Entre Julho e Agosto de 1996 escrevi no jornal
neerlandês de Volkskrant uma série de
cartas a personagens literárias. Esta para
Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro. Já foi publicada aqui
em Setembro de 2007, mas repete-se hoje com intenção particular.
Prezado
sargento Getúlio,
Que me lembre, poucas vezes ao começar uma carta terei ressentido um tão
singular desencontro de sentimentos como o que me toma ao escrever esta.
Em primeiro lugar, porque não sei bem se o modo que uso em epígrafe é o mais
adequado para me dirigir a si. Sê-lo-ia, certamente, para com um dos sargentos
pouco militaristas de agora, desses que foram à escola e possuem uma noção
democrática do respeito que se deve às pessoas e às instituições.
No seu caso, creio que não. Sargento da Polícia Militar Brasileira nos anos 50,
analfabeto ou quase, autoritário até à loucura, você tem sobre o respeito
ideias tão suas que, embora pareça absurdo, elas se tornam simultaneamente
ridículas e universais, humanas e perigosas. Num momento provocam a minha ira, mas
por um estranho poder de corrupção, logo a seguir me sinto obrigado a conceder
que me parecem razoáveis.
Acontece também que nunca escrevi a um morto, o que faz acompanhar o acto de
uma curiosa sensação de irrealidade. Isso, contudo, não evita que noutra parte
do meu ser, aquela em que existo sem as peias do espaço e do tempo, você tenha
adquirido a qualidade de figura eterna e ponto de referência. Não que lhe
inveje a crueldade de lentamente esfolar vivo um inimigo, de gozar ao fazer com
que outro vomite os próprios intestinos, ou ao abrir à faca o ventre duma
mulher grávida.
Tãopouco posso apreciar o modo cego como você acata ordens, menos ainda a
agudez animal de, em tudo e todos, procurar o ponto fraco para depois, sem dó
nem perdão, pensar apenas em destruir.
Todavia, nas
horas escuras em que o impossível deixa de existir e o espírito anseia por
liberdade total, tenho-me surpreendido a imaginar que talvez não desgostasse de
viver uma vida linear como a sua, em vez de me ver submetido aos solavancos e à
confusão do meu dia-a-dia. Porque o que sobretudo em si me fascina é a
aceitação da existência sem regras, limitada a um único bem, o cumprimento da
ordem, e reconhecendo somente um único mal, a desobediência à ordem. O resto:
crueldade, medo, fome, dor, sofrimento, desaparece esmagado entre esses dois
pilares que, no seu ver, com terrífica simplicidade delimitam tudo.
Você prova o que eu preferiria não ver provado: que a vida pode ser vivida sem
moral, sem beleza, sem amor. Que todos os entusiasmos são fúteis, a alegria
indecorosa, o carinho um acto mecânico.
Felizmente, a minha sensibilidade e a consciência - ou serão apenas as minhas
limitações? - levam a melhor e, passado o desvario, retomo o que julgo ser a
paz que me permite ir existindo. Só que essa paz dura pouco. Tendo conseguido
semear em mim a desconfiança, no final é você quem vence. Cruel e assassino,
indiferente ao sentimento próprio ou alheio, maníaco com apenas uma ideia,
avesso a tudo o que seja mudança, mesmo assim qualquer coisa em si toca o
religioso, algo de inefável, de puro. Algo que se apercebe ainda menos que o
ligeiro toque da brisa, e contudo se ressente forte como uma presença sólida,
uma certeza.
Muitos dos bons sentimentos que a você faltam, conheço-os eu de nascença, e
quase tudo o que você é, representa, o que faz e o que sente, é para mim
odioso. Porém, e esse será o mistério da admiração que você me causa, e até
certo ponto o da minha inveja: enquanto eu nunca torturei nem matei, tenho a
certeza que no dia em que comparecermos no Julgamento Final, Deus fará para o
meu lado um gesto de demissão, e o acolherá a si com um sorriso de ternura.
Porque só Ele sabe as razões que O levam a escolher a um para Seu instrumento
do Mal, e a atirar a outro para a anonimidade da massa que, respeitosa da moral
por temor ao castigo, cobardemente se conforma.