O virar da folha do calendário de nada adianta: é ritual. Tão pouco adiantam os brindes e os beijos. Conta, sim, o instante solitário em que, ouvindo bater as doze, você se pergunta porque é que o que poderia ter sido não foi, e o que poderia ter tido não teve, o que julgava receber não lhe foi dado.
Para si vão os meus votos de que, rodeado de alegria e risos, ao dar a meia-noite não entristeça, não desespere, nem se sinta abandonado ou só. Os outros também são uma ilha. E com Ano Novo ou sem ele há sempre um amanhã.
Ter visto a morte defronte dos olhos é expressão corriqueira e inexacta. A morte não se vê, não se deixa ver: sente-se. E não se sente no momento em que o médico, desculpando-se da má notícia, diz que o tumor é maligno; não se sente sequer quando o cirurgião anuncia que nada mais pode fazer, que é caso terminal e o fim chegará dentro de semanas ou meses.
Momentos desses são para uns de pânico, de benfazejo recolhimento para os que, abrindo o seu "Deve & Haver", não se envergonham das contas.
Duas vezes senti a morte perto, duas vezes a senti afastar-se, fugaz como sombra, sem me dar tempo a fazer o balanço. Noutra altura será. Por agora, e até que ela chegue, estou na fase de ir purgando e descartando, se bem que não me queira desfazer daquelas ilusões que guardo no "Haver", as que emprestam cor aos dias e ajudam a olvidar.
Simone Lamsma (1985), holandesa nascida na Frísia, começou a tocar violino aos cinco anos e é já considerada umas das melhores violinistas mundiais. O maestro Jaap van Zweden, ele próprio violinista de grande talento, convidou-a a tomar parte num programa de televisão, tocando o último andamento da Quarta Sonata para Violinino de Eugène Ysaÿe (1858-1931).
"Vous, qui passez sans me voir" - a canção é 1936, ouvi-a pela primeira vez aos catorze ou quinze anos e ficou. Gastei o disco de 75 rpm como se gastam solas de sapato e então nos anos 60 comprei o LP. Oiço-o de vez em quando, para sonhar a minha adolescência.
Se mo perguntarem não saberei dizer que razões me levam a gostar da música Klezmer. Ouvia-a pela primeira vez muitos anos atrás e foi feitiço. Bem pode ser que os genes de algum antepassado judeu entrem nisso. Seja como for, Itzhak Pearlman, que também pode ouvir aqui em música bem diferente, diz com o seu violino aquilo que eu gostaria de saber dizer.
PS. E já agora: com este são mil os post desde Janeiro de 2007.
As pontas de ferro são afiadas como lâminas e a coisa tem o ar de armadura medieval. É de borracha forte e encaixa-se nos sapatos, única maneira de nestes dias andar pelas ruas de neve e gelo com menos risco de se quebrarem as pernas ou o resto.
Bach? Tinha-o ouvido na adolescência, quando sofria dos blues. Aqueles tlintlins nada me diziam, eram música estranha, sem ponta por onde o ouvido lhe pegasse. Até ao dia em que, com mais vida e outra disposição de espírito, Bach me chamou para que ouvisse Sviatoslav Richter, dizendo que era boa maneira de começar a compreender. E assim foi. O LP do russo a tocar The Well-Tempered Clavier-Prelude and fugue no. 1 in C major está gasto por décadas de uso, mas oiço-o mesmo quando só olho a capa.
Por razões que poderiam ser natalícias, mas não são, nos próximos dias haverá aqui mais música que escrita. Descubra Kyteman, de seu nome Colin Benders, vinte e dois anos,o trompetista - ele é bem mais do que isso - que me reconciliou com géneros musicais que eu detestava. Atentem no rapaz, sigam-no, porque já é alguém e vai ser um dos grandes. Kyteman. Ponham na agenda.
Ao contrário do que em geral se espera de um livro russo – batalhas, paixões, assassinatos, intermináveis discursos filosóficos e religiosos, suicídios, duelos, problemas de consciência – em Oblomov, o mais conhecido romance de Ivan Goncharov (1812-1891), o personagem do mesmo nome praticamente nada mais faz do que ficar na cama ou no sofá, em enorme apatia, recordando a sua idílica juventude, e com um único desejo: que não o incomodem.
Olga ama-o, o feitor rouba-o, os amigos traem-no? Que é isso comparado ao delicioso descanso?
Assim este, que nada mais faz que comer e descansar, recebeu no baptismo o nome de Oblomov. Se bem que não seja de todo apropriado: uma vez por outra lá se levanta e, em passos lentos, vai à procura da sua Olga.
À minha porta: 12 abaixo de zero e um vento que sopra da Sibéria. Mas razão de queixa não encontro, cá dentro o termostato está nos 21, ando descalço e em mangas de camisa, e as companhias da electricidade anunciaram para 1 de Janeiro uma diminuição de 23% nas tarifas. Vinte e três porcento! Se fosse 1 de Abril íamos desconfiar.
Adenda para os descrentes: esta medida é o resultado da baixa dos preços do petróleo e as companhias passam o benefício para o consumidor. Chama-se a isso democracia (se o não fizessem o consumidor refilava e era ouvido) e boa administração.
De vez em quando, como se lastimassem a minha permanência num degredo, perguntam-me porque continuo a viver na Holanda. A pergunta é bem intencionada, mas um bocadinho simples. Em primeiro lugar estou nela há cinquenta e três anos, o que é mais que muitas vidas. Depois, família, recordações de bons e maus momentos, ser estimado, o possuir em simultâneo duas existências, dois modos de pensar, de ver, de julgar, duas línguas, duas sensibilidades, são bens que não se deitam fora à ligeira.
Junto a isso tudo há o conforto de uma sociedade bem organizada, pontual, respeitosa do cidadão.
Ando a pensar nisto desde que dois dias atrás, depois de ter caído aos dez graus negativos, a temperatura subiu um pouco e do céu começou a cair uma neve como há tempos se não via. Nas províncias do norte pararam os comboios e não havia maneira de transportar os milhares de passageiros para o seu destino. Que fez a NS, a companhia dos caminhos de ferro? Ofereceu a esses milhares de passageiros o irem para casa de táxi ou pernoitarem num hotel.
De facto o sol não brilha aqui todos os dias, nem a gastronomia é o que deveria ser, mas há compensações.