domingo, janeiro 28

As "Grandes Figuras"

 

Estou longe de ver o fim da trabalheira em que me meti: há meses a encaixotar livros e papelada que fui guardando há uns setenta anos, e se irão aninhar na Confraria Queirosiana em Gaia, a terra onde nasci.

Encontro de tudo: artigos, reportagens, textos soltos, rascunhos, telegramas (que eram entregues em mão!), faxes, retratos de gente que esqueci, fotografias de um avião anfíbio em que voei, festas do São João no Porto, a catedral de Chartres...

Não me têm faltado surpresas, mas abalo só sofri ao dar com uma carta daquele que foi o meu melhor amigo, guardada no envelope, assim a modos de realçar a lembrança do choque que me causou.

Nela recordava o meu amigo longas conversas que tínhamos tido no começo dos anos setenta sobre a situação em Portugal, e a discordância que nos opunha. Defendia ele o carácter e entusiasmo dos nessa altura chamados “Grandes Figuras” da Oposição, apontava-lhe eu a ganância de que os ditos davam prova, a falta de carácter, as invejas, a sem-vergonha, os golpes baixos, as traições.

Uma tarde em que a diferença do nosso sentir tinha alcançado a fase dos berros, ameaçou ele que, caso eu tornasse público o que pensava dos personagens em questão, deixaria de me falar.

Além da sua amizade ter para mim uma valia indiscutível, era ele também o mentor que, ao longo de anos, me guiara em questões de Literatura, Arte, Cinema e História.

Fora isso também lhe era devedor de lições de vida, pois partilhara comigo muitas experiências dos agitados e atribulados anos que vivera na Espanha republicana, depois refugiado em França, e no Brasil da década de quarenta.

Cedi à sua vontade, a nossa amizade continuou até à sua morte em 1972, mas não há 25 de Abril em que eu esqueça de dar graças por lhe ter sido poupada a amargura de testemunhar o que acontece a um país na mão de quadrilheiros.

 

 

 

sábado, janeiro 27

Por caminhos e atalhos


                 Começou com estes dois. Cinquenta e seis anos passados chegámos aqui:



Pisar o risco

 

“O que está em causa na próxima semana é a liberdade de expressão e o direito de manifestação. É uma real prova de fogo da democracia portuguesa. Por razões de interesse público e em defesa da paz e da ordem pública, podem as manifestações (que não necessitam de autorização) ser deslocadas no espaço e no horário, como pode ser exigido que não se realizem no mesmo sítio ou à mesma hora. Mas não podem, definitivamente não podem ser proibidas!

Se a democracia portuguesa não consegue viver com antidemocratas e com racistas ou xenófobos é porque é fraca, frágil e medrosa. A democracia defende-se com métodos legítimos e com força democrática, sem recorrer a meios ilegítimos. Sem pisar o risco.”Aqui

 

 

sexta-feira, janeiro 26

Rapaz simpático

 


 

Um romântico

 

No jardim que tem atrás de casa, uns escassos metros quadra­dos, avulta uma tília secular. Quando o tempo o permite leva para junto da árvore uma mesita, uma cadeira da cozinha e, horas a fio, escreve o seu livro. Com uma pena de aparo de aço, um tinteiro e cadernos escolares, porque lhe repugna usar meios a que falte uma longa tradição.Escrever à máquina parecer-lhe-ia uma falta de respeito, dum computa­dor nem quer ouvir falar. Escreve, por isso, morosamente, mas diz que só desse modo consegue provocar a passagem do misterio­so fluído com que o cérebro canaliza as ideias para a mão.

O livro não é uma qualquer obra de narrativa fictícia, mas a síntese das observações e pesquisas filosóficas, intelectuais, morais e psíquicas a que se dedica desde a adolescência, e agora, na meia idade, lhe parece terem atingido o ponto de maturação. Anos atrás tinha enchido o equivalente a novecen­tas páginas dactilografadas e, quase certo de ter produzido um magnum opus, levou o manuscrito ao editor.

Este foi cruelmente sincero no seu juízo: "Ilegível, incompreensível, um desarrazoado." Com razões idênticas o editor rejeitou uma segunda versão do texto, mas a vontade que o anima de oferecer ao mundo o livro último, aquele onde se encontrem todas as perguntas e quase todas as respostas, não é das que esmorecem com um revés. Nem com dois. E à sombra da tília, diligente, imper­turbável, continua a escrever, certo e seguro de que sabe o que ninguém mais sabe, que tem para dizer aquilo que ainda nunca ninguém disse.

 

domingo, janeiro 21

Cara feia, cara alegre

 

Num passado já longínquo de décadas, um dia de Agosto vinha eu do tribunal de Amesterdão, onde num julgamento a sentença me tinha sido desfavorável, e o prejuízo significava um desmesurado rombo nas minhas então precárias finanças.

A tarde era soalheira, o ambiente da Leidsestraat espelhava alegria, bem-estar, entusiasmo juvenil, tudo em contrário das sombras e obrigações que me afligiam, pois nem me atrevia a imaginar como seriam os dias que me esperavam.

Pouco capaz de nesse momento esconder o que sentia, ou parar o medo que me assaltava, facilmente se imagina a expressão do meu rosto, embora no íntimo julgasse que mantinha o aspecto e o modo neutro de quem vai seguindo o seu caminho sem preocupações de maior.

Surpresa, e grande, tive-a com o guarda do estacionamento, que conhecia há vidas. Ao ver-me entrar agarrou-me pelo braço, deu uma sacudidela, e com a franqueza bruta e directa do amesterdamês genuíno, conhecido por não perder tempo com salamaleques e cortesias, quase me gritou que eu não tinha o direito de mostrar uma cara assim. Por certo qualquer coisa me tinha corrido mal ou estava doente, mas não precisava de expô-lo, muito menos andar pela rua a afligir quem me olhasse.

O segundo abanão só não me fez cair porque ele me prendeu num abraço, e fingindo uma rispidez carinhosa de mestre-escola avisou-me que fizesse por esquecer, pois tudo passa.

Uma vez por outra, e como agora sem motivo aparente, recordo a momento e o conselho, mas sei também que nem sempre o segui, embora me tenha esforçado por travar o reflexo de fazer do rosto o espelho dos meus pesares e alegrias. Confirmo também a verdade do adágio: quem vê caras não vê corações. E bom é que assim seja, pois Deus nos livre de darmos rédea solta ao que vai cá dentro.

 

 

 

 

 

 

domingo, janeiro 14

A guerra em férias

 

As guerras já não são o que eram, é tempo perdido recordar guerras como a da Abissínia em 1936 quando, em vôo, os pilotos dos aviões de caça disparavam revólvers contra os pilotos inimigos.

Mas se mudaram as guerras, mudaram muito mais os sentimentos, hoje quase todos se querem universalistas e modernaços, faz figura de tolo o que se diz orgulhoso da terra onde nasceu, da língua que fala, dos valores e tradições que respeita.

De modo que só na aparência tem este intróito a ver com recordações de guerra, sim com a estranheza que provocam certas mudanças de sentimentos e mentalidades, de que não nos demos conta, ou por cautela e paz de espírito fingimos descartar.

Assim sucede que um amigo, jornalista que há trinta e tal anos, ao redor do mundo segue guerras, tragédias e cataclismos, telefonou a lembrar que há muito tinha passado a ocasião de nos revermos, o que estava a pedir almoço ou jantar.

Foi almoço, e como ele, desde a invasão da Ucrânia lá tem ficado muito tempo, foi da Ucrânia que falámos. Da carnificina e do sofrimento de ambos os lados, das destruições, do medo, do desespero, da falta de esperança, da paz que tarda.

A certo ponto vi-o sorrir, e ia perguntar o motivo, mas ele antecipou-se à minha curiosidade:

- De facto as guerras já não são como eram, e este mundo tem pouco a ver com o que se tomava por normalidade. Há os bombardeamentos, as destruições, os mortos, os feridos, mas demasiado mudou. Disse-mo sem papas na boca um casal ucraniano que meses atrás entrevistei:

“Estamos fartos desta guerra e de ter medo. Não dormimos uma noite em sossêgo, sempre à espera do alarme. Por isso fique ou fuja quem quiser, nós vamos de férias para a Suíça e ficamos por lá o tempo que for preciso. O patriotismo e a solidariedade são nobres sentimentos, mas vida há só uma.”