Os funerais de Eça de Queirós
"Eça tem passado a morte a ter, de vez em quando, um funeral: como é sabido morreu em Neully-sur-Seine a 16 de agosto de 1900 e as primeiras exéquias ocorreram, dois dias depois, na igreja paroquial dessa municipalidade dos arredores de Paris, tendo estado presentes a mulher e os filhos, alguns amigos, o representante do rei D. Carlos e outros elementos do corpo diplomático, incluindo o visconde de Faria, cuja mulher, em 1888, quando Eça se dirigiu ao Consulado de Paris para ocupar o posto para onde tinha sido nomeado, intitulando-se consulesa, o recebeu aos berros, tentando impedi-lo de tal, numa peixeirada que o escritor virá a descrever em carta enviada a Oliveira Martins. Enquanto a família, em contato com os amigos e influentes do Ministério dos Negócios Estrangeiros, ia tratando da sua trasladação para Portugal, pensando no jazigo onde poderia ser depositado o seu corpo, foram então equacionadas várias hipóteses, entre elas o da família paterna, onde jazia seu avô e onde será sepultado seu pai em 1901, no cemitério do Outeirinho, em Verdemilho, Aveiro, ainda hoje ali existente. Mas talvez alguém tivesse achado que era demasiado “perigoso” juntar na mesma campa as relíquias corporais de seu avô, o mentor da revolta de 1828 contra D. Miguel, e por isso por ele condenado à morte, de que se escapou, agora mais os ossos do escritor filho do juiz seu pai que teve a ousadia de pronunciar e mandar deter um dos homens mais ricos e corruptos de Portugal do seu tempo, o conde do Bolhão. Seriam muitos livre-pensadores juntos num jazigo só. A urna lá seguiu depois para o porto do Havre, de onde a 13 de setembro seguinte é embarcada no navio África, chegando a Lisboa a 17. Entretanto o governo e uma comissão criada para o efeito tiveram tempo para organizar um expressivo funeral, mandar revestir de sanefas pretas o Arco da Rua Augusta e de laços pretos os candeeiros da iluminação pública e organizar um cortejo fúnebre que, depois de receber a urna no Cais das Colunas para ser transportada num carro decorado por Rafael Bordalo Pinheiro, foi a mesma acompanhada por sessenta outras carruagens, entre o Terreiro do Paço e o Cemitério do Alto de São João, onde deveria ficar sepultado no jazigo do cunhado Alexandre de Castro Pamplona. Dentro de cemitério a pesada urna foi levada até ao jazigo em quatro etapas, transportada por amigos diplomatas, como o Marquês de Soveral, ministros e jornalistas, mas ninguém previu um pequeno problema: as suas decorações metálicas impediam que esta entrasse na porta do jazigo e só no dia seguinte o problema foi resolvido. Existem boas descrições, e até fotografias, deste funeral e nelas sobressaem as referências aos discursos das entidades oficiais sobre nadas e coisas nenhumas da vida e obra do escritor, que de todo, ou não conheciam, ou sobre algumas delas sabe-se que tinham sérias reticências. Estiveram ali a palrar em bicos de pés autênticos conselheiros Acácio, a posarem para as conveniências do momento. Não será a última vez que tal acontecerá. De tempos a tempos, nomeadamente durante as comemorações do centenário em 1945, alguém levantou a questão da tumulação definitiva e honorífica do escritor, mas essas preocupações depressa se dissiparam sem concretização. Será interessante elencar as diversas propostas ao longo do tempo, entre as quais se destacam as do jornalista António Valdemar que defendeu a solução Panteão Nacional.
Na vida, e mesmo na morte das pessoas, não existem factos isolados, mas uma continuidade de inter-relações com resultados muitas vezes a mais ou menos longo prazo. O que se virá a passar com os futuros funerais de Eça não pode ser desligado da fundação em 1940 do Círculo Eça de Queirós em Lisboa e do discurso então proferido por António Ferro no ato da inauguração, onde o escritor que passara a vida a fazer por escrito um monumental retrato de família muito crítico da sociedade portuguesa do seu tempo, foi então, por parte do mentor do salazarismo, reduzido a um cultivador de prosas turístico-regionalistas, inofensivo e perfeitamente “canonizado” na religião da mediocridade aldeã contra as perversões da cidade e do progresso. Em 1989 o jazigo onde Eça tinha sido depositado em Lisboa, por abandonado, foi posto à venda e os ossos do escritor corriam o risco de serem despejados desta habitação pouco eterna. De novo voltaram a ser equacionadas as várias hipóteses para trasladação, mas a que então prevaleceu foi a recentíssima construção pela Fundação Eça de Queiroz de um jazigo familiar no cemitério de Santa Cruz do Douro, para onde foi enviado a 15 de setembro desse ano, juntando-se as restos mortais de seus filhos e outros familiares, mas não os de sua mulher. Após ter permanecido um certo tempo na Basílica da Estrela, onde se disse uma missa com reduzida assistência ao ato, foi transportado desde Lisboa pela Agência Barata e trazido ao Porto à Praça da Batalha, perto do governo civil, onde se lhe juntou uma pequena multidão que, em cortejo automóvel, acompanhou os seus restos mortais até Baião, com nova missa à chegada na igreja daquela paróquia rural.
Mas o sossego dos seus despojos não ia durar muito: três décadas depois, em 2021, com a concordância de parte dos descendentes, uma proposta apresentada na Assembleia da República determinou que os seus restos mortais de novo regressassem a Lisboa e fossem depositados no Panteão Nacional, o que esteve agendado para o próximo dia 27 de setembro. Mas entretanto uma outra parte dos descendentes, não concordando com esta decisão, apresentou na Justiça uma providência cautelar contra este novo funeral, que deverá assim ser adiado à espera de decisão judicial que, como é sabido, em Portugal são demoradas.
Não sei se tal acrescentará alguma coisa à glória da obra queirosiana, mas um facto histórico é já incontestável: mesmo ainda sem este retorno à capital, Eça de Queirós já teve mais funerais do que a rainha D. Maria II, o que para um cônsul bacharel em Direito e escritor não está nada mal. Mas mesmo na hipótese de nova trasladação, desta vez Eça de Queirós não terá «…esse sumptuoso funeral caminhando devagar, com paragens solenes, a mole monotonia da música fúnebre, o arrastar grave de espadas, essa marcha funerária dum exército: e, adiante, entre tochas que levantavam alto as chamas lívidas, a complicada estrutura do féretro, coberto de crepes e de dourados, marchando numa vacilação lenta; e daquele longo negro cortejo, desprendendo para o azul-ferrete de um esplêndido dia de Setembro, uma sensação difusa de Morte (Eça de Queirós, O Conde de Abranhos).
Os tempos, efetivamente, já são outros.”
J. A. Gonçalves Guimarães
Historiador
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Grato ao autor, confrade queiroziano e amigo de longa data,
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