Da internet aos
automóveis eléctricos, do YouTube às sondas lançadas para Marte, a maravilha
que é falarmos e vermos no telemóvel alguém que nesse momento se encontra
noutro continente, o Bernardo é um desmedido entusiasta do progresso, vive na expectativa
da descoberta de soluções que modifiquem de modo radical o nosso dia-a-dia. Se por
exemplo começa a falar de telemóveis dá a impressão de que sem dois deles nem
se respira, pobre do que lhe vier dizer que são complicados no funcionamento,
esse leva uma desanda que o reduz à condição de analfabeto ou pobre de espírito.
Todavia, num aspecto,
um único e esse é a sua paixão, a fotografia, se concede que são
extraordinárias as qualidades das câmaras dos telemóveis, nada, mas mesmo nada
chega aos calcanhares da Rolleiflex que herdou do pai, com a qual ele próprio considera
ter já alcançado, pelo menos nos retratos a preto e branco um nível de
profissional.
Os amigos ouvem-no, sorriem
daquela vaidade, mas não estando presente são menos generosos, e se concordam
que uma vez por outra os seus retratos mostram alguma qualidade, sentem pouco entusiasmo
pelo plano de que tem falado, o de retratar alguns deles em casa, com a
família, no que considerarem momentos de felicidade doméstica.
Acontece que o
problema não está em serem retratados, sim no facto de que além de solteirão
com hábitos peculiares, abrindo-lhe a porta é bico de obra conseguir que se
despeça. E uma vez dentro sente-se em casa, vai pelos quartos, abre gavetas,
pega em objectos, tira livros das estantes, rebusca aqui e ali, desarruma, espreita
nos cantos. Então na cozinha nem vendo se acredita: mexe em tudo, prova, torce
o nariz, falta isto e aquilo, a sua receita é melhor. Só que sentado à mesa mastiga
com a pressa de uma fome de três dias, e claro que critica o vinho, porque não
tem corpo, é demasiada a acidez, muito presente o tanino, mas duma garrafa
passa a outra, da sobremesa nada fica, café quer sempre dois, mostra-se
desapontado se não houver charutos.
Já quase todos tiveram
com ele um caso, mas o do Martins leva a palma. Grande jantar de aniversário,
na cozinha um chef de nomeada, dezasseis à mesa, um banquete. A certa altura Cidália
sente-se mal, desculpem mas vai deixá-los, o Martins explica que é da medicação,
nada de alarmante, continue a festa. Só que na hora da despedida o Bernardo
tinha desaparecido. Foram encontrá-lo vestido e calçado a roncar na cama do
casal, abraçado à Cidália, que toma Xanax em doses duplas.