"VOLTO JÁ"
Mas vai demorar uns dias.
Recebe-se uma carta dizendo que, nas bibliotecas, "aparece um razoável número de pessoas que gostaria mas, por deficiência visual, não pode ler os seus livros.”
Se dá licença para que se editem em grande formato e letra a condizer com o nome da editora: XL.
Paga? Dois exemplares da obra. Direitos de autor? Nenhuns. Mas é honra, além de que o sentimento de solidariedade provoca uma intensa satisfação.
O modo como alguns escritores, por vezes tão penosamente vaidosos, se cansam a explicar os princípios filosóficos, morais, sexuais, sociais, das suas obras. O modo como tudo é ampliado, engrandecido, preparado para a venda, o êxito, a vitória - quando ao fim e ao cabo o conto, a novela, o romance, são somente histórias.
O autor fornece a moldura, os contornos, o movimento, e o leitor com a sua sensibilidade completa a obra. Só isso. O resto, explicações, andaimes, estruturas e sistemas, as escolas, as correntes, as modas, será útil para a fama e o comércio, mas é passageiro, insignificante.
Contudo, esses bombardeamentos tornam difícil manter-se a gente insensível, e de vez em quando pergunto-me porque bizarro destino o meu escrever é apenas escrever, apenas trabalho. Porque é que não oiço vozes nem tenho revelações? Porque não chega até mim a inspiração do Altíssimo? Porque é que na minha vida nunca se dão daqueles encontros ou situações donde subitamente faísca a luz do génio?
Deus sabe que não sofro de excessiva modéstia, mas como me sinto zé-ninguém quando comparo a minha singela labuta com as complexas construções intelectuais, artísticas e filosóficas que a maior parte dos escritores jura estar na base dos seus livros! Sejam holandeses ou suecos, americanos, búlgaros ou marroquinos, portugueses, croatas, todos eles parecem viver em planos tão esotéricos e elevados do pensamento, que só de ouvi-los sinto tonturas.
Sem dar tempo a que lhe feche a boca, acontece por vezes que um ou outro bem intencionado se me põe a cantar as loas dum escritor, dos seus livros, das emoções que esses livros lhe causaram. E a beleza do estilo do homem, a profundidade do seu pensar, a rectidão da sua moral, a firmeza dos seus ideais...
Em ocasiões assim o que irrita não é propriamente a inveja causada pelo talento alheio, ou a falta de finesse do interlocutor, mas a comparação implícita.