sábado, abril 30

A mula e o Maserati

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Devia censurar, mas não posso: enternece-me a senhora que espatifou o Maserati, quer outro, e já gastou 1 milhão em carros. Ternura igual sinto pelos emigrantes em bólides de milionário, que me ultrapassam a caminho da Suíça. Idem para com a legião de compatriotas que, custe o que custar e doa a quem doer, realizarão o sonho de afagar o traseiro num BMW, Audi ou Mercedes.
Esse carinho pelo síndrome nacional das aparências, acordou-mo na juventude  este texto de Oliveira Martins:

«O que tornava da Índia rico passeava na Rua Nova num estado oriental. Precediam-no dois lacaios, seguidos por um terceiro com o chapéu de plumas e fivelas de brilhantes, um quarto com o capote e, em roda da mula, preciosa de jaezes e luzidia, um quinto segurava a rédea, um sexto ia ao estribo, amparando o sapato de seda, um sétimo levava a escova para afastar as moscas e varrer o pó, um oitavo a toalha de linho para limpar o suor à besta, à porta da igreja,
enquanto o amo ouvia missa. Eram ao todo oito escravos pretos, vestidos de fardas de cores, agaloadas de ouro ou prata.»

À senhora do Maserati agradeço a prova que dá, de que em quinhentos anos ainda não houve poder capaz de nos fazer mudar.
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Publicado ontem no CM.

quinta-feira, abril 28

Frank Sinatra

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É raro, porque evito incomodar, mas quando as incertezas me toldam o entendimento, acontece pedir a pessoas com quem tenho intimidade, e cuja opinião aprecio, que me esclareçam sobre um ou outro aspecto dos meus escritos.
Daí sempre tiro proveito, talvez tanto ou mais do que, por elogiosa que seja, me vem da crítica profissional.
Todavia, o caso agora é que, tornado figura pública, e a internet facilitando em demasia o contacto, o escritor se vê alvo de opiniões que não pediu e, bem pior, lançam uma estranha luz sobre alguns dos seus leitores.
Assim recebi eu há tempos o e-mail de uma senhora que me censurava por lhe parecerem "fininhos" os livros que escrevo, e que neles "a história acaba logo, nunca se fica a saber mais", insistindo em recomendar que no próximo tome essa falha em consideração.
A uma outra incomoda-a a escassez de diálogos. "Nos dois livros seus que li quase não há diálogos! E eu gosto de diálogos, porque se ouve o personagem falar".
Remédio não conheço, paciência tenho muita, recordo Sinatra e canto My Way.

quarta-feira, abril 27

O nosso pequenino mundo

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Atrocidades da guerra. Chacinas. Depurações étnicas. Atentados suicidas... Quase na vizinhança – Paris e Bruxelas três horas de voo, Istanbul quatro, a Síria pouco mais - e contudo tão longe do nosso interesse. Os horrores do genocídio e da fome são-nos servidos na televisão entre desastres na estrada – "um morto, dois feridos graves" - as cotações da bolsa, um novo Iphone. Para os próximos dias as previsões meteorológicas são de tempo soalheiro e temperaturas a rondar os vinte graus.
Jantamos, discutimos, fazemos planos de férias, dormimos o sono dos bem-aventurados.
Solidariedade? Claro que sim, sentimos. E até pena, durante os minutos que passam no ecrã os corpos esqueléticos, os rostos dos mortos, dos refugiados, dos que em terramotos perderam lar e família.
Abanamos a cabeça, descrentes, dizemos que é terrível, que não se compreende que no mundo em que vivemos possam acontecer semelhantes tragédias.
Infelizmente, e para mal de nós todos, o mundo em que vivemos pouco mais longe alcança que a nossa porta. Na melhor das hipóteses a nossa rua.

domingo, abril 24

Tetas, copos e talheres

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Em Janeiro, a notícia de que o Estado tinha gasto mais de 300 mil euros em talheres, levou a que um ou outro zelote franzisse o sobrolho, falando de esbanjamento.
Devo dizer que estranhei, pois esperava coisa superior, já que nos repastos oficiais tudo deve ser feito para vincar o brilho da nossa multisecular pátria, e como caprichamos em receber quem nos visita.
Trezentos mil euros? Achei pouco, quase mesquinhice. Talvez por isso, há dias, roído de inveja, li que a Turquia está a construir um palácio presidencial com 1.150 divisões, 63 ascensores, várias salas de conferências, uma mesquita para acomodar 4.000 fiéis, piscinas e muito mais. Para uso privado, o presidente Erdogan e os seus familiares disporão de 250 quartos.
O mármore dos soalhos? € 3.000 por m2. Os copos, incrustados de ouro? € 300 cada. Total? O governo diz 615 milhões, as más-línguas falam de 1.500 milhões. O presidente, esse proíbe o falatório, porque lhe repugnam as intromissões da plebe.
Talheres de 300 mil euros! Pobres de nós, que nunca mais teremos os Descobrimentos, o Brasil ou o Volfrâmio, e até a teta da UE, que Mário Soares nos entusiasmou a que a chupássemos, está quase sem leite.
 
 

sexta-feira, abril 22

Um país de medricas

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Porque o conheço há muito, o estudo, vivo nele, lhe quero bem, quando deixei de acreditar em epopeias e descobrimentos concluí que Portugal era, é, um país de medricas. Disse-o tempos atrás numa entrevista, houve quem não gostasse, pressupondo que onde há crítica há desamor.
Assim não é, nem me vou apoiar nas conclusões do ING, banco holandês gigante, que num recente estudo aponta ser Portugal – digamo-lo em palavras simples e sem melancólicas estatísticas – um país onde quase nada se mexe, as pessoas vivem e morrem no mesmo emprego (quando o têm), moram e morrem na mesma casa, existem no que parece uma cautela generalizada, mas nada mais é que o medo paralisante que toca a vida das pessoas e as instituições.
Curioso fenómeno, descubro-o também em jovens colegas. Embora talentosos, e até de gramática e vocabulário escorreitos, uma vez descoberto o que julgam ser a fórmula do sucesso, infindamente a repetem, caem no maneirismo.
E ai do tolo, como eu, que se arrisca a avisá-los de que tropeçar não é ir em frente: nunca mais lhe falam. O que não é grande perda.