quinta-feira, setembro 28

Eça de Queirós e os Abranhos

 

Os funerais de Eça de Queirós

"Eça tem passado a morte a ter, de vez em quando, um funeral: como é sabido morreu em Neully-sur-Seine a 16 de agosto de 1900 e as primeiras exéquias ocorreram, dois dias depois, na igreja paroquial dessa municipalidade dos arredores de Paris, tendo estado presentes a mulher e os filhos, alguns amigos, o representante do rei D. Carlos e outros elementos do corpo diplomático, incluindo o visconde de Faria, cuja mulher, em 1888, quando Eça se dirigiu ao Consulado de Paris para ocupar o posto para onde tinha sido nomeado, intitulando-se consulesa, o recebeu aos berros, tentando impedi-lo de tal, numa peixeirada que o escritor virá a descrever em carta enviada a Oliveira Martins. Enquanto a família, em contato com os amigos e influentes do Ministério dos Negócios Estrangeiros, ia tratando da sua trasladação para Portugal, pensando no jazigo onde poderia ser depositado o seu corpo, foram então equacionadas várias hipóteses, entre elas o da família paterna, onde jazia seu avô e onde será sepultado seu pai em 1901, no cemitério do Outeirinho, em Verdemilho, Aveiro, ainda hoje ali existente. Mas talvez alguém tivesse achado que era demasiado “perigoso” juntar na mesma campa as relíquias corporais de seu avô, o mentor da revolta de 1828 contra D. Miguel, e por isso por ele condenado à morte, de que se escapou, agora mais os ossos do escritor filho do juiz seu pai que teve a ousadia de pronunciar e mandar deter um dos homens mais ricos e corruptos de Portugal do seu tempo, o conde do Bolhão. Seriam muitos livre-pensadores juntos num jazigo só. A urna lá seguiu depois para o porto do Havre, de onde a 13 de setembro seguinte é embarcada no navio África, chegando a Lisboa a 17. Entretanto o governo e uma comissão criada para o efeito tiveram tempo para organizar um expressivo funeral, mandar revestir de sanefas pretas o Arco da Rua Augusta e de laços pretos os candeeiros da iluminação pública e organizar um cortejo fúnebre que, depois de receber a urna no Cais das Colunas para ser transportada num carro decorado por Rafael Bordalo Pinheiro, foi a mesma acompanhada  por sessenta outras carruagens, entre o Terreiro do Paço e o Cemitério do Alto de São João, onde deveria ficar sepultado no jazigo do cunhado Alexandre de Castro Pamplona. Dentro de cemitério a pesada urna foi levada até ao jazigo em quatro etapas, transportada por amigos diplomatas, como o Marquês de Soveral, ministros e jornalistas, mas ninguém previu um pequeno problema: as suas decorações metálicas impediam que esta entrasse na porta do jazigo e só no dia seguinte o problema foi resolvido. Existem boas descrições, e até fotografias, deste funeral e nelas sobressaem as referências aos discursos das entidades oficiais sobre nadas e coisas nenhumas da vida e obra do escritor, que de todo, ou não conheciam, ou sobre algumas delas sabe-se que tinham sérias reticências. Estiveram ali a palrar em bicos de pés autênticos conselheiros Acácio, a posarem para as conveniências do momento. Não será a última vez que tal acontecerá. De tempos a tempos, nomeadamente durante as comemorações do centenário em 1945, alguém levantou a questão da tumulação definitiva e honorífica do escritor, mas essas preocupações depressa se dissiparam sem concretização. Será interessante elencar as diversas propostas ao longo do tempo, entre as quais se destacam as do jornalista António Valdemar que defendeu a solução Panteão Nacional.

         Na vida, e mesmo na morte das pessoas, não existem factos isolados, mas uma continuidade de inter-relações com resultados muitas vezes a mais ou menos longo prazo. O que se virá a passar com os futuros funerais de Eça não pode ser desligado da fundação em 1940 do Círculo Eça de Queirós em Lisboa e do discurso então proferido por António Ferro no ato da inauguração, onde o escritor que passara a vida a fazer por escrito um monumental retrato de família muito crítico da sociedade portuguesa do seu tempo, foi então, por parte do mentor do salazarismo, reduzido a um cultivador de prosas turístico-regionalistas, inofensivo e perfeitamente “canonizado” na religião da mediocridade aldeã contra as perversões da cidade e do progresso. Em 1989 o jazigo onde Eça tinha sido depositado em Lisboa, por abandonado, foi posto à venda e os ossos do escritor corriam o risco de serem despejados desta habitação pouco eterna. De novo voltaram a ser equacionadas as várias hipóteses para trasladação, mas a que então prevaleceu foi a recentíssima construção pela Fundação Eça de Queiroz de um jazigo familiar no cemitério de Santa Cruz do Douro, para onde foi enviado a 15 de setembro desse ano, juntando-se as restos mortais de seus filhos e outros familiares, mas não os de sua mulher. Após ter permanecido um certo tempo na Basílica da Estrela, onde se disse uma missa com reduzida assistência ao ato, foi transportado desde Lisboa pela Agência Barata e trazido ao Porto à Praça da Batalha, perto do governo civil, onde se lhe juntou uma pequena multidão que, em cortejo automóvel, acompanhou os seus restos mortais até Baião, com nova missa à chegada na igreja daquela paróquia rural.

         Mas o sossego dos seus despojos não ia durar muito: três décadas depois, em 2021, com a concordância de parte dos descendentes, uma proposta apresentada na Assembleia da República determinou que os seus restos mortais de novo regressassem a Lisboa e fossem depositados no Panteão Nacional, o que esteve agendado para o próximo dia 27 de setembro. Mas entretanto uma outra parte dos descendentes, não concordando com esta decisão, apresentou na Justiça uma providência cautelar contra este novo funeral, que deverá assim ser adiado à espera de decisão judicial que, como é sabido, em Portugal são demoradas.

         Não sei se tal acrescentará alguma coisa à glória da obra queirosiana, mas um facto histórico é já incontestável: mesmo ainda sem este retorno à capital, Eça de Queirós já teve mais funerais do que a rainha D. Maria II, o que para um cônsul bacharel em Direito e escritor não está nada mal. Mas mesmo na hipótese de nova trasladação, desta vez Eça de Queirós não terá «…esse sumptuoso funeral caminhando devagar, com paragens solenes, a mole monotonia da música fúnebre, o arrastar grave de espadas, essa marcha funerária dum exército: e, adiante, entre tochas que levantavam alto as chamas lívidas, a complicada estrutura do féretro, coberto de crepes e de dourados, marchando numa vacilação lenta; e daquele longo negro cortejo, desprendendo para o azul-ferrete de um esplêndido dia de Setembro, uma sensação difusa de Morte (Eça de Queirós, O Conde de Abranhos).

Os tempos, efetivamente, já são outros.”

J. A. Gonçalves Guimarães

Historiador

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Grato ao autor, confrade queiroziano e amigo de longa data,

http://eca-e-outras.blogspot.com/

 

quarta-feira, setembro 27

Fare la bella figura

 
Cada um sabe de si, faz como gosta ou pode, o intróito anuncia que, ao contrário do geral dos meus concidadãos lusitanos, possuo nula vontade de mostrar ou parecer. Fare la bella figura é propósito que aplico à higiene corporal. No mais estou-me regaladamente nas tintas, e a respeito de opinião alheia só a dos que me são chegados interessa.

Dá isso lugar a burlescos quiproquós, olhares tortos, interessantes descobertas no carácter e nas atitudes do semelhante, as quais, tivesse eu menos segurança nos pés e na cabeça, poderiam resultar em desequilíbrios, ou no que os jornais antigos referiam como "cenas de pugilato".

Num ponto, todavia, creio que à minha maneira também sou capaz de fazer boa figura: gasto mais em livros do que em fatiota, vou comprando romances e esquecendo a camba dos sapatos.

Assim me vi dias atrás a hesitar se de facto precisava daquela camisa, e ao mesmo tempo recordando o livro que vira numa montra. Ganhou o livro e boas horas passei, ora a sorrir ora triste, porque Stephen Fry possui essa raridade: a arte de bem contar. 

 

 

domingo, setembro 24

Uma rolha a boiar

 

Quem me dera voltar ao tempo das certezas, dos sonhos e esperanças, aqueles dias que amanheciam com promessas que às vezes se realizavam. Mas dizer isto, sei-o por demais, é apenas a prova dos nove de que, traga ela o que trouxer, alcancei a fase de aceitação do dia-a-dia.

No tempo que aí vem haverá mudanças radicais, invenções de pasmar, formas inesperadas de submissão, viagens a Marte. Pode ser até que, finalmente,  os extraterrestres que há muito vivem entre nós disfarçados em vizinhos, saiam desse seu armário e peguem nas rédeas da governação.

O que mesmo para eles se revelará um bico-de-obra, pois tal como somos, este nosso mundo não se pode passar de governos, polícias e exércitos. Não que isso garanta seja o que for, mas porque mantém viva a ilusão de que é difícil - não impossível - comermo-nos uns aos outros.
E porque o mundo não funciona sem religiões outras virão, pois só a fé garante a esperança - verdadeira ou falsa, pouco importa - de termos sempre à mão um último socorro, uma possibilidade de indulto.
Eu, porém, sem crença que me ajude a confiar nas instituições, nem fé bastante para me embalar com a certeza de que o Além existe, vivo como a clássica imagem da rolha sobre a inconstância das águas: bóio calmamente aqui, sou atirado para acolá, paro, giro, cai-me a onda em cima, sopra-me a tempestade para longe, volto a boiar calmo.
Daí que consoante a hora e a disposição, eu seja capaz de muito justificar e compreender: as guerras, as violências dos regimes, a atracção das seitas, as desigualdades sociais, as causas da corrupção e do medo, as consequências da opressão, as loucuras, os crimes. Para logo em seguida sentir contra tudo isso uma sincera revolta. Observo. Vou boiando. Tipo acabado do homem da rua.

 

sexta-feira, setembro 22

Dito e escrito

 
Deixar passar é o remédio. Aguentar. Aguardar que a tempestade acalme, o céu clareie, mesmo que seja apenas uma réstia de azul aqui e ali. Ter a paciência dos que sofreram muito e contam belas histórias onde há sempre luz ao fim do túnel. Olhar de frente, ir de passo firme e decidido. Conseguir o sossego e paz de alma que possuem os virtuosos e os humildes, os inocentes, os que não receiam vergar. Manter a cabeça alta quando a tristeza a leva a descair.

Isto dito e escrito, resta que animar é fácil, mas pouco ajuda aquele que tem de remar contra ventos e marés.

 

 

quarta-feira, setembro 20

Erwin OLaf (1959-2023)

 

 

Faleceu hoje Erwin Olaf, um grande e em extremo talentoso fotógrafo de fama mundial, que muitos anos atrás referi aqui:

 https://tempocontado.blogspot.com/search?q=Erwin+Olaf

terça-feira, setembro 19

domingo, setembro 17

Morrer pela pátria

 

Porque logo me levou a desconfiar do mundo, a precocidade foi um dos meus azares, talvez o maior. Cedo demais aprendi a ler, e como o jornal me fascinava, aos seis anos a guerra da Abissínia entrou na minha vida, logo a seguir a Guerra Civil de Espanha, e ainda esta não tinha terminado quando rebentou a Segunda Guerra Mundial, de que depois se diria que, graças ao poder dos Estados Unidos e à fundação da ONU, tinha sido a última guerra da humanidade.

Passemos caridosamente a esponja sobre a ingenuidade dos sonhadores, pois tudo se lhes deve perdoar,   tragédia nenhuma substituirá nos seus olhos, as lentes de plástico cor-de-rosa com que apercebem a vida e o mundo.

Mas o que aqui vem ao caso, resultou de uma corriqueira conversa de amigos na esplanada, entre eles um jovem, porque cinquentão, e jovem também pelo romantismo das suas convicções.

Falávamos da bizarria desta guerra na Ucrânia, da novidade dos drones, concordando todos que a Rússia era o invasor, mas a pena que dava que os seus soldados, carentes de quase tudo, das munições, aos agasalhos e até à comida, morressem às dezenas de milhar.

Foi então que, num acesso de romantismo, ao jovem atrás citado ocorreu dizer que, inevitavelmente, em tempo de guerra todos os exércitos sofrem falhas e carências, mas ponto importante não é, nem de longe, o conforto dos combatentes, sim o orgulho de poder dar a vida pela pátria.

O Zeferino, que de Moçambique à Guiné, outra vez a Moçambique, ao Líbano, aos Balcãs, já viu guerra demais e sofre mal os ingénuos, pigarreou daquele modo que lhe conhecemos, e é prenúncio de mau agouro. Desta vez, porém, deve ter controlado o azedume, e sem encarar o “culpado” sentenciou:

- Grande treta, essa de dar a vida pela pátria. Patriotismo a sério é fazer pra que seja o inimigo a morrer pela dele.

 

quinta-feira, setembro 14

Portugal colonial


Caros compatriotas, 

A nossa querida pátria, o país mendigo das "bazukas", dos Planos de Recuperação e Resiliência, e também das quadrilhas que, vai fazer meio século, o têm como quinta particular, está a dar passos largos para, caso único na história contemporânea, descer à categoria de colónia. Digo-o eu, escrevem-no aqui na Holanda os jornalistas que não são avençados a quem manda, dizem-mo e escrevem-mo muitos que se apiedam do país onde jovens, cinquenta anos passados viveram momentos de sincera euforia. Salazar morto, para os portugueses chegariam finalmente os anos de liberdade, igualdade, fraternidade, e prosperidade.

O triste e doloroso epílogo, é que os europeus ricos e remediados estão a "fugir" para Portugal, onde podem gozar aquela saudosa e boa vida do tempo que, contam os seus pais e avós, havia colónias onde mandavam, e "pretinhos" de sobra, que com dez escudos já se contentavam e faziam vénia.

Não tardarei a falecer, e a grande pena que levo é ver o meu país "colonizado", espezinhado, olhado com a piedade e o desdém do pedinte que estende a mão para a esmola.