domingo, setembro 7

Novidade

 


quinta-feira, setembro 4

Quartos de hotel

 

Desde Maio de 1947, quando me hospedaram em Lisboa no que viria ser o Hotel Tivoli, mas nesse tempo era pensão, até ao mês passado, em Magaz de Pisuerga, são sem conta os quartos de hotel na minha vida. A maioria não deixou impressão, mas muitos ficam na memória, e alguns, como os do parisiense e modesto Le Beuret, onde nos anos 60 gastei longos meses, foram cenário de interessantes vivências.

A desfiar lembranças, e começando pelas mais longínquas, recordo um quarto na Rua da Palma, em Lisboa, onde uma noite acordei em pânico e aos gritos, descobrindo-me coberto de percevejos.

Outra noite, num hotel da Praça Mauá, no Rio de Janeiro, num tempo em que o ar condicionado era luxo, abri a janela para arejar e logo me vi atacado por mosquitos de um tamanho que desconhecia. Corri para o quarto de banho, acendi a luz, abriu-se-me a boca com um negrume de baratas. Fui protestar e o porteiro riu-se, esclareceu que o meu susto era falta de hábito.

 Ao findar dos anos 50, em Nova Iorque, no então famoso e hoje desaparecido Hotel Saint George, onde depois seriam filmadas cenas de The Godfather, fiquei perplexo com o tamanho do quarto e a aparelhagem do banheiro, em cuja bacia vi três, em lugar das duas torneiras do costume. Informei-me.

- Ice water! For your drinks! – explicou, jovial, a empregada negra, descrente de tanta ignorância, dando-me palmadas nas costas.

Anos 60. São Paulo. Hotel Jaraguá. Era hotel, e nele funcionava também a redacção de O Estado de São Paulo, as rotativas estavam na cave, os jornalistas viviam no bar.

O bagageiro, tipo de malandro e sorriso a condizer, pega nas malas, subimos com o ascensor.

- 'ócê vai gostar! – diz ele ao abrir a porta do quarto e alargando o sorriso.

Acena para que o siga ao quarto de banho. Encosta uma banqueta à parede, sobe, desaparafusa um vidro fosco, desce, faz um gesto de mestre-de-cerimónias:

- Olha aí !

Quase me despenho. No andar fronteiro,  a umas dezenas de metros e as janelas abertas, funciona um bordel de luxo. Há um trio num quarto, noutro um casal na posição clássica recomendada pelos missionários, no seguinte um cinquentão e uma garota.

Quem lá está enfrenta uma parede cega e uma sucessão de postigos foscos. Eu, no lado oposto, vou ter ali semana e meia de um excitante e variado peep-show.

- Xixica! – o rapaz arreganha a boca, rebola os olhos, beija a nota de cem cruzeiros que lhe meto na mão.

 

quarta-feira, setembro 3

Uma grande família

 

"Porque somos uma grande família". Somos. No Natal. Mas se alguém os tira do quente esquecem, não vão, mandam os pequenos como ele, e se der sarilho é contigo. Quem quer vai? Quem não quer... Sabedoria popular uma bosta! O Zé aprende depois dos sessenta, quando aprende, os pés na soleira do Eterno.

O barbeiro dá mais uma escovadela, arrastada, pró-forma, chamando a gorjeta, quer saber se "lá em cima", hein? Disseram-lhe que o Pereira, se não for desta, mais dia menos dia…

- Onde?

- Mas houve alguma coisa? - apertam-se as mãos, a moeda cai no bolso, tilinta nas outras.

- Uma vistoria.

-Foi o que ouvi dizer, mas com a força que tem ninguém lhe mexe.

Despede-se, acena, e vai a pé, o director só lá está às quatro – Mas o que é que vou dizer? – tira o casaco, desce a Avenida, um calor que até o alcatrão derrete, fedor dos autocarros.

"Agentes Secretos em Luta de Morte na Sibéria, Colorido, Maiores de 12 Anos, Vibrante Filme de Suspense e Acção Heróica!". No Politeama.

As paredes do Alcazar arrombadas a canhão, El general Moscardó de barba à Kaizer e monóculo. O Cine-Royal a chorar, plateia nesse tempo a três mil réis, pronto a alistar-se também se a bofetada do pai – "Eu é que te dou as guerras, palerma! – não lhe tivesse mudado o rumo. E razão tinha o velho, até dizem que o Hitler também fez coisas boas. A China. Agora é morra a China, depois é viva a China. A gente sabe lá!...

- Imperial.

O empregado não responde, limpa o mármore, pergunta para dentro:
- Está aí o Mário do táxi?

As inglesas estacam à porta, hesitam, passam assustadas, ninguém as avisou,  Ó miss!, olhos revistadores, os reformados confirmam que também no tempo deles as francesas que vinham por aí… As mais das vezes nicles, garganta.

- Então essa imperial? Sai?

- Quem perguntou pelo Mário?

A beber, e quase se engasga, ocorre-lhe que na gaveta do Simões, antes de lhe dar o ataque, recibos, facturas. E não me lembrei! Ele há cada uma!

- Onde é o telefone?

Os olhos convidam-no a pagar antes de mostrarem a cabine atrás da porta. Conta o dinheiro, acrescenta cinco tostões e volta as costas.

- O senhor dá demais. Olhe que ainda empobrece.

- Pode guardar – e entre os dentes -  Saloio de merda! Não fosse por coisas dava-te um coice que até…

O outro levanta a tampa do balcão, avança: - O que é que o senhor disse?

O patrão agarra-o, leva-o de volta: - Deixa lá isso, Barbosa! Onde está o Mário?

Os fregueses entreolham-se, franzem os lábios.

- Está lá?... Cordeiro. Liga-me à secretaria, faz favor. Ó Mariazinha… O Cordeiro, filha! Sim! Chame o senhor Pinto. Uma voz esquisita? Eu?... Chefe! Lembrei-me da gaveta do Simões. Estão lá. Tenho a certeza. Foi em Julho. Antes dele ir para o hospital. Quer que volte, chefe? Já não é preciso?

Agradeceu, com vagar passou diante do balcão, parou à porta, só então acendeu o cigarro. Baforada à esquerda. A dar tempo ao filho da puta, se quisesse meças. Baforada à direita.

Nesse momento tocaram-lhe o braço e o corpo retesou-se-lhe, mas era o engraxador a pedir licença.

Rossio. Chiado. Rua do Ouro. Rossio. A mesinha da esplanada, a bica, um mar de gente…Yes, Merci, Jawhol, Yes, Tak, Merci…Procurou conhecidos que não via, desdobrou o jornal. "O cortejo saiu em direcção ao Largo do Carmo…" Estava a tempo, ia à segunda do Império. "Adultos. Technicolor. . Humor negro, branco e cor-de-rosa, num espectáculo faustoso e de sátira apimentada… Adoráveis Conspiradores c/ Dianna Rigg (a famosa Mrs. Peel da série da TV 'Os Vingadores') 18.30".

Fazia horas, bebia outra bica. Os recibos do Simões! Nunca mais se tinha lembrado dos estupores dos recibos!

Elas sentaram-se na mesa ao lado, e para que não se espantassem evitou olhar. Não precisava de bruxa, sabia, tinha de acontecer, hoje talvez! Agora! A fazer que não via o dedo que lhe ia tocar na manga, os olhos no jornal. "Conjura para matar Yasser Arafat.. Amã, 7…" Não se mexe, controlado, não olhes, não olhes, os nervos aguentam mal, o dedo hesita… Trinta anos à espera! Ó Brigitte Bardot! Ó revistas alemãs com elas na capa!

A unha roçou-lhe o braço.

- Yes?- britânico, nada de Ièsse. Yes! E cara condizente, cara de habituado àquilo, de quem deita o anzol dos olhos, elas mortinhas por ferrar. Cara de farto.

E o bijuzinho diz assim: - Oh!

Um quarto de volta na cadeira, avaliação fulminante no frente a frente. A outra é recheada, de perna curta, os cantos da boca traem um diferença de idade para mais. Escolhe, larga o sorriso - ouviu dizer e não esquece, as cobras também hipnotizam assim, com os olhos muito fixos - e atira-lhes outra vez: - Yes?

Ela sentiu, ataranta-se, estende o mapa, baixa a cabeça, de certeza com medo que aquela telepatia acerte no alvo. Se sabe o caminho para Belém. E gentil, doce, carinhosa, fache favorre, Béléme, os basbaques em volta a apreciar, trombudos, ciumentos, "estes gajos que se fazem às camones!"

Não olhes, não te rales. Mãozinha delicada, branca, femeal. Retira a dele com medo de perder as estribeiras, começar ali o que está a planear para depois do anoitecer: o fadinho, os becos sem luz, o Castelo está fechado, vamos então a Alfama! Cuidado não escorregue, estas calçadas são a desgraça dos tacões Yes. Espere. Há-de enlaçar então a cinturinha quente, requebrada.

Sem apoio o mapa cai, riem daquela sem-graça, baixam-se ao mesmo tempo e as cabeças tocam-se, ele aproveita para dizer que ninguém vai a Béléme, uma torrezita antiga, vê-se melhor da ponte, de longe até é mais bonita.

Azeda, desconfiada, a gorda ainda por cima tem ciúmes, de certeza tem, não faz caso do que ele diz, nem sequer olha, segreda qualquer coisa à companheira, que sorri, já esquiva.

Vão embora e ainda tenta, mas sem entusiasmo: - Se quiser que as acompanhe… É sempre a direito até ao rio, e no Terreiro do Paço, com o elétrico…

Ela acena que sim, mas não compreendeu, viram-lhe as costas e atravessam o Rossio.

 

 

segunda-feira, setembro 1

Ter e não ter

 

Anos atrás, mais ou menos por este tempo, encontrava-me eu em Workum para assistir à Strontrace (“A corrida da merda”) espectáculo marítimo e folclórico que, mais pelo seu nome particular que pelo seu objectivo - a repetição de uma competição doutras épocas para o transporte de estrume entre aquela aldeia frísia e a região das tulipas - tinha despertado a minha curiosidade.

Ao nascer do sol saí do conforto do hotel para o porto, e aí, entre barcos onde tudo ainda dormia, fui dar com a tripulação de um que gentilmente me convidou a tomar o café matutino. De cócoras num espaço diminuto, escuro, umas quinze pessoas regeladas, vestidas de roupa suja e artisticamente esgarçada, partilhavam um pequeno-almoço frugal.

A conversa não era animada, mas a escolha do vocabulário denotava a excelente educação de todos. Dinheiro por certo também lhes não faltava, pois sinais dele se viam por toda a parte, e o barco, embora mais que centenário, era um modelo de boa e cuidadosa manutenção.

Intrigou-me que, para os preparativos da corrida, gente assim se sujeitasse, havia uma semana, a viver com tanto desconforto, dormindo amontoada em verdadeiros buracos onde a humidade escorria das paredes. Para a higiene de todos havia uma bacia onde mal cabiam duas mãos. A retrete era um brinquedo. A cozinha um fogareiro a petróleo sobre uma caixa.

Com rodeios, para não ferir susceptibilidades, inquiri das razões que justificavam tais sacrifícios, perguntei que vantagens lhes viriam se ganhassem o primeiro lugar.

- Nenhumas - respondeu o senhor que os capitaneava. - Uma taça, talvez. Uma medalha. Qualquer coisa no género.

- Tanto desconforto só para isso?

Alguns sorriram surpresos, um ou outro parou mesmo de sacudir as mãos entorpecidas.

- As privações, meu caro! Passar privações! É esplêndido! - disse o senhor, os olhos iluminados de entusiasmo e satisfação.

Não compreendi de imediato que aquilo fosse a sério, mas quando depois de muito discutir me dei conta de que não adiantava argumentar sobre a impudência de brincar aos pobres navegantes desprotegidos, agradeci o café e fui-me dali a ruminar desprezo e repulsa.

Evidentemente que eles, crianças grandes com tempo de sobra, dinheiro de sobra e boas intenções, estranharam a minha atitude, e por certo de forma alguma mereciam os meus maus sentimentos. A minha reacção ao fenómeno, porém, continua a ter a violência das grandes alergias.

Mal alguém começa a fazer o elogio das privações sofridas durante uma expedição de sobrevivência no Uzbequistão (com seguro contra acidentes!), numa caminhada de meses nos Andes, ou com um sorriso beato recorda o frio e a fome que quis passar na sua peregrinação a Santiago, só com esforço me contenho enquanto se não dissolve a nuvem vermelha que se me forma diante dos olhos.

Deus me livre de ser pobre, viver esfomeado e com frio, e os livre também a eles de me encontrarem então no seu caminho. Será que não têm consciência do insulto que o seu divertimento implica? Ou viverão tão alheados do mundo que os rodeia que supõem a miséria se pode imitar e que ela é para todos indolor e colorida como as imagens da tv?

Como permanecer impassível ao ler a carta que recentemente me escreveu um holandês, doido de alegria por numa aldeia de Portugal ter comprado um casebre e dois palmos de terra por dez réis de mel coado?

 

“Sinto-me renascer - escreve ele - agora que aqui, sem qualquer conforto nem sequer água corrente, e com paredes esburacadas (a minha casa pertencia a um mendigo) aprendo no meio de gente autêntica o que são as verdadeiras privações.”

Não me custa imaginar os rasgões da sua roupa, a cordialidade de pechisbeque, o entusiasmo de empréstimo numa vida de imitação, o gozo supremo de ter descoberto pelo menos uma verdadeira razão de existir. E a arrogância. A arrogância que nasce da certeza de só participar enquanto se deseja, de poder partir no momento em que “as verdadeiras privações” se tornam desagradáveis. Porque o pobre genuíno, esse, vive encadeado nelas e nunca lhe ocorrerá que a sua existência possa ser razão de inveja ou motivo de imitação.

Ao mesmo tempo sei que nada justifica a minha ira. Que tendo tudo, protegidos por todos os lados, embotados nos sentidos e nos sentimentos, os imitadores apenas anseiam por sentir um pouco de realidade, mesmo que seja a brincar.

 

 

 

 

 

 

 

sábado, agosto 30

São as que temos

 

Quem sabe pouco da vida, me conhece mal, ou tem vistas curtas, é capaz de julgar que o riso que me dá quando se fala das elites portuguesas tem a ver com a minha origem plebeia. Mas assim não é. Acontece apenas que dei uns saltos largos desde a nascença, vi mundo bastante e tenho tido a sorte de poder comparar, resultando daí que o que em Portugal passa por elite se me apresenta como uma pitoresca massa de gente pobre com dinheiro, mais interessada em coleccionar relógios, vinhos e automóveis, do que se dar ao trabalho de estudar pelo menos aquele pouco que permite ter da vida, da sociedade, da política e da cultura, uma visão mais elevada do que a do taberneiro que julga o mundo através dos quartilhos de vinho e dos copos de cerveja.

Como se pode considerar elite um grupo de cidadãos que, mau grado as obscenas fortunas, não oferecem um quadro a um museu, não ajudam uma escola, nada fazem para aumentar o bem comum?

Vão aos concertos? Pois que lhes preste, mas não os vejo subsidiar uma orquestra ou oferecer bolsas aos músicos talentosos.

Livros? Têm-nos encadernados em marroquim, milhares deles em bibliotecas de confortáveis sofás, onde se bebe vintage ou aquele uísque que lhes reservam na Escócia. Não lêem, falam de moedas, de ganhos, dos bens que amealham, e poderá ser que tenham outra, mas a que mostram é uma visão rasteira do mundo e da vida, uma visão sem ideal nem solidariedade, até sem futuro, pois julgam que o mundo começou com eles, é deles, para eles,  e continuará nos filhos. A esses logo de começo ensinam o princípio de que o homem deve ser lobo do homem, e eles, as elites (as elites!) os lobos-alfa  com direito, não ao melhor naco da presa, mas à presa inteira.

Tenho podido comparar. Conheço países com verdadeiras elites, gente que amealha fortuna e depois a reparte para melhoria da terra em que nasceu. Homens e mulheres que oferecem milhões de euros a um hospital, um museu, uma universidade, uma orquestra. Homens e mulheres que pensam,  lêem, agem, que se sentem e mostram solidários com os seus concidadãos.

Neste nosso desmazelado e espezinhado Portugal, pobre de pedir entre as nações, até a elite que temos nos envergonha.