Foi publicado em Abril passado na LER e deixou-se aqui uma
prova. Para encher o vazio das férias, o texto completo:
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RUE D’ANVERS
Quem nasceu com as liberdades dos
Beatles e do Rock 'n' Roll, só com excepcional esforço da fantasia conseguirá
compreender um pouco do pasmo, da exaltação, febre e fome sexual de um rapaz
que, mal feitos vinte anos, a década de 50 no começo, descobre Paris e, por
bagagem erótica, tem apenas o onanismo, o dedilhar nas cuecas de uma Luísa na
escadaria da igreja da Senhora da Agonia, em Viana; apalpões nas mamas e outras
partes de várias Emílias e Teresinhas; cópulas peçonhentas em casas de tia da
Rua Escura, no Porto; raras visitas ao bordel de Madame Blanche na Rua da
Glória, em Lisboa, raras porque duma assentada me depenavam do pré de miliciano
e do escasso mealheiro.
A imaginação e overdoses de leitura
só serviam para aumentar o desejo, acelerar as pulsões, e foi nesse estado que
quase de súbito, dois ou três dias depois da chegada, me vi pela mão de Joaquim Novais Teixeira
(1899-1972), amigo de raras qualidades e precioso mentor, a entrar num diminuto
apartamento na vizinhança da Rue du Bac,
cheio de gente, fumo, barulheira, comunicando aos berros com o locatário que,
achava Novais, seria para mim um útil contacto.
Ruy Guerra (1931), moçambicano, filho
de pai rico, estudava no Institut des
Hautes Études Cinématographiques e distinguia-se então pelo apartamento, a
posse de uma Lambretta, a jovial
camaradagem, as raparigas que atraía, o entusiasmo com que falava da arte do
cinema.
Particular era a amizade que o
ligava a Gabo, um colombiano de maus fígados,
sobremaneira insolente para com quem se atrevesse a contradizê-lo ou contrariar
a sua certeza de que no marxismo estava a salvação. Com o Ruy simpatizei, mas pus
boa distância entre mim e o colombiano, também íntimo de Novais, e de quem
viria a apreciar Cem anos de Solidão
e, sobretudo, O Amor nos Tempos de Cólera.
Retirou essa antipatia a
oportunidade de mais tarde me poder dizer compincha de um Nobel, mas poupei-me
o trato com um personagem que, de tão cheio de si próprio e da ortodoxia das
suas convicções, desafiava a paciência.
De melhor têmpera e mais siso, eram
o François, o Jean-Luc, o sorridente e em permanente boa disposição Claude,
rapazes de quem recordo o entusiasmo que partilhávamos pelo cinema italiano e a
admiração que tínhamos por Rossellini, Vittorio De Sica, Anna Magnani, Lucia
Bosè, – paixão minha – mas nada que me permita fazer valer intimidades com
Truffaut, Godard ou Chabrol, embora mais tarde, esporadicamente, os viesse a
encontrar na redacção dos Cahiers du
Cinéma.
Mencionei que o apartamento era
diminuto, adjectivo que deixa margem para interpretação, e mais de acordo com a
realidade seria classificá-lo minúsculo: uma salinha onde cabia um sofá e pouco
mais, um quarto com uma cama estreita, um banheiro que ao mesmo tempo fazia de
cozinha.
Minúsculo sim, mas paraíso de porta
aberta onde havia sempre gente, às vezes tanta que o patamar servia de anexo. E
quando digo paraíso e gente, digo sobretudo mulheres, que em número excediam os
existencialistas que por ali rondavam, sombrios, pose de enfastiados, Gauloise nos dedos, citando passagens de
L'Être et le Néant, querendo ouvir
opiniões sobre Heidegger, a importância dos planos quinquenais, a ascensão das
massas campesinas na América do Sul.
Visita quase diária, arregalavam-se-me
os olhos para o espectáculo, e nesses mesmos olhos, na pele, no cérebro, nos
dedos, nas mãos, sabe Deus em que partes mais, descobria eu, perplexo, qualidades
de esponja, uma propensão para, com urgência de obcecado, absorver o que se me
deparava, me propunham ou ofereciam.
Das primeiras e inesperadas ofertas
há muito esqueci os nomes, as feições, e provavelmente confundo os locais,
julgando que aconteceu por baixo do Pont
des Arts o que fizemos no Pont Neuf,
ou mais certo é ter sido no Quai Voltaire.
Guardo sim, inapagável, a lembrança
de Felipa, madrilena, então futura arquitecta, dez réis de gente que de aparência
pouco atraía, mas, garantiu o que ma passou, era senhora de dotes e artes que me
deixariam estonteado e de boca aberta.
Ingénuo principiante, sorri da
prognose, mas pronto se me foi a arrogância e mais de uma vez sentiria descair
os queixos, porque na cama ou nas esquinas, plateias de cinema, em vãos de
porta, cais do Sena, bancos de jardim, indiferente à hora, ao lugar ou
testemunhas, Felipa era bomba ninfomaníaca a explodir das mais variadas, mas
todas deliciosas maneiras, usando o corpo com a paixão, a febre e a arte de um
Paganini agarrado ao violino.
Num único detalhe era severa e inflexível:
o rasgão do hímen estava reservado para aquele que, virgen purísima, a levasse ao altar. No mais valia tudo: o que
custa imaginar, o acrobaticamente penoso, refinamentos que Vénus lhe tinha
ensinado, outros que ela aperfeiçoara ou inventara. Tudo, sim, mas la penetración? Jamás!
Em razão de uma velha amizade, nesse
maravilhoso tempo era eu hóspede de madame
Gournay num esplêndido apartamento da Rue
de Naples, edifício de opulência burguesa, dotado de um venerável ascensor
hidráulico que excitava a minha doentia imaginação: redonda e espessa, inteiriça,
saía das profundas uma coluna de aço que, tal um falo gigante, empurrava a
geringonça até às alturas.
A entrada era elegante, espaçosa,
havia um pátio florido, do lado direito ficava a loge de madame Marie
Louise, la concierge, rechonchuda
trintona de pele muito branca, cabelo muito loiro e permanente boa disposição,
casada com monsieur Eugène, ele todo
o avesso: seco de carnes, amargo, queixava-se de ir nos cinquenta, queixava-se
do seu trabalho na EDF (para meu
benefício soletrava Eléctricité de France), queixava-se dum ou doutro locatário e,
sobretudo, do peso que era, por volta das seis da manhã, abastecer de carvão
nos quartos de banho as enormes caldeiras do aquecimento central.
- Sabe quanto pesa cada saco? E às vezes levo
dois!
Eu acenava que sim, fingindo compadecido,
recordando a doçura das manhãs em que madame
Marie Louise o substituía e, tendo enchido a caldeira, se esgueirava para o meu
quarto, despia o roupão e caía nos meus braços, dando-me o consolo das friandises de Lille, que assim chamava
ela às suas, também várias, artes de copular e satisfazer, homenageando de
passagem a cidade natal.
É verdade inegável que o Diabo as
tece, e com tão subtil engenho que nos aponta a ratoeira, mas no momento em que
ao descobri-la a queremos evitar, já ela nos apanhou, nada adiantam protestos
ou remorso. Quiseste? Pagas.
Sonhava eu com o ensaio de uma ou
outra cena dos romances de Pierre Louÿs,
ou de um episódio de Juliette,
de Sade, e querendo realizar o sonho esperei a boa conjunção, não dos astros,
mas de uma ausência prolongada da minha senhoria, a disponibilidade de Marie Louise, e que o horário mantivesse monsieur
Eugène nas oficinas da EDF. À Felipa bastaria acenar, porque mesmo ocupada
noutra cama, sabia-o eu por desagradável
experiência, cheirando-lhe a novidade largava tudo.
Assim aconteceu, durou o festim a
tarde inteira de um sábado de Junho, e se alguma coisa se copiou dos clássicos
franceses do deboche, o nosso entusiasmo tinha-lhe emprestado aparências de
originalidade.
Foi melancólica a despedida, eu babado
em demasia com os carinhosos adeuses que ambas se faziam, para me aperceber das
caretas do Demo, a zombar da minha ignorância das mulheres e das coisas do mundo.
Porque a partir desse dia Marie Louise foi espaçando as matinas, até que para desconsolo
meu e sem adeuses as terminou; e Felipa sumiu, embora numa ou noutra ocasião me
parecesse reconhecê-la na vizinhança, o que era de estranhar, pois o seu
habitat era a longínqua Rive Gauche.
Sofri um período de luto e quase
abstinência, encontrando alguma, mas fraca compensação, nas raparigas que, vestidas de
túnicas, formavam um coro da Grécia antiga num documentário de Ado Kyrou
(1923-1985), no qual eu figurava de hoplita, com elmo, couraça, escudo e lança
na mão, envergonhado com o saiote, sofrendo as grevas que me apertavam as
pernas, tendo ainda, entre as filmagens, de sofrer longos discursos do
realizador e amigo sobre temas que o fascinavam, e de que viria a tratar num
livro intitulado Amour - érotisme et cinema.
Porque se apiedasse de me ver
macambúzio, talvez com remorso de tão impiedosamente ter deixado de me aquecer
a cama, ou ainda pelo agrado de que a minha inexperiência lhe proporcionasse
uma forma de estrelato, Marie Louise retomou as visitas, parecendo que agora o
fazia menos pelo gozo que delas tirava e me dava, do que para satisfazer uma
inata veia pedagógica, ou por razões que me escapavam.
Foi assim que numa manhã de fraco
recreio, já em pé ao lado da cama, embrulhando-se no roupão com vagares de
odalisca, anunciou sem muitos detalhes que do que eu precisava era ir de visita
à Rue d'Anvers.
Pouco mais disse, mas mau grado a
curiosidade eu tinha de fazer pela vida, suando dias e às vezes noites numa cabine a
legendar filmes.
Demorou a que me aventurasse, até
que uma tarde de sábado me pus a caminho, rememorando o que Marie Louise explicara: não era bem uma livraria, como
estava na tabuleta, antes uma espécie de loja de livros antigos, e de um lado
havia um retroseiro, no outro vendiam pássaros e gaiolas.
Lá chegado demorei a descobrir a Rue d'Anvers (*), andei às
voltas pelo Square d'Anvers, sem contudo estranhar, mais
vezes tinha notado que Marie Louise mostrava pouco interesse por detalhes e era
avessa a explicações, certa de que as coisas
sempre se arranjavam, a bonomia do seu sorriso bastando para desculpa.
Espreitei a loja dos pássaros e das
gaiolas, confirmou-se o retrosaria, e de facto assim era, flanqueavam a curiosa
montra que tinha algo de um proscénio: orlada de veludo escuro, deixava apenas o
espaço onde, sobre uma peanha, ladeado por um grosso círio de igreja, se via
aberto o que parecia um incunábulo, com iluminuras que a distância não permitia
distinguir.
Respirei fundo, três vezes premi a
campainha, mas demoravam tanto a atender que, mal humorado, me ia retirar, quando
a porta se abriu e de surpresa involuntariamente espequei, custando-me a
recuperar a fala para reagir ao seco "Vous
desirez? pronunciado por uma mulher de meia idade, sobriamente elegante, vestida
de preto, que pela postura e a diferença dos degraus parecia olhar-me de muito
alto e a modos de intimidar.
Tartamudeei que vinha da parte de Marie
Louise, e o que me parecera altivez mudou para um quase sorriso, ela dizendo
que sim, sabia, o aceno da mão convidando-me a entrar.
Fechou-se a porta automaticamente,
acenderam-se luzes, a senhora apontou uma cadeira, sentou-se ela numa poltrona ,
eu a olhar em volta, reparando que me encontrava no que parecia uma loja de
alfarrabista, quiçá arrumada demais para
esse género de comércio.
Iniciou a madame um interrogatório sem preliminares, pedindo les papiers,
assegurando-se que a minha cara era a do passaporte, querendo saber como se
pronunciava o nome, onde morava, o que fazia na vida, se tirante Marie Louise
poderia nomear alguém como referência.
Achei melhor fazer de desprotegido,
respondi que não, chegara havia pouco, mas Marie Louise confirmaria a morada e as
minhas boas intenções.
Pareceu-me que se divertia com ver-me
gaguejar, e terminou dizendo que voltasse, marcou-me o dia e a hora, falaríamos
mais de espaço, e então explicaria o que necessitasse de ser explicado.
Às gargalhadas, mas sem detalhes
nem explicação, Marie Louise tinha afirmado "Ça
va te faire un trou!", sugerindo que uma visita à Rue d'Anvers abriria um rombo na minha mais que modesta carteira.
Valeria a pena? Fingia pôr-me
seriamente a pergunta, dar-me ares de sensatez, mas por dentro tudo eram
tremuras de febre, desejo, urgência de descobrir, o frenesim aumentando à
medida que recontava as notas, sem auspício de que se repetisse nos meus poucos
francos o milagre da multiplicação dos pães.
Estou de novo sentado na mesma cadeira,
e madame Françoise, o nome que disse
ao apertar-me a mão, ainda veste de preto, mas la petite robe noire foi trocada pelo que tem alguma semelhança com
um uniforme militar, preto também, perfeito no corte, de um cabedal que mesmo
sem tocar se lhe adivinha a macieza e a qualidade.
Faço o que posso para esconder o
que me vai na cabeça, quero fingir de atilado, porém, mesmo espaçadamente
servidas, as suas palavras desatinam-me. Baixo involuntariamente os olhos,
sofro com a minha parolice, tenho o sentimento de que, com gentileza e suave
ironia, recostada na poltrona como para aumentar a distância que nos separa, madame Françoise me vê mais nu do que
quando vim ao mundo.
A primeira paulada foi a da
franqueza: desculpasse, mas compreendesse, eu nada tinha a procurar ali, nem
era lugar que me conviesse. Aceitara receber-me por favor a Marie Louise, que conhecia
há muito e lhe merecia enorme
considération por razões com que eu não tinha a ver. Fez ainda uma ou outra
observação sobre a juventude, o risco que corria aquele que, apressado, falto
de preparo, sem os meios nem as qualidades precisas, queria frequentar certos ambientes.
Atordoado, engolindo em seco, pois
longe estava de esperar o sermão, tive bom senso, travei os comentários patetas.
E como ela se erguia, dizendo que teríamos de nos despachar porque aguardava
visitas, levantei-me também, fiz de conta estar habituado a ver uma enorme
estante girar silenciosamente, dando acesso a uma escada.
Subiu ela ligeira, eu inseguro, fitando
os degraus, desconhecendo se me impedia de olhar por receio, ou suponha esconder
assim o meu embaraço. Um patamar deu-me ideia de que entrávamos noutro prédio, e
madame Françoise, sem uma palavra, ia
abrindo e fechando portas, mal me dando tempo a reter o que havia por ali:
azorragues, cavaletes, uma mesa de cirurgia, cordas e peças de ferro de
estranha forma, máscaras de veludo, de madeira, de metal, uma parede toda de
espelho como nas escolas de dança, grilhetas, uma forca, algemas, uma cruz de
madeira negra, um inesperado e luxuoso quarto de banho.
Pondo os dedos nos lábios,
fez-me sinal que entrasse num cubículo que pouco mais era que um armário,
indicou o que se assemelhava a um periscópio, e saiu encostando silenciosamente
a porta.
A saleta devia ser insonorizada,
porque embora a mulher parecesse gritar e
agitar-se nada se ouvia, do mesmo
modo que uma ou outra palavra do homem se adivinhava apenas pelo mexer dos
lábios.
Nua, estendida no que parecia
uma maca excepcionalmente larga, era mulher de forte postura, pernas musculadas
como de bailarina, seios firmes. Por estar de pés voltados para mim via-lhe mal
o rosto, mas distinguia os pulsos e os tornozelos presos à maca por correias de
cabedal.
De pernas abertas ao que me
pareceu o limite possível, tinha espetadas na vulva, nas coxas e no ventre umas
quantas agulhas longas e finíssimas, em que o homem, um sexagenário de barba
grisalha, bata branca e estetoscópio ao pescoço, por vezes mexia com uma mão,
enquanto com o polegar da outra pressionava aqui e ali, ora nas virilhas, ora na
sola dos pés, numa carótida, na outra, às vezes parecendo desenhar com a unha.
O corpo contorcia-se em espasmos,
o homem voltou-se, sorrindo a alguém cuja sombra começava a desenhar-se no soalho,
nesse mesmo momento a imagem desapareceu no "periscópio", a porta do
cubículo abriu-se, e madame
Françoise, acenando que me despachasse, levou-me
por um corredor muito estreito, descemos
outra escadaria e, juntando um irónico Au
revoir! ao aperto de mão, saiu da minha vida.
Desnorteado, sonâmbulo, mal
dando pelo burburinho do boulevard ou
em que direcção caminhava, tomou-me o sentimento melancólico de que deveria
aceitar a minha ignorância e, com remorso, envergonhar-me de por ter lido
muito, julgar que muito compreendia, que seriam escassas as ocasiões de
novidade.
Magoava-me, sobretudo, a
consciência do engano parvo de, por estar em Paris e inesperadamente viver o
que para outros seriam aventuras banais, supor que tinha chegado aonde queria,
julgar-me arrivé.
Esperei, desesperei, as mais das
vezes ao entrar ou sair do prédio dava com o "Je reviens!" na porta da loge, ou uma Marie Louise apressada, a piscadela de olho a dizer que me tinha no pensamento.
E de facto uma manhã
surpreendeu-me com a visita, curiosa de ouvir, mas sentada na borda da cama,
dando a entender que não haveria friandises.
- Racconte!
Contei a secura de madame Françoise, o pouco que tinha
visto, cauteloso em guardar para mim os sentimentos com que de lá saíra, mas o
interesse de Marie Louise parecia distante, só se entusiasmou quando falei da
mulher com as agulhas.
- Ah! Radko! É médico. Veio da
Bulgária. Usa uma técnica de acupunctura para estimular orgasmos e dizem que
foi ele que a descobriu. Faz rios de dinheiro.
De momento, porém, só Marie
Louise me interessava, queria ouvir mais, tudo, não ia deixar que escapasse sem
satisfazer a minha curiosidade e, segurando-lhe o pulso, que ela era ligeira,
imprevisível, tomei ares de Maigret:
- Mas tu?
Em vez de responder deitou-se ao
meu lado, toda carícias e doçura, beijinhos, fintas, talvez descrente de que eu
pudesse ser tão teimoso, levasse a sério o interrogatório e a incarnação do
comissário.
A Marie Louise de olhar doce,
carne macia, pele muito branca, cabelo muito loiro, uma festa na cama, era a
que eu conhecia. Mas havia a concierge
prestimosa e cordial; a dedicada esposa de monsieur
Eugène; a cozinheira com fama no prédio; a rapariga que gostava de ópera e com uma
bela voz de soprano acompanhava as árias do rádio; a filha dedicada que ao mais
pequeno alarme corria a visitar os pais em Lille.
De certeza havia outras, mas
finalmente, arrastando, chegámos à que eu estava longe de imaginar: a Maria
Louise maîtresse no estabelecimento
da Rue d'Anvers. E que maîtresse. Muito procurada pela
competência em dominar e ferir, inventiva no uso do cavalo-marinho,
especialista de arriscadas técnicas do afogamento, orgulhosa de assim provocar
ejaculações e orgasmos que faziam concorrência aos de Radko.
Sorriu ao dar conta do passo em
falso, aceitando que de verdade, tal como o búlgaro, a respeito de paga não
tinha razões de queixa, fora ser madame
Françoise, além de sua amante, patronne
de invulgar generosidade.
A meio da confidência já eu
esquecera o papel de investigador, esforçando-me por disfarçar o desnorte e, tanto
quanto era capaz, conseguir uma expressão que não traísse em demasia o embaraço
que me causava a ignorância – teria de procurar "acupuncture", "empaler",
"ondinisme", no Petit Larousse – nem quanto me doeria
se Marie Louise se arrependesse de me ter tomado para seu fugaz brinquedo.
Mas o destino ata e desata os
laços com que julgamos poder prender os outros. Estava nos astros que ao
despedir-se sem mais palavras, apenas um sorriso e um beijo, Marie Louise me deixaria
ali com a parecença de um aprendiz de boxeur que, inexperiente peso pluma, se
atreve a subir ao ringue, leva um directo e fica KO.
A sequência foi corriqueira:
porque o aluguer aumentava e os ganhos ameaçavam diminuir, vi-me obrigado a
procurar outro alojamento, o que no Paris do tempo se assemelhava a querer
descobrir a clássic agulha num palheiro.
Incrível e feliz acaso, ainda
por cima como que ao preço da chuva, fui encontrá-lo na Rue de Vaugirard.
Pobre de mim, que já tinha assinado
o contrato – e por um ano - quando dei
conta das razões da pechincha: ficava paredes meias com o gigantesco matadouro
de Vaugirard, onde diariamente se abatiam
centenas de cavalos.
Os pobres animais, pressentindo
a morte, relinchavam noite e dia um soturno augúrio.(**)
E eu, torturado pela insónia,
pelas recordações de Marie Louise e da Rue
d'Anvers, perguntava-me se estaria condenado aos sonhos da ingenuidade, ou
se havia esperança de que um dia algo compreendesse das conjunções do prazer
com o perigo, o pecado e a paixão.
(*) A Rue d'Anvers
desapareceu nos anos 70, anexada pela ampliação do Square d'Anvers.
(**) Esse famoso e sinistro estabelecimento encerraria
definitivamente em 1978. O espaço é agora ocupado pelo parque Georges Brassens.