quinta-feira, abril 26

Intervalo

Nos dias a vir a barca fica atracada, porque o patrão vai a Lisboa, à Feira, e não sabe quando regressa.
Obrigado pela visita.

Do Porto e de Gaia

Do Porto, de Gaia, sobre medalhas, revoluções e arquitectura. Aqui e também aqui.

terça-feira, abril 24

O aloquete

 Por ter andado longe, as recordações que tenho da casa de minha avó Elisa e do meu avô Sapateiro ficaram pelos dezoito, dezanove anos.
Entrei lá quando meu pai faleceu, vai fazer três décadas, e desde então, como se lhe tivesse posto um cadeado, faltava-me coragem para rever o cenário de muitas vivências de menino e rapaz.
Esta tarde, porque era preciso dar um jeito à porta de entrada, a sair dos gonzos, torta, esburacada por mais de cem anos de canícula e frio de rachar, desandei a fechadura, mas demorou a arriscar-me para lá da soleira.
Ruina, podridão, bafios maléficos, teias de aranha em filmes de horror, paredes abauladas, telhas partidas, os degraus de pedra-lousa meio-desfeitos, carcomidos os de madeira, desengonçado o corrimão.
Essa vista de olhos pouco deve ter durado, pois num repente tudo rejuvenesceu, se compôs, voltou ao seu lugar, ganhou vida. O lume ardia em volta das panelas de três pés, o chão estava coberto de amêndoas, o fumeiro e os presuntos secavam em varas lá no alto, os cântaros ressudavam água, alguém deixara uma albarda junto do escano. A luz vinha de um candeeiro enfarruscado. Vi-me menino, correndo escada abaixo, a aprender quanto grão se deitava na manjedoura das mulas.
Ouvi o carpinteiro dizer para sairmos dali, não fosse cair algum barrote, e então, mal acordado, fui às arrecuas, despedi-me do sonho, repus o aloquete nas memórias da minha infância.

segunda-feira, abril 23

Abutres

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 Vai-se encosta abaixo, atravessa-se a ribeira a vau, tão escassa é a água, segue-se o carreiro que há séculos, talvez mesmo desde que começou a haver gente por aqui, levava ao resto do mundo. A coisa de dois quilómetros aparecem de ambos os lados umas fragas que já de pequeno me assustavam, e continuam a meter medo, disformes, gigantesca, a ameaçar  despenhar-se.
Olho com respeito e temor aquele cenário de ópera. Nunca ali deve ter subido alma cristã, sarracena, ou troglodita, tão-pouco se atreve nele a bicharada de quatro patas, que aquilo é a pique, no melhor  reino de cobras e lagartada.
Fui lá ontem, voltei hoje, sentei-me na borda do caminho, perguntando-me quantos  antepassados meus o terão pisado, indiferentes à majestade do sítio, o pensamento voltado para a luta do ganha-pão e as ameaças de doença e desgraça.
De muito alto veio descendo um abutre, depois outro, um terceiro, um bando a circular sobre as fragas. Fiquei a observá-los, tomado dum medo irracional, primitivo, ao recordar que vêm sempre de longe, chamados pelo cheiro de morte e podridão.
Assobiei ao cachorro. Voltámos ambos a casa a falar dos poucos coelhos, deitando de vez em quando uma olhadela aos abutres, agora simples pontos num céu de tormenta.

domingo, abril 22

O meu cinema


A aldeia é o meu cinema a preto-e-branco. Cenas, gente, momentos, sobrepõem-se à rua e às canelhas de agora, e não é miragem ou sonho, estado segundo. Chamo os defuntos e eles retomam a vida de então, oiço-os, espalham em redor os cheiros perdidos do estrume, do suor, do bedum e das cagalhetas. Gritam em vozes que reconheço e têm nome, acenam, dizem as palavras simples do dia-a-dia, descobrem-se respeitosos ao toque do sino, murmuram avés, pousam as mãos nas cabeças dos miúdos que pedem a bênção, desejam-se boa-noite e santa paz.
Passam burras com fachas de palha, cântaros de água, cargas de lenha. O fumo das lareiras escapa pela telha-vã. Uma mulher corre com uma pinha a arder, outra esconde sob o avental o frango que assou no forno. No muro do adro pousaram duas caixas de sardinha, donde escorre uma salmoura que pinga para o chão e fede.
Já se fez escuro. Passa um homem com um lampião pendurado numa vara. Ouve-se martelar no alpendre do ferreiro.

Estou sentado no pátio. Vi o filme três vezes.

sábado, abril 21

"Diário Dum Emigrante"

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Uma leitura dos meus dezassete anos. Anotei que não gostara. A minha consciência social refilou, aquilo era sobre gente de 1a classe, havia ali muita pouca-vergonha de ricos com mulheres casadas. Copiei da primeira página: " Novembro 3 - O Manel com um ar idiota, a olhar para o rancho da mulher e dos filhos e sem saber que lhes dizer. Novembro 5 - Hoje desci à terceira, a ver de perto a carneirada humilde que em rebanho se aglomera no poço da ré. Galegos, vindos da Corunha e de Vigo, minhotos embarcados em Leixões, saloios entrados em Lisboa."
Reli ontem e voltei a não gostar. Mas que raio de tempo aquele, e que curiosos personagens, tão actuais no comportamento e na mentalidade. Será que, no essencial, a burguesia portuguesa não muda?

sexta-feira, abril 20

Irei sem perdoar

Na minha idade, a morte próxima, tenho horas em que faço contas, revejo sonhos, listo aspirações. Em primeiro lugar o desejo de que a minha morte não seja súbita. Quero tempo para me despedir dos que amo, dos amigos que tenho, horas para recordar os que me fizeram bem, ensinaram caminhos e abriram horizontes.
Quero tempo para rememorar e agradecer a minha vida, aventurosa, variada, rica de paixões, de fúrias, alegrias, negrumes, amores, alturas e precipícios, e que por vezes, como que fora de mim, iluminou o palco e me fez espectador privilegiado do espectáculo.
Quero horas para me despedir do pobre país em que vim ao mundo. Relembrar que o amei como se fosse gente, me senti menino acarinhado e feliz no seu regaço. Que dele aprendi a língua,  única no modo de embalo, aquela que para lá do sentido das palavras deixa entrever os mistérios da música e do eterno.
O país da suavidade, do desespero, dos sonhos infantis, das mãos pobres que um nada enche, do sofrimento envergonhado e amanhãs que nunca chegam.
Irei sem perdoar aos que o rebaixam.

domingo, abril 15

O Rebate


Nas livrarias desde sexta-feira 13/04

quarta-feira, abril 11

No palco

Falas de cinema e de rock, de viagens, museus, daquele recanto em Barcelona . Creio que por cortesia, ou fingindo interesse, falas também de livros, dos livros que queres ler, porque o tempo é escasso, as solicitações muitas. E voltas a falar de filmes e actores, de como te surpreendeu o Guggenheim em Bilbao, a maravilha que é deixar Istambul ao cair da noite, atravessar o Mar Negro, ver o romper do sol em Odessa.
Oiço atento, sorrio. Na tua idade é de esperar esse entusiasmo. Oiço-te e tenho o bom senso de não retribuir. Nada de comparações ou saudades tontas. Não te falo das minhas memórias, das viagens num tempo distante, em paisagens agora mortas. Dos mares que atravessei, dos medos que se sofrem nas borrascas, as piores, as que não são do vento, mas da alma e da dor de existir.
Aceno, mostro interesse. Transporto-me por segundos aos lugares que descreves, maravilho-me contigo. A espaços, porém, a atenção descola. Pergunto-me porque razão falarás tanto de aventuras, viagens, cinema, música, mas do que no íntimo pensas e sentes nada contas. Não que eu espere confidências, mas uma conversa de apenas entusiasmos, maravilhas, surpresas,  excitações, tem muito de cortina de fumo ou décor teatral. É cavaqueira, não é conversação.
Se por acaso leres isto não te vejas obrigado - obrigada? – a outro comportamento, mas talvez reconheças que o palco é menos interessante que a realidade escondida nos bastidores.

terça-feira, abril 10

O fardo

Faço o que está nas minhas forças para julgar amigavelmente e piedosamente o semelhante. Mas cansa muito, e por vezes, tal besta de carga que não aguenta o fardo, vou-me abaixo, sai-me então o veneno em golfadas.
Felizmente, porque também isso os anos me ensinaram, guardo o balde do vómito onde não cheire nem incomode. Verdade é que não me viria proveito se o despejasse, tão-pouco se incomodariam com ele os que o merecem, que esses são gente de cavalarias altas, cheios de si, e que só a si vêem.
Comigo sózinho, bem estou, mas a vida obriga a sair. Vem o semelhante, sorriso pronto, mão estendida, ressudando vaidade e arrogância. Palmadinha nas costas.
Sem intróito, diz ele assim:
- Venha lá a casa. Quero que me assine uns livros que lá tenho.
Dei-lhe uma resposta torta. Parece que estranhou.

domingo, abril 8

Páscoa

É Páscoa, bem sei, Jesus Cristo subiu aos Céus, de lá nos abençoa e há-de redimir. Amém.
Mas olho em volta, leio, oiço, vejo, e começo o dia em pecado, rogando maldições aos que exploram o semelhante, o roubam, humilham, lhe mentem. Não se me dá em nome de que credo, política, teoria ou ilusão o fazem, ou que razões encontram para se justificar.
Rogo ao Altíssimo para que esses seres vis tenham medo, sintam um terror igual ao dos que vivem sem esperança, os que têm fome, dormem na rua, se sabem perdidos e amaldiçoam o terem nascido.
Que aos que têm culpa dê o Altíssimo vida longa e dolorosa, torne infindas as horas de remorso, avive neles a crença de que não podem imaginar o martírio que os espera no Inferno.

sábado, abril 7

O terceiro acto

De pequenina tem aquela paixão do teatral, e a mímica, a entoação, os gestos, tudo nela é de quem vive num palco. Explica muitas vezes, com talento, a razão de não ter filhos. Ergue-se de súbito, aponta o baixo-ventre, descreve com dois dedos um círculo, dando a impressão de que segura um bisturi, e exclama com drama:
- Arrancaram-me tudo!
Não só eu, di-lo também a expressão dos outros presentes, vemo-nos de súbito no bloco operatório, o corpo na mesa, o sangue a jorrar, os cirurgiões muito concentrados, aquela aparelhagem toda, as lâmpadas. Depois, aos cicios e passadinhas, seguimo-la na maca pelos corredores, entramos no quarto, assistimos aos cuidados das enfermeiras.
Representa muito bem a visita dos médicos na manhã seguinte, o professor falando de sinartrose e pericárdio, uteremia, palavras que nada lhe dizem, nem a nós, mas que decorou por achá-las interessantes.
Senta-se então lentamente, suspirando, mas logo volta a erguer-se, pronta para o terceiro acto, a representação da impotência do Alberto, da sua sovinice, a discórdia e o divórcio.
Essa é a parte de que gostamos menos - o falecido era bom homem - e então há sempre alguém que diz que se faz tarde, vão sendo horas da deita.

quinta-feira, abril 5

Fazer de conta

Ouve. Vamos fazer de conta, esquecer quem somos, imaginar o impensável, o impossível, sonhar a dois. Sem regras nem cláusulas. Sem memórias. Sem vivências. Num anseio de união. Sussurrando palavras de carinho depuradas de enfeites, livres de medos, nossas, insensíveis ao mundo. Para que assim se torne outra, bem diferente, a linguagem das mãos, dos dedos entrelaçados, libertando devagarinho desejos reprimidos, loucuras, dando forma e brilho ao que se escondeu na sombra.
Nada nos prende. A nós, a ti, de escolher a luz ou o escuro, o sonho ou o despertar.

quarta-feira, abril 4

"Ecologia da língua"

No último número da LER dá Fernando Venâncio alguns exemplos do que está mal na "ecologia da língua", a nossa, a de Camões, Vieira, etc., e atira de início uma das palavras cujo abuso mais me aflige: "incontornável".
Dessa aflição já me ocupara aqui, juntando-lhe as do "absolutamente brilhante" e a do "acutilante". Mas há mais. Sou inseguro em datas, creio que uma década atrás não lia texto nem ouvia sujeito em que não esbarrasse com "vertente". Ele era a vertente dos salários, a vertente do ensino, a vertente estética, dando-me a impressão de que no país e nas pessoas tudo se inclinava. "Negocial" põe-me fora de mim. E para quê tanto "paradigma" e tanta "epifania"? Será que exemplo e revelação pertencem à classe baixa?
Há tempos li num cabeçalho": "A distopia do PSD". Como o texto que seguia não me esclareceu fui ao dicionário em busca da palavra que nunca tinha visto. "Distopia: situação anómala de um órgão". Caramba! Dá chique. Acho que também vou usar.

terça-feira, abril 3

Ah! A Finlândia!

Há dias em que por um nada se vai a boa disposição. Pequenos contratempos, mesquinhices, obrigações que sem vontade se têm de cumprir, uma troca de palavras que caiu mal. A companhia também por vezes involuntariamente contribui.
Cinquentona afável, bem na vida, nem feia nem bonita, estado solteira, tem a febre das viagens e, segundo diz, um enorme desejo de partilhar as suas impressões e experiências. Essa partilha, contudo, deve realizar-se apenas no subconsciente, pois em conversa usa três ou quatro adjectivos, o resto exprime-o com caretas, gestos, exclamações, um pfff! de vez em quando.
- Em 2006 estive no Canadá.
- Gostou?
- É imenso!
A Índia também lhe parece imensa, Nova Iorque, gigantesca. A Tailândia? Adorável! O Brasil? Um mundo! Acha a  Noruega incrível, "Aqueles fordes!"  A Marrocos irá este ano pela terceira vez. "Liindo! Liindo!"
- No Natal estive na Finlândia.
- Não conheço.
- Ah! A Finlândia!

segunda-feira, abril 2

"Bangalijst"


Vai na Holanda uma agitação, porque desde há tempos, com o título de Bangalijst (Lista de fodilhonas) circulam na Internet listas em que a rapaziada do secundário faz saber, com nome,  sobrenome e alcunha, quem são as colegas mais despachadas na arte, as que o dão por gosto, o tarifário das que querem dinheiro.
Iam-se fechando os olhos, ao fim e ao cabo as brincadeiras pouco duram, mas duas semanas atrás uma garota de treze anos suicidou-se depois de ver o seu nome numa lista, e a brincadeira tornou-se notícia. Entrou então a gente da Moral, da Polícia, da Justiça, o coro dos pais aflitos, o dos directores de escolas, aos berros de que é urgente pôr fim à bandalheira, levar a tribunal, se for preciso prender os maldosos.
E as maldosas. Porque não são só os rapazes a fazer listas, fazem-nas também as meninas que, sabidas no anonimato da Internet, e rabiosas por ciúmes, invejas, sabe-se lá que mais, descobriram uma muito eficiente  forma de Bullying e difamação.
Como tudo evolui, as possibilidades são sem conta, e a rapaziada depressa se aborrece,  preparem-se as famílias, não só na Holanda, para evolução da crónica escandalosa.

domingo, abril 1

O carreiro

Olho o carreiro na encosta e volto à meninice, às tantas vezes que o desci a correr, ansioso por chegar à ribeira. Imaginava ali o mar, na ponte medieva um castelo, mudavam-se os canaviais em floresta virgem, os melros em águias e condores. Atravessava a vau, pronto para o ataque dos crocodilos. Quando lá passo recordo, junto do muro, o lugar onde matei dois índios e, para lá das hortas, a clareira onde vi a cavalgada de Yala, a Vingadora, e as suas belas  amazonas. As cabras ao longe  eram os meus búfalos, eu o cowboy perito no laço e no tiro rápido dos Smith & Wesson que me pendiam do cinto.
Hoje cedi à recordação e fui carreiro abaixo, tropeçando nos calhaus, amparado a uma bengala , incapaz de sonhos e visões. Sentei-me na ponte. Olhei em redor, perguntando-me que fazia ali, e se teria pernas para o quilómetro e pouco de subida agreste.