terça-feira, abril 30

Bem-aventurado

 

Bem-aventurado aquele que na solidão da noite faz o balanço e conclui que, a traços largos e nos episódios maiores, a vida que leva é a que desejou. bem-aventurado também o outro, que à mesma hora revê o seu passado, o seu presente, lembra os sonhos que teve, os que não realizou, e ao somar ganhos e perdas sorri contente, se diz que valeu a pena. bem-aventurado ainda o que deixa correr os dias ao sabor da ocasião, indiferente aos atropelos e às benesses, perdendo a memória do que aconteceu, do que sentiu, interessado apenas no que vem a caminho.
Infeliz o que, desejando ser o que nunca será, querendo possuir o que não lhe cabe, se mata aos poucos julgando que vive.
Falamos de nós próprios e vivemos nos outros, para os outros, eles a condicionar-nos os actos, o pensamento, o modo, as intenções, impondo usos, aguardando gestos.

domingo, abril 28

A Maratona das Areias

 

Sedentário por temperamento e incapaz de, à maneira de Eça de Queirós escrever em pé, quase tudo o que implica esforço físico desperta em mim uma sensação de desagrado, como se o mexer-me seja esforço demais ou exija qualidades que não possuo.

É assim curioso ser George um dos meus bons amigos, pois além de ter metade dos anos que conto, é fanático no que respeita provas de capacidade muscular, sempre pronto para desafios que exijam o máximo do seu corpo. Além disso, teimoso por natureza, basta alguém pôr em dúvida o esforço de que se diz capaz, para que ele de imediato meta mãos à obra a provar o contrário.

Durante uma conversa sobre nada coisa nenhuma, o Daniel  perguntou se algum de nós tinha ouvido falar da Marathon des Sables. Vendo-nos a abanar a cabeça que não, explicou ele que é única entre as competições mais duras do mundo inteiro, pois exige uma resistência e esforços que, sem exagero, se podem chamar sobrehumanos. Nada menos do que, em etapas de vinte e um a oitenta e cinco, correr um percurso de duzentos e cinquenta e quatro quilómetros até à meta. Suportando temperaturas que chegam aos quarenta graus, subindo dunas com vinte e cinco porcento de inclinação.

Já estávamos de boca aberta, mas o Daniel acrescentou que cada participante tem de levar tudo o que necessita de equipamento, comida bastante, e até produtos que o protejam das picadelas de serpentes e escorpiões. Ninguém conte com assistência ou auxílio, a organização apenas garante que não lhes falte a água.

Quando terminou, e como era de esperar da idade dos que ali estávamos, abanámos a cabeça, descrentes que houvesse gente para tal aventura. Mas há, e assim viemos a saber que o nosso George uma vez participou, mas mesmo ele não tenciona repetir.