(Clique)
O posfácio que em 2001 escrevi para a edição neerlandesa de
Os Maias.
Inspirando-se em Walter Scott, que com o romance
histórico tinha traçado um vasto panorama da sociedade inglesa, Balzac na sua obra
irá dissecar a sociedade francesa no período conturbado que se segue à queda da
monarquia.
Porém, ao contrário de Walter Scott, Balzac não se
atarda em detalhes pitorescos, nem no colorido de cavaleiros lutando pela causa
justa. Interessa-lhe sim descrever na mais concreta das formas o tecido das
relações humanas e sociais, a desintegração dos valores, o emergir de novas
castas que, pronta e irreprimivelmente, copiam as taras daquelas contra quem
tinham combatido.
Coveiro da literatura romântica, pioneiro do
Realismo, Balzac e a sua obra vão exercer uma influência determinante em José
Maria Eça de Queiroz (1845-1900), que virá ele próprio a tornar-se a figura de
proa do Realismo em Portugal.
Muito jovem ainda Eça de Queiroz tinha-se embebido
de literatura francesa, circunstância de que mais tarde os seus críticos por
vezes se irão servir para o acusar de submeter à moda de Paris o estilo da sua
escrita, de introduzir na língua
portuguesa um excesso de galicismos, e de ter plagiado não somente
Balzac, mas ainda Zola e Renan.
Nacionalmente célebre desde a publicação em
folhetim dos seus primeiros romances: O crime do padre Amaro (1875) e O
primo Basílio (1876), Eça de Queiroz habita há anos Newcastle-on-Tyne, onde
é cônsul de Portugal, quando em 1877 informa o seu editor do desejo de, à
semelhança da Comédie Humaine de Balzac e Les Rougon-Macquart de
Zola, empreender uma vasta obra cíclica, “uma espécie de ‘Galeria de Portugal’
no século XIX… a pintura da vida contemporânea: Lisboa, Porto, províncias, política,
negociantes, fidalgos, jogadores, advogados, médicos – todas as classes, todos
os costumes.”
O projecto constaria de doze títulos, dos quais os
romances A Capital e Os Maias seriam o primeiro e o último.
Curiosamente, só estes viriam a ser de facto escritos e publicados.
Vivendo então em constantes apertos de dinheiro,
como já antes lhe acontecera em Lisboa, e mais tarde em Havana, onde também
fora cônsul, Eça de Queiroz só dificilmente conseguia trabalhar na sua obra. A
maior parte do tempo empregava-a ele em colaborações para os jornais
brasileiros que, ao contrário dos portugueses, eram correctos no pagamento.
Infelizmente, os proventos que daí lhe vinham não
bastavam para saldar as dívidas que contraía junto dos amigos, dos fornecedores
e dos agiotas. E a tentar tapar os buracos que constantemente se lhe abriam na
bolsa, pedia adianta-mentos ao seu editor sobre romances que, como A Capital,
só tarde e más horas iria concluir, ou que as mais das vezes nunca passariam de
sonhos. Além disso parecia apostado em criar situações embaraçosas, que algumas
vezes só não redundaram em catástrofes graças à intervenção discreta do seu
amigo Ramalho Ortigão (1836-1915).
Em determinado momento chega a pensar que melhor
seria deixar a cidade, onde a vida era cara, e estabelecer-se no campo, plano
que abandona porque - como escreverá em carta a Ramalho Ortigão - a casa em que
vivia e a sua presença física eram a única garantia dos credores.
Na mesma carta ironiza ainda: “As dívidas serviram
a Balzac para aprofundar o mundo bancário, agiota, notário e forense; mas eu
nem tenho essa consolação de que as minhas dívidas me tragam a revelação de
tipos essenciais; elas só servem para me envelhecer e me bestificar.”
Os seus problemas financeiros continuarão
insolúveis, e o casamento em 1886 com uma aristocrata de família abastada, em
vez de trazer o alívio esperado, vai torná-los ainda mais prementes. De
qualquer modo, e no meio de essas e outras tormentas da sua vida pessoal, em
1888, onze anos passados desde que anunciara a intenção de escrevê-lo, o
romance Os Maias é finalmente posto à venda.
Trabalho da idade adulta, espelhando um tempo em
que, gradualmente, a crítica venenosa que o tornara célebre dá por vezes lugar
ao desencanto e à ironia, este romance de Eça de Queiroz – considerado por
muitos a sua obra prima – ganha sobre os anteriores em análise objectiva da
sociedade portuguesa.
Paradoxalmente, para essa objectividade deve ter
contribuído de certa forma o seu afastamento da pátria, pois vistos de longe
pareciam exasperá-lo ainda mais os fenómenos que na sua juventude atacara com
sátiras cruéis.
Numa das crónicas para o jornal Gazeta de
Notícias, do Rio de Janeiro, escreve
ele em 1881, retomando a antiga mordacidade: “Somos o que se pode dizer um
‘povo de bem’, um ‘povo boa pessoa.’ E a nação vista de fora e de longe, tem
aquele ar honesto de uma casa de província, silenciosa e caiada, onde se
pressente uma família comedida, temente a Deus… A Europa reconhece isto: e
todavia olha para nós com um desdém manifesto. Porquê? Porque nos considera uma
nação de medíocres: digamos francamente a dura palavra – porque nos considera
uma raça de estúpidos… Numa época tão intelectual, tão crítica, tão científica
como a nossa, não se ganha a admiração universal, ou se seja nação ou
indivíduo, só com ter propósito nas ruas, pagar lealmente ao padeiro, e
obedecer, de fronte curva, aos editais do governo civil. São qualidades excelentes,
mas insuficientes. Requer-se mais; requer-se a forte cultura, a fecunda
elevação do espírito, a fina educação do gosto, a base científica e a ponta de
ideal que em França, na Inglaterra, na Alemanha, inspiram na ordem intelectual
a triunfante marcha para a frente; e nas nações de faculdades menos criadoras,
na pequena Holanda ou na pequena Suécia, produzem esse conjunto eminente de
sábias instituições, que são, na ordem social, a realização das formas
superiores do pensamento.”
O quadro em que o enredo de Os Maias
decorre – a aristocracia e a alta burguesia de Lisboa cerca de 1880 – era-lhe
familiar. E dentro desse quadro o escritor irá criar uma notável galeria de
cenas e tipos, não se poupando a si próprio, pois se retrata em feroz
caricatura autobiográfica na figura de João da Ega.
O personagem principal do romance é Carlos da
Maia, espécie de alter ego sonhado, aristocrata, centro de atenções,
dispondo de meios que, sur le moment, lhe permitem satisfazer os seus
desejos. É através desse personagem excepcional – dândi, médico, inteligência
brilhante, homem de gosto refinado, capaz de dissertar ajuizadamente sobre
política e economia, viajado, lido nos clássicos - que Eça de Queiroz lança
sobre a sociedade portuguesa um olhar sardónico.
Parecendo em cada década caminhar mais
apressadamente para o abismo, a história de Portugal no século XIX é uma
sucessão de tragédias. Política e economicamente o país é uma colónia inglesa.
Culturalmente é dominado pela França. Constata-se uma apatia generalizada, um desencanto
a envolver tudo e todos, chegando-se ao extremo de considerar que a solução de
todos os males pudesse vir de uma União Ibérica, em que Portugal se tornasse de
facto uma simples província espanhola.
À observação desse ambiente trágico Eça de Queiroz
sobrepõe em Os Maias a decadência de uma família, a qual, por assim
dizer, se torna como que o espelho do país. Do mesmo modo que Carlos, o neto,
personifica em parte os males do Portugal moderno, Afonso da Maia, o avô, é o
símbolo das virtudes do país antigo. Mas ambos inevitavelmente destinados a
falhar e a falir. E assim o romance é, sobretudo, uma constatação de falências
e incapacidades. Situações dramáticas ou
cenas comezinhas, tudo termina em indiferença como se, totalmente abúlicos, os
personagens se deixassem empurrar pela fatalidade.
Com um enredo que frequentemente toca o
melodramático, Os Maias tem por fio condutor o tema do incesto, e esse
aproveita-o Eça de Queiroz como metáfora para denunciar uma sociedade que,
aparentemente obcecada pelos fantasmas da sua degenerescência e da sua
decadência, não consegue encontrar em si as forças capazes de libertá-la dos
ideais de um passado romantizado e da sua incapacidade de acção.
O romance, contudo, está longe de ser obra
sombria: com fina ironia, Eça de Queiroz transforma grande parte das
cenas em quadros de drama giocoso. Mas analisado em conjunto, o decorrer dos acontecimentos conta menos do
que a cómica descrição que o autor faz dos personagens e do seu meio.
Embora sejam frequente as cenas altamente
humorísticas, é sobretudo na descrição de tipos que o autor dá mostras de
excepcional talento. A já citada caricatura autobiográfica, o retrato do poeta
Alencar, a figura de Eusébiozinho, o embaixador da Finlândia, o novo-rico
Dâmaso, todos eles, e outros, parecem ter recebido de Eça de Queiroz o sopro
vital. Aliás, é nessa impressionante galeria de retratos que muitos críticos e
académicos geralmente se apoiam para, ainda hoje, considerarem Os Maias
como o mais importante romance da literatura portuguesa.
Que o seja ou não, o qualificativo é menos
interessante de que o facto de que passado mais de um século sobre a sua
publicação, Os Maias continue a ser um romance moderno e que, em
essência, o Portugal de hoje se ache tão vivamente retratado nele.
Não é preciso substituir os cavalos pelos
automóveis, nem a monarquia de então pela república democrática do presente:
atente-se apenas nos personagens e ver-se-á que o romance de 1888 espelha grosso
modo os vícios e as virtudes da sociedade portuguesa contemporânea. É como
se, com a sua arte, o escritor tivesse sido capaz de tornar visível a presença
daqueles elementos que, misteriosos e imutáveis no tempo, parecem formar a
essência de um povo.
E talvez porque nele os portugueses se reconhecem
melhor do que em qualquer outro romance, Os Maias continua a ser de
todos os livros de Eça de Queiroz o mais lido e o mais querido.