pedro

 "Antuérpia. Nove e cinco da manhã, catorze de Abril de 2008. Yitzchak Abramowitz  passa defronte do Century Hotel, na Pelikaanstraat, muda de passeio, detém-se a olhar a montra da joalharia indiana no número 37, reparando que alguns dos diamantes expostos são excelentes imitações.

Veste o sobretudo preto e muito comprido, tradicional dos Chassidim, chapéu preto de aba larga, junto de cada orelha descem-lhe peyos, as farripas  encaracoladas que distinguem os judeus ortodoxos. Tem oito segundos de vida.

No peitoril da janela de um quarto andar, a carabina assente numa almofada, o assassino vê-o afastar-se da montra, centra a mira telescópica, preme o gatilho. A bala penetra a base do crânio e a figura avantajada de Yitzchak Abramowitz, poderoso joalheiro, membro influente do Hoge Raad voor Diamant (Conselho Superior do Diamante) cai de borco, um fio de sangue a escorrer da boca.

Alguns dos raros transeuntes cuidam que seja doença, um ou outro liga para o 112, mas a maioria sabe que naquele bairro é melhor não ser testemunha, olha de través e segue caminho.

Pelo número de judeus que ali habita, e o clima de violência, a zona em redor da Pelikaanstraat (Rua do Pelicano) ganhou para Antuérpia, o maior centro mundial de diamantes, o sobrenome de Jerusalém do Norte.

No século XIV já a cidade desempenhava esse papel, a ela aportavam os piratas e aventureiros que do Oriente traziam pedras preciosas. Dois séculos depois seria a vez de,  juntamente com os da Índia, ali chegarem os diamantes do Brasil. Mais tarde os da África do Sul, do Congo, da Serra Leoa e de Angola.

Fora esse comércio, um grande passo para a prosperidade de Antuérpia seria  dado em 1456, quando um habitante de Bruges, Lodewyk van Bercken, descobriu a técnica da lapidação, utilizando pó de diamante, um disco metálico e azeite.                                       

Aspecto menos romântico de então é a actividade das guildas que, gozando de monopólio, negavam aos judeus a possibilidade de negociar em diamantes, o que os obrigava a especializar-se noutras profissões, entre eles a lapidação, o que ao longo dos anoslhes viria a dar a possibilidade de quebrar a supremacia das guildas.

Em 1869 são feitas as primeiras descobertas importantes de diamantes na África do Sul. Seguem-se as do Congo, Angola, Serra Leoa, mais tarde ainda, as da Sibéria.

Ao redor de 1880, um fenómeno independente dessas descobertas vai praticamente revolucionar o comércio e a indústria dos diamantes de Antuérpia.

No século XVVIII, no sudoeste da Ucrânia, surgira entre os judeus ortodoxos  o  movimento religioso dos Chassidim, com regras e mandamentos em extremo severos. Talvez devido ao traje, aos peyos, ou ao rigor com que seguiam os ditames, eram vítimas favoritas dos pogroms, começando a emigrar em massa para Antuérpia, atraídos pelo liberalismo das autoridades e por haver aí uma grande comunidade judaica..

Tradicionalmente negociavam em cereais, eram tendeiros, chapeleiros, magarefes, alfaiates, mas chegados a Antuérpia os jovens Chassidim  deixaram as profissões humildes dos seus antepassados, dedicando-se a aprender as técnicas da lapidação, e entrando posteriormente no negócio dos diamantes.

Até recentemente desempenhavam  um papel primordial, não sendo exagero afirmar que dominavam o mercado na Bélgica e à escala mundial, dando ao comércio de pedras preciosas e ouro na Pelikaanstraat uma efervescência comparável à da Allenby Street em Tel Aviv ou da 49th Street de Nova Iorque.

Num negócio envolto em grande secretismo, e praticamente fechado a estranhos, a multinacional sul-africana De Beers é força dominante, controlando a exploração em África,  sendo o principal fornecedor das quatro Bolsas do Diamante sediadas em Antuérpia.

Um número restrito dos negociantes mais poderosos é admitido às "visitas" da De Beers, tendo o privilégio da primeira escolha dos diamantes que lhes interessam, e de adquiri-los por um preço fixo.

Na posse de colossais reservas de pedras preciosas, a De Beers controla a oferta e a procura, mantém o preço mundial a um nível constante e, em consequência, faz do diamante um atraente investimento.

Diga-se de passagem que o negócio internacional do diamante bruto é de enorme interesse económico, representando um valor anual de cerca sete mil milhões de euros. Vendido como jóia, o seu valor depende em grande parte da imagem, e essa é cuidadosa, eficiente, e inteligentemente manipulada pela indústria através de campanhas publicitárias que, num curto período de tempo, conseguem estabelecer novas "tradições".

O Japão é caso paradigmático. Até 1968 era raro que nesse país se oferecesse à mulher amada um anel com diamante. No decénio seguinte a população japonesa foi submetida a uma publicidade massiva, resultando que em 1969 dois terços das noivas usavam um anel com diamante, e actualmente, depois dos Estados Unidos, o Japão se tornou o segundo mercado mundial.

Dada a importância dessa imagem, o sector diamantista é muito susceptível a qualquer acontecimento ou informação de aspecto negativo. Assim, as acções desenvolvidas por movimentos dos Direitos Humanos, chamando a atenção para os "diamantes de sangue" e as condições miseráveis em que trabalham os mineiros em África, vieram perturbar a imagem da pedra preciosa em tanto que símbolo valioso do amor, da felicidade e da afeição.

Como se tal não bastasse, em 2001 surgiram as primeiras notícias de que o movimento terrorista Al Qaida ganhava milhões de dólares com a venda ilegal  de diamantes provenientes das minas de Serra Leoa, controladas pela  Frente Revolucionária Unida, financiando assim as suas actividades.

Mas é a infiltração da criminalidade que, de maneira perniciosa e a longo prazo, ameaça afectar a imagem do diamante.

De acordo com números recentes, as transações ilegais de diamantes brutos atingem cerca dois mil milhões de euros, soma compreensível se se leva em conta que um  pequeno volume de diamantes pode representar um valor de milhões.

Sem odor que o denuncie e fácil de transportar, esse  "dinheiro comprimido" ("compressed cash")  parece feito à medida para toda a espécie de negócios escuros, como o pagamento de drogas, de armas, ou para o branqueamento e a deslocação ilegal de somas importantes.

Preocupante, inesperada, de consequências surpreendentes para a comunidade judaica de Antuérpia em geral, e em particular para os Chassidim e o negócio de diamantes foi, após a queda da União Soviética em 1991, a chegada massiva de judeus provenientes das antigas repúblicas soviéticas, sobretudo da Geórgia, Ucrânia, Azerbeijão, Usbequistão e Casaquistão.

Entre eles predominavam os elementos criminosos que, em cerca  de vinte anos, conseguiram transtornar o equilíbrio da comunidade e dar mau nome ao negócio, tornando-se um factor que os governantes, eles próprios o confessam, acham difícil controlar ou preferem não fazê-lo, seguindo o princípio de que todas as cidades necessitam de uma lixeira.

Essa situação não deriva apenas da agressividade e do excepcional poder financeiro das seis famílias de judeus da Geórgia que dão má reputação ao sector, mas também do curioso apoio que as autoridades dispensam ao comércio legal, permitindo o chamado Sistema de Don Pedro: os negociantes de diamantes são autorizados a passar facturas fictícias, ocultando certas  transacções e aumentando sensivelmente os lucros.

Pouco resta do ambiente da zona da Pelikaanstraat, que no passado fazia recordar  o romantismo dos livros de Malamud, Bashevis-Singer,  Potok, e dos quadros de Chagall, dando ideia de uma réplica inocente da sjtetl (aldeia) judaica da Europa Oriental, com os seus hábitos particulares, os  trajes, a música kletzmer, as tradições, e guardando estritamente o sjabbat.

Hoje é um lugar de medo, violência, racismo, prostituição, assassinatos, e dos três principais grupos que a habitam - judeus da Geórgia, Chassidim, judeus não-ortodoxos – cerca de 25.000 pessoas, os primeiros vão lenta, mas eficientemente, levando a melhor sobre os restantes.

É entre esses que surgem "padrinhos" que quase reduzem o "Godfather" de Marlon Brandon a uma figura ingénua, e com a diferença de que as suas acções não se limitam a uma cidade ou país, mas são à escala do globo.

Tomemos Leonid Minin (n. Odessa, 1947). Preso na adolescência por chantagem, nos anos 70 emigrou para Israel, regressando depois da queda da União Soviética. Começou por negociar em petróleo, mas logo acrescentou as madeiras, metais e têxteis, armas, droga, e o branqueamento de capitais. Entre os seus sócios contam-se criminosos de topo como Vladimir Missyurin, Alexander Angert, "O Anjo", ambos liquidados na Bélgica em 1994, e Boris Fastovsky, raptado em Amsterdam, e cujo corpo nunca foi encontrado.

Persona non grata na Suíça, no Mónaco, e em França, Minin foi considerado neste último país figura proeminente da criminalidade internacional, e um dos líderes da chamada "Máfia de Odessa".

Na Bélgica foi arguido em dois casos, sendo suspeito no assassinato de Missyurin e de, para obter um visto de residência permanente, subornar um deputado, pagando-lhe 200.000  dólares.

Como personagem ficaria a calhar num filme de Tarantino Em Agosto de 2000 foi preso na vizinhança de Milão, no momento em que, no seu hotel, na companhia de quatro prostitutas, festejava a realização de um bom negócio. Daí levou a Polícia 58 gramas de cocaína, diamantes no valor de 500.000 dólares, 150.000 dólares em notas, e documentos sobre os seus interesses financeiros e as actividades que desenvolve no comércio ilegal de diamantes, armas, madeiras e petróleo.

Igualmente espectacular é a carreira do misterioso Viktor Bout (1967). Nasce em Dushanbe, a capital do Tadgiquistão, e em 1991 termina o estudo de línguas estrangeiras no prestigioso Instituto Militar de Moscovo. Aproveitando as reformas e privatizações iniciadas com o governo de Ieltsin, entra no negócio de armas, comprando a oficiais corruptos armamento do exército soviético, vendendo-o a baixo preço aos países africanos e sul-americanos.

Torna-se difícil, se não impossível, deslindar quais das suas actividades eram legais ou ilegais, pois Viktor Bout combinava com sucesso as das suas companhias de aviação e o comércio de armas e munições. Ao mesmo tempo financiava o transporte de forças belgas das Nações Unidas para a Somália, dos contingentes para Timor-Leste e - belo  golpe para um criminoso de alto calibre – o transporte de tropas americanas para o Afeganistão e o Iraque.

Durante a sua estadia na Bélgica era considerado "o maior negociante de armas do mundo". Em Ostende estabeleceu uma companhia de aviação, a TAN (Trans Aviation Network),  e daí dirigia negócios com Angola, a Libéria, o Ruanda e a Serra Leoa.

A sua enorme rede de contactos cobria a Europa Ocidental e Oriental, a Rússia e a África, mantendo relações de amizade com vários líderes políticos, sobretudo nos países africanos, contando-se entre eles, Mobutu no Zaire, Charles Taylor na Libéria, Kaddafi na Líbia, e Ahmed Shah Massoud no Afeganistão.

Em 2002 foi acusado pela Justiça belga e pelo governos dos Estados Unidos de no período  de 1994-2001 ter procedido ao branqueamento de 325 milhões de dólares. A sua carreira, todavia, parece mostrar mais afinidade com a ficção de Hollywood do que com a realidade. Assim, quando o governo americano comunicou ao Ministério dos Negócios Estrangeiros russo que havia um mandato internacional de captura de Viktor Bout, inquirindo se o mesmo se encontrava na Rússia, a resposta foi negativa. Nesse mesmo dia, em Moscovo, dava ele uma entrevista live numa estação de rádio.

Mas a sorte e os bons amigos parecem tê-lo abandonado: em Março de 2008 foi preso em Banguecoque. Extraditado para os Estados Unidos, em Abril de 2012 foi condenado a 25 anos de prisão, a pena mínima para os crimes de que é acusado."

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In Mentiras & Diamantes, Quetzal 2013