sexta-feira, fevereiro 29

Nostalgia em 45 rpm (6)


Tarzan em Aveloso

Pelos vestígios arqueológicos encontrados sabe-se que Aveloso já era habitada no Megalítico. Os romanos deixaram nela a ponte de três arcos que atravessa a Ribeira de Teja. Os árabes ocuparam-na no séc. VIII, mas ficaria depois desabitada até à Reconquista, no séc. XII.
Recebeu foral em 1514 e o artístico pelourinho é também dessa data. Aveloso tinha então importância suficiente para nela habitar um bispo, de cuja residência resta uma bonita janela manuelina.
Dois outros edifícios serviram de moradia aos bispos de Lamego: um também do séc. XVI, a que o povo chama “o convento;” o outro, a Casa dos Buchos, data do séc. XVIII. Próximo desta última encontra-se uma casa que tem na parede uma figura antropomórfica, conhecida pela “Cara do Aveloso.”

Dos fins do séc. XIX às primeiras décadas do século passado, Aveloso gozou de fama mundial.
Em 1882 nascia ali Albano de Jesus Beirão, filho de pobres que, por volta dos sete anos, começou a sofrer de estranhos ataques duas vezes ao dia.
Pulava, rebolava, uivava, subia às paredes com agilidade animal, dava saltos enormes, corria como um galgo. Nesses momentos desenvolvia uma força descomunal, o que lhe valeria depois a alcunha de “Homem-Macaco”.
Foi notícia mundial. Edgar Rice Burroughs interessou-se pelo caso, e supõe-se que se tenha inspirado nele para criar a figura de Tarzan no seu romance Tarzan of the Apes (1914).
Nos anos 20 o governo nomeou uma comissão que levou o “Homem-Macaco” pela Europa, para que fosse examinado por sumidades médicas. Contudo, das pesquisas feitas então na Itália, Inglaterra, Alemanha, Rússia, Espanha, Bélgica e Suíça, nunca foram publicados os resultados.
Cerca de 1932, ao completar 50 anos, os ataques cessaram subitamente, tendo Albano a partir daí levado uma vida sossegada pois, nas suas palavras, “o governo de Lisboa dá-me o que preciso; além disso, vendi a cabeça aos alemães, que a querem estudar.”
Viria a morrer aos noventa e quatro anos no hospital da Guarda em 1976 e, segundo testemunhos, “do caixão selado escorria muito sangue”.

quinta-feira, fevereiro 28

Nostalgia em 45 rpm (5)


O Paço da Glória em Arcos de Valdevez

A construção do primeiro paço da Glória perde-se no tempo em que os galeões voltavam do Oriente carrega­dos de ouro e pi­men­ta. Do dia para a noite os fidalgos passavam de remedia­dos a nababos, e mandar fazer um paço condigno com as suas novas pos­ses era o menos que se esperava deles.
D. Geral­do Coutinho de Lima, senhor de Cochim - a primeira feitoria europeia da Índi­a - e proprietário de duas naus, tinha recebido as terras da Glória por doação de D. Manuel I em 1515, começara a casa, mas viria a falecer com ela ainda nas paredes.
O seu primogénito, D. Fernando, seguiu as pegadas do pai. A ele se deve que em Cochim se tenha feito a primeira impresão de livros na Índia. Infe­lizmente, no dia em que os carpin­teiros terminavam o arca­bouço do telhado, fulminou-o um ataque, dando corpo à lenda de que daí em diante todos os donos da Glória morreriam sem herdeiros.
Reza a crónica que essa pra­ga lhe fora rogada por um judeu de Cochim, a quem ele tinha en­ganado num negócio, e que até ao fim do mundo ela cairia sobre todos os que tocassem a propriedade.
O paço e os terrenos passaram então para um D. Afonso, parente afastado. Esse, para escapar ao mau destino, tinha-se dado ao trabalho de, por volta de 1635, viajar para Cochim, na certeza de que lhe não seria difícil encontrar um judeu no meio dos india­nos e da meia centena de portugueses que lá haveria. Para sua surpresa, porém, nessa altura já os holandeses tinham conqui­stado a feitoria, e nela não havia duas ou três famílias judi­as, mas milha­res, a maior comunidade judaica da Índia, for­mada ali desde o século IV da era cristã.
Percorrendo o labirinto de ruas, seguindo pelos ribeiros e lagoas de Co­chim, procurando por entre os templos india­nos, as mesquit­as e as igrejas, D. Afonso acabou por descobrir a sinagoga. Mas do homem que lhe interessava, nem rasto.
Passado ano e pico voltara para a Europa num galeão holandês, desembarcando em Vlissingen, onde pouco depois viria a falecer do tifo. Sem her­deiros.
Deixadas ao abandono durante anos, as terras da Glória eram um matagal, e do paço inaca­bado, que fora der­ruin­do aos poucos, restavam as cantarias. Na segunda metade do século 18, a grande praga de míldio que tinha assolado os vinhedos franceses, con­tribuíra para uma súbita prosperidade das vinhas do Minho, e dessa altura data a construção do paço actual.
Porém, sobre quem o mandou fazer, ou quando, não há documentos. Fala-se de um nobre excêntrico, que por não ter mulher nem parentes, man­tinha naquele deserto um grupo de músicos para lhe alegrar ­as refeições. Fala-se de um pai louco, que encarcerava as filhas num subterrâneo, por temer que elas o desonras­sem. Con­ta-se de um galego, que fugira para ali por ter enri­que­cido, depois de ter feito com o diabo um pacto que o obriga­va a co­mer gente.
Ao certo nada se sabe, a não ser que a praga do judeu ainda surtia efeito, pois de novo ficaram as terras ao abandono e o solar meio arruin­ado.
Comprou-o nessa altura um emigrante, que tinha voltado velho e cansado de Manaus, onde enriquecera durante o boom da borra­cha. Sendo de opinião que, para a sua própria felicidade, ninguém precisa mais do que pão para a boca e uma cama para dormir, o homem mandara levantar só parte do que tinha caído. Para conforto dos seus oitenta anos juntara-se com uma rapariga de dezoito, filha do caseiro.
Como era de esperar, a união não deu fruto. No começo do século XX, o novamente abandonado e meio derruído edifício passou para as mãos do filho de um lavrador abastado de Ponte de Lima. O rapaz, que tinha inclinações românticas, e nen­huma intenção de mourejar no amanho da terra, dedicou-se uns tempos à pintura. Mas pelos jeitos depressa se aborreceu da arte. Em 1907 decidiu partir para Filadélfia, onde o seu char­me conquistou o coração de uma viúva. Não uma qual­quer, mas a viúva de John Batterson Stetson, o famoso inventor e fabri­cante do cha­péu do mesmo nome, que um ano antes tinha entregue a alma a Deus.
O pintor deve ter efabulado para a viúva sobre o palácio que possuía em Portugal, e a americana provavelmente se entusi­asmou, e quis visitar esse domínio exótico. Só que no dia em que aparece­ram ambos na Glória ela não deve ter gosta­do do que viu, porque logo anunciou que partia.
O marido insistiu que ficas­se, pois o monarca, ao corrente da colossal fortuna herda­da do rei dos chapé­us, o ia fazer conde. E ela seria condes­sa, com brasão autênti­co, o que na democrática América não era para desprezar.
A ex-viúva concordou, mas mal viu as cartas de no­breza autenticadas, disse que não ficava nem mais um minuto. Fi­casse ele. O conde, homem avisado, preferiu acompanhá-la e ambos desapareceram para todo o sempre, sem que se lhe conhe­cessem herdei­ros.
Com mais de trinta anos de abandono os telhados tornaram a desabar. O que restava das paredes foi caindo pouco a pouco. A vinha, as terras de lavoura, a mata de pinhei­ros, de novo se tornaram um matagal. E como naquele tempo todo não aparecera ninguém a reclamar-se dono da propriedade, ou a pagar as contri­buições devidas, em 1935 a Justiça pô-la a leilão.
Pouco depois apareceu em Arcos de Valdevez o lorde William Pitt, que viu a ruína, gostou dela e a comprou.

Também o lorde morreu sem herdeiros. A história que, numa tarde do Verão de 1948, ele próprio me contou, e as que depois se seguiram, embora interessantes, são longas e complicadas em demasia para tratar aqui.

quarta-feira, fevereiro 27

terça-feira, fevereiro 26

Remexendo nas gavetas (25)

Paris, 1966. Jogos Florais ? Tudo passa! Até a expressão.
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segunda-feira, fevereiro 25

Nostalgia em 45 rpm (3)


Camposancos

Camposancos. Vê-se daqui da praia, porque fica do outro lado, defronte de Caminha.
Tempo do meu passado. Quando conhecia a palmo ambas as margens do rio, que ambas tinham sido para mim o cenário das emoções memoráveis da juventude. O primeiro amor de adolescen­te, a pri­meira fuga, as travessias do rio nas noites sem lua, que fazíamos pelo gosto do perigo, sabendo que do lado espanhol, e mais por divertimen­to que por zelo, os homens da Guardia Civil não hesitavam a atirar a sério.
Campo­sancos. Ainda hoje sou capaz de ir direito à casa de Don Ignaci­o, o bondoso cura que nos dava maçãs do seu passal - “Se não as dou, vêm-mas rou­bar!”- e infalivel­mente queria saber se tínhamos ido à con­fissão, se não esquecíamos a comun­ga.
Recordo também Don Fran­cisco, o padre de Goián, mais novo, magro que nem uma garça, passean­do a ler o bre­viário na estra­da onde só de longe a longe aparecia um carro.
Açulados que nem matilha de cães com cio, quando nos cruzáva­mos víamo-lo fazer no ar um sinal da cruz facet­o, talvez tanto para nos abençoar, como em exor­cismo às ten­tações com que o atormentava o Demo, e mais tarde fariam dele um assas­sino.
A serração de Tabagón. Uma chaminé que se vê de quiló­met­ros ao redor, e para mim era um duplo farol: na grande casa anexa viviam Don Ramón, meu herói, e Rosalia, a irmã mais nova, dezasseis anos como eu, mas infinitamente mais sabida, e que, maldosa, atiçava na minha alma e no meu corpo as grandes labaredas da paixão.

domingo, fevereiro 24

Nostalgia em 45 rpm (2)




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sexta-feira, fevereiro 22

Nostalgia em 45 rpm (1)


Lanhelas - 1946

À chegada a Lanhelas estranhei a casa. Com os seus dois anda­res e arrumos, estrebaria, o pomar em volta, a nascente donde a água brotava para um tanque com rãs, pareceu-me demasiado grande para os meus pais e para mim. E soturna, como se encerrasse uma ameaça.
A paisagem de campos e bosques que se via do meu quarto, o rio, as serra­ni­as, a nesga de mar ao pé de Santa Tecla, isso de facto sedu­ziu-me. Mas era sere­nidade demais, beleza demais, um equilíb­rio tão perfeito que logo me faltou a desor­dem e o bulício a que me tinha habituado, quando da minha janela em Gaia olhava para o Porto.
Aqui tudo respirava paz. Em vez da cacofonia citadina os ruídos eram distintos, cada galo esperava o seu momento de poder cantar, o ladrar dos cães espaçado como um diálogo. Na estrada o trânsito era quase nulo. Durante o dia inteiro passavam na linha uns quatro ou cinco comboios, mas o silvo das locomo­tivas e o matra­quear das rodas nos carris ouvia-se de longe, ia crescendo gradualmente, chegava, dimi­nuía, era apenas um traço sonoro a vibrar por instan­tes na quie­tude do ar.
Casas a fazer rua só as havia no centro da aldeia. As outras espalhavam-se pela encos­ta, nos campos próximos da estrada, juntavam-se aqui e além num beco. Por isso, junto da nossa, raro se ouviam sinais de gente, e era surpresa maior quando, chuva ou sol, os ranchos que tra­balha­vam nas leiras subitamente entoavam em coro as canti­gas dolen­tes da tradição, a alegre harmonia das quatro vozes cobrindo, como um véu, a tristeza e a saudade dos versos que falavam de amores perdidos, de ausências, felicidades nunca sentidas.
É certo que havia o dinheiro do contra­bando, mas esse infe­lizme­nte não cabia a todos. Para ganhá-lo era preciso mostrar força, ter capacidade de sacr­ifíci­o, gosto do risco, um traço de crueldade, e indiferenças de carác­ter que poucos pos­suíam.
Por isso a aldeia tinha a sua élite de con­trabandis­tas e uma infantaria de carrejões, pescado­res-espias, moços de recados. Abaixo desses viviam os jorna­leiros do campo, os serventes das pedreiras, os quase pobres de pedir, que levados pela fome iam emigran­do em peque­nos saltos. Primeiro a pé, para Viana. Meses de­pois, arranjado um pecúlio e um fatin­ho decen­te, de comboio para o Porto. Mais meses, ou anos, de comboio para Lisboa. Até que, poupando migalhas, lhes chegava a hora de comprar passagem no navio e fazer a grande tra­vessia para o desconhe­cido do Bra­sil, da Améri­ca, do Ca­nadá, para onde iam com o credo na boca e um grande medo de que a vida lhes cor­resse mal.

quinta-feira, fevereiro 21

O RIJOMAX (2)







Tabuaço 1991. O Sr. Ribeiro, inventor do RIJOMAX, e o seu invento - v. post de 16.01.2008.
(clique para aumentar; note o conta-quilómetros)

quarta-feira, fevereiro 20

Viana do Castelo

Caminho pela cidade com um sentimento de desconforto, pois sem ser nela totalmente um estranho, deixei de lhe per­tencer. Sou o passante que deambula pelo cenário da sua juventude e revê com outros olhos os lugares que a marcaram.
Desper­tan­do negru­mes, surpreso ao dar-me conta de como foram profundas, mas inúteis, as dores de então, passageiras as alegrias, parali­santes aqueles sonhos em que as dimensões do mundo eram cons­tantes e harmoni­osas. Terei eu de facto sido assim?
Melancólico, deixo que o passa­do desfile em cenas que não são de vida vivida, mas painé­is desbotados num panora­ma de ar­tifício.
Não me inte­ressam as ruas, as gen­tes, as casas, as vibrações do dia soa­lhei­ro. Vou ensimesma­do, desco­brindo que nem a experiência dos anos me ajuda­rá a conci­liar as vozes desen­contradas que, dentro de mim, ora animam a agir, ora me censu­ram os actos, as palavras, os desejos. Que me culpam de não ser capaz de, duma vez para sempre, sacudir os entra­ves da memór­ia. Me acusam de fraqueza, por retornar aos lugares onde sofri, com um impulso tão irreprimível como o que, dizem, leva os assassinos a rever o lugar onde, ao matar, também de certo modo morrem.

terça-feira, fevereiro 19

Remexendo nas gavetas (24)


(Edição de 1956)

Remexendo nas gavetas (23)


Louis-Ferdinand Destouches
Louis-Ferdinand Céline
Céline
(1894-1961)
Aqui em uniforme de gala de quartel-mestre de Cavalaria (1915)

segunda-feira, fevereiro 18

Remexendo nas gavetas (22)


Comprei-o em 1946, em segunda mão, no dia dos meus anos. Gostei. Achei estranho que não tivesse autor, só tradutor, mas Sir Henry Rider Haggard deve ter sorrido e desculpado a Livraria Lello.

sábado, fevereiro 16

Ramón María del Valle-Inclán


Eduardo Malta pintou Salazar em 1933 (v. Museu do Caramulo).
Uma tarde do Verão de 1934, num café em Madrid, Joaquim Novais Teixeira (1898-1972), meu amigo e mentor, viu o retrato num jornal e mostrou-o a Valle-Inclán (1866-1936) seu companheiro de tertúlia.
O escritor galego olhou, sorriu, e foi lacónico no comentário: "El Mono Liso".

quinta-feira, fevereiro 14

Vila Nova de Cerveira - o benemérito, o hospital, a Confeitaria Colombo no Rio de Janeiro, Sopo e o ex-abade


Do Verão de 1946 até fins de 1950 V. N. de Cerveira foi para mim lugar de amores e alegrias, inesquecíveis tardes de remo, festas, saltos clandestinos para Goián e Tabagón. Nesta última havia uma Carmina, por quem corri o risco de me tornar galego.
Depois abalei, Cerveira cresceu, tudo nela são agora artes bienais e modernidades, dos companheiros de então provavelmente não resta um.
No hospital estive uma única vez, de visita a um enfermo. Achei-o excepcional. Não conhecia a história da sua fundação, que encontrei ontem no folheto das festas de 1957.
Ponho-a aqui porque é bonita, e fala de um tempo em que a generosidade ainda era romântica. Bem haja o senhor Lebrão, a família dos (bem donados) Maldonado e o padre Parente, que nesse tempo já era ex-abade do lugar.
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quarta-feira, fevereiro 13

Remexendo nas gavetas (21)


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domingo, fevereiro 10



Ínsua e Santa Tecla, 1988

Molêdo, Ínsua e Santa Tecla, 1988

A Ínsua, na foz do Minho

Nessa altura o senhor Viriato andaria pelos cinquenta, mas comparado com meu pai fazia figura de ancião.
Estatura mediana, encorpado, mãos desmesuradas, vestido de remendos, nas tardes de domingo senta­va-se connosco no areal e aceitava um copo de vinho, ou ele próprio ia buscar o gar­rafão que trazia sempre na masseira, para oferecer uma pinga a quem lhe mereces­se simpati­a.
Mais amigo de ouvir que de falar, entretinha-se na vistoria dos apetrechos da pesca e, de quando em quando, levan­tava uns olhinhos de réptil, a mos­trar que seguia a con­versa.
De repen­te resmungava frases des­conexas e, sem expli­cação nem despe­dida, levantava-se, aman­hava a rede, pegava nos remos e metia-se no barco de volta à Ínsua.
Eu, que só os ouvia inte­ressado quando falavam de tiro­teios e perse­guiçõe­s, subia ao alto da duna a acompanhar o progresso lento do barco. Via-o passar da calma do rio para a ligeira ondu­lação da foz, acavalar-se depois nas ondas, até que chegava à língua de areia da ilha, onde o mar que­brava.
Seguia-lhe a manobra, via o senhor Viriato curvado no esforço de puxar o barco para seco, retirar a rede, estendê-la entre os remos, encami­nhar-se lentamente para o forte, e desaparecer na mural­ha. Como um pirata, imagi­na­va eu.
Em rapaz tinha andado embarcado. Conhecera o Brasil, a Améri­ca, a costa de África, os ciclones, os trabalhos do Cabo Horn. Um dia em que eu o fora ajudar na apanha dos mexilhões nos penedos, pusera-se a contar as suas aventu­ras, como que tomado por um irresistível desejo de confissão. Entre­me­ando longos silê­nci­os que me faziam sentir culpado, porque talvez lhe não prestasse atenção bastante, ou a minha pouca idade me não permitisse avaliar tanta confidência. De súbito, num dos seus repentes, tinha-se virado para o mar e, esten­den­do o braço, assegurou-me que quem fosse capaz de seguir por ali fora, como por uma corda esticada, chegava a Boston.

Eu próprio chegaria a Boston anos mais tarde, por vias bem travessas. Em Nantas­ket Beach, num momento de eufo­ria, iria surpreender-me a recordar a corda mítica com que o senhor Viriato unira a América ao forte da Ínsua.
Sentado na areia fitando o orien­te, voei como num sonho para as paisa­gens e os rostos da minha adolescência. A reviver as alegri­as, os entu­sias­mos, os amores, como se tudo fosse intemporal e infindo, meu para sempre.
Só depois me viria a dar conta que, nessa altura, eu desconhe­cia o verdadei­ro peso da nos­talgia. Quando evoca­va recor­dações, não precisava como agora de ir buscá-las a um passado longín­quo, cheio de perdas irreme­diávei­s, porque todas elas se achavam confort­avel­mente próxi­mas.
Então, o avivá-las, ainda não era dor, apenas distração do pensa­men­to.

sábado, fevereiro 9

Remexendo nas gavetas (20)


Linha do Tua,
Verão de 1984

Homenagem a Ton Smits (1921-1981) - 4


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sexta-feira, fevereiro 8

quinta-feira, fevereiro 7

quarta-feira, fevereiro 6

Homenagem a Ton Smits (1921-1981) - 1


Boris, o urso e a "jangada"

As palavras nem sempre bastam para retratar um personagem. No caso de Boris seria preciso juntar-lhes o olfacto e aquele po­der de raios-X com que, por vezes, descobrimos em al­guém uma es­sência que, outrossim, se mostra refractária a ser descrita ou definida.
Filho duma russa e dum comunista basco, que por voltas de 1937 se tinha exilado na União Soviética, Boris na­sceu em Leni­negra­do. São Petersburgo, bem sei, mas ele pró­prio conti­nua a cha­mar-lhe assim.
No tempo em que travá­mos conhe­cimen­to, ha­via anos que desertara do navio onde andava em­barcado, e pos­suía em Rot­terdam um café, um próspero negócio de máquinas de di­versão, e uma rede de relações tão vasta que, no seu dizer, lhe permitia tratar de tudo e com todos, do mais baixo ao mais dis­tinto. Fora isso tinha ganho nome como boxe­ur, era agradá­vel no tra­to e diziam-no correcto em questões de contas.
A razão do per­sisten­te cheiro a fera que o rodeava, só mais tarde e por aca­so, a viria eu a des­cobrir. Mas a essência do seu carácter - indes­critív­el, inde­finível - essa revelava-se sobre­tudo no primei­ro en­contro, ao ver-se surgir aquela cabeça de gigante e tronco con­forme, apoiados so­bre pernas curtas e cambadas. Olhos de aze­viche, irrequietos. Bigode mexicano, de pontas pen­dentes, que lhe da­va um ar de falsa bonomia. Um sorri­so de que não era fácil dis­cernir a qualidade, pois tanto pode­ria ser troça, como es­tupidez ou ameaça. Em geral era ameaça.
Cada vez que me acontecia ir a Rotterdam, criei o hábito de o visitar, fascinado pela extraordinária amálgama de negó­cios que o ocupavam, entre os quais as máquinas de di­versão pareci­am ser uma parte diminuta que ocupava dois apren­dizes numa garagem. O resto era como nos romances: duma casin­hola de madeira no terreno das traseiras da ca­sa, Boris traficava, manipulava, arranjava, alugava, vendia, ria às gar­galhadas dos 'anjinhos' que havia no mundo - en­tre os quais também de bom gosto se incluía - telefona­va, grita­va com a mulher, e bebia litros de chá. Sem anúncio nem cor­te­sias de des­pe­dida, também era capaz de num repente saltar para a car­rin­ha e desaparecer por dias ou semanas.
O seu fraco eram os animais. Mas nada de cães, ga­tos ou bicharada miúda. Só o contentavam os grandes e por isso, no ane­xo que ligava a casa à garagem, tinha construído um verdadeiro jardim zoológico clandestino com jaulas em que eu, com suspresa e alguma preocupação, um dia descobri um leã­o de meio ano, uma hiena, uma onça, jibóias, macacos vários.
À sol­ta, preso a uma cor­rente que qual­quer criança quebraria, deam­bulava o seu favo­rito, um urso cas­tanho que, da primeira vez que o descobri aga­chado a um can­to, quase me matou de susto, porque a min­ha mio­pia o con­fun­dira com um inofensivo monte de trap­os.
Falando-lhe russo, abraçado a ele a ensai­ar passos de dança cada vez que entrava no anexo, Boris espalhava um for­te odor a urso, que só com o tempo e muita simpatia era possí­vel acei­tar.

Fora os animais tinha ainda outra paixão: o equipamento militar. As armas com certeza as guardava em segredo nalgum armazém, porque nunca lhas vi, mas os recantos e dependênci­as da casa eram um verdadeiro empório de tendas, de can­tis, mo­chilas, botas e barretes, uniformes, cinturões, emissores de rádio, tele­fones de campanha, pás e picaretas, ante­nas, holofo­tes...
Dando gargalhadas, Boris gostava de repetir a estória de como a sua mania de acumular coisas mili­tares quase tinha resultado em desastre para a família.
Na sala, único lugar onde o tropeço cabia, e à espera de mais tarde lhe dar destino, tinha ele arru­mado a enorme embala­gem de um salva-vidas de borracha, relíquia proveniente de um destroyer britânico da Segunda Guerra Mundial, e o qual, segundo as in­scrições late­rais, po­dia acomodar doze pesso­as. Outra inscri­ção, sob a pala­vra CAUTION! pintada a vermelho, in­dicava que, puxando a corda, a embar­cação se inflaria dentro de trinta se­gundos.
Com o correr dos anos a “jangada”, como ele lhe chamava, passara a fazer parte da mobília e, quando alguém curioso como eu perguntava o que era aquilo, Boris parecia ter dificuldade em recordar a utilidade do trambolho. Até ao dia em que uma festa de aniversário lhe tinha enchido a sala com familiares.
A certa altura, esvaziadas muitas garrafas de vodka, alguém ti­vera a má ideia de afirmar que, puxando a corda, não acon­teceria nada. Depois de tantos anos o gás há muito que tinha es­capado. Ai não? Queriam apostar? Era só trinta e um de boca?
Uns con­tra, outros a favor, o dinhei­ro começou am­on­toar-se so­bre a mesa. Quando mais ninguém quis apostar, Boris levan­tou-se, deu um esticão à corda. E aco­nteceu!
O barco co­meçou a in­char com extraordinária força, quebrando a mobília, as vidra­ças, a loi­ça, semeando pânico, sufocando as pessoas que, aos gritos, se arrastavam pelo soalho à procura da porta. Até que Boris, en­cont­rando uma navalha, a espetou várias vezes no re­ves­timento de borracha, com a fúria de quem se defende dum mons­tro vivo.
Ao contar a cena não parava de rir, lembrando o em­baraço do cunhado que, por ter borrado as calças, recusava le­van­tar-se do chão.

terça-feira, fevereiro 5

domingo, fevereiro 3

Remexendo nas gavetas (18)


Moga-
douro (Maio, 1974)

sábado, fevereiro 2

Remexendo nas gavetas (17)



Em Alvites (Macedo de Cavaleiros)

Remexendo nas gavetas (16)


Em Estevais de Mogadouro.
Há cinquenta e oito anos na mesma porta.

O mar

Escondido no fundo do meu ser de montanhês há-de haver uma costela marinheira, herdada de algum remoto avô navegante que não deixou história, pois tanto quanto sei, nos dois últimos séculos a minha gente foi de vinhas, de rebanhos, searas e olivais.
Poucos deles terão visto o mar. Os que conheci iam na festa de Santo Antão em Agosto pescar ao Sabor, rio que só no Inverno merece esse nome, mas que os banzava por lhes parecer caudaloso, e do qual garan­tiam que a corrente tinha mais força que dez juntas de bois.
Compreende-se. Não conheciam força maior e, em todo o imenso ermo de montes e de vales em que mourejavam, havia apenas duas nascentes donde corriam, correm ainda, uns riachos de nada. Fios de água tão estreitos que de menino, sem tomar lanço, eu os atravessava dum salto.
Na sua imensidão o mar sempre me assustou, como os barcos sempre me enfeitiça­ram. Comecei por fazê-los de papel. Mal pude segurar um canivete fi-los de cortiça, de casca de pinho, perfeitos, com mastros e velas, leme, tripulação. Construí-os depois de madeira, com quilha, cavername, porões, convés, paus-de-carga, um com caldeira de vapor e chaminé a fumegar. Infe­lizmente, porque me faltava ciência, esses ader­navam em vez de navegar, e por fim cansei-me da minha inépcia. Mas o fascínio permaneceu. Forte. A ponto de por duas ou três vezes me ter posto a vida em perigo.

sexta-feira, fevereiro 1

Catulo da Paixão Cearense (1863-1946)

Tira-se da estante um livro esquecido. Sorri a gente, recordando a emoção com que descobriu a sua poesia nos anos da juventude. E um pensamento que se anotou: “Meu Deus!... Porque não fizeste os homens irracionais?...” Aprender que flor também se pode escrever “frô”, senhora passa a sinhá, e acaba em “sá”.




“Sá Dona, os cabelos dela
tão preto prô chão caía
que toda frô que butava
nus cabelo, a frô murchava
pensando que anoitecia”.

(Meu Sertão - Catulo da Paixão Cearense, Rio de Janeiro, 1918)