quarta-feira, fevereiro 29

A choldra

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Domingo passado, modorrento com a digestão do jantar, sentei-me a ver na TV a escolha do representante holandês para o próximo Festival Eurovisão da Canção.
Não me divertiu, não gostei, mas pior foi que me trouxe à lembrança as desastradas participações portuguesas a esse festival. Todos os anos espero, todos os anos me encolho de vergonha e tédio, aflito com as canções escolhidas, a prosápia dos que cantam, o mal-estar ao ouvir: "Portugal, one point".
Agora vai o meu jovem amigo Henrique Raposo vociferar que não gosto da Pátria, que sofro do complexo eciano de desfazer dela, que também eu a considero "uma choldra".  Mas não se trata, nem de longe, de desamar a terra de que somos, antes de manter os olhos abertos, dizer onde está o dói, e participar na cura.
Pensando estas coisas ao mesmo tempo que me aborrecia com o programa que estava a ver, ocorreu-me que dias antes tinha lido a bela prosa de outro amigo, também ele eciano de gema, também ele amigo da Pátria, mas muito alerta para o que nela poderia ser melhor. Demonstra Joaquim Gonçalves Guimarães aqui que não sabemos cantar. De facto não sabemos, berramos, desafinamos.
Seja dito que em cantoria os holandeses não são melhores. "The Netherlands, one point".

terça-feira, fevereiro 28

É contigo

É contigo que falo, me abro, deixo entrever boas e más horas, te mando em código sentimentos, abjurações, raivas e alegrias. É para ti que componho frases onde tudo está, e tudo se esconde, a aparência mascarada de realidade, o acontecido embrulhado em fantasia, o eu tantas vezes multiplicado que não reconheço a própria sombra e desconfio que não seja minha a voz que julgas ouvir.
Falo-te, e contudo não existo, nem sequer como me imaginas, porque a todos os momentos me refaço. Escondo e escondo-me, reapareço, invento-me. Iludo-te com palavras, e elas, fazendo ricochete, transtornam a imagem que de mim formas, a do espelho em que julgas ver-me e onde nunca estou.
Falo, tu escutas. Parece realidade e é só aparência, distância, sonho, a bela ilusão do possível que nunca acontece, o poder volátil do desejo tonto. Enfio palavras como contas num rosário de orações, sem credo nem sentido, ignorando que música te farão ouvir, ou se de alguma dor sentirás alívio.
São só palavras, migalhas de mim, sacudidas com fingido descaso, mas na esperança de que, se as apanhares, te dêem a ilusão de que estivemos a falar e nos compreendemos.

segunda-feira, fevereiro 27

Soubesse eu de poesia

(As Três Graças - Lucas Cranach, o Velho, 1472-1553)
Soubesse eu de poesia. Num quarteto, soneto ou ode, pronto soprava para longe o nevoeiro que cega e entontece. Soubesse eu, mas não sei.
Cavo na prosa, que não é de brisas, antes de pesos, arrastos, algemas e grilhetas. Desconhece a inspiração. Nada lhe vem do alto ou do sublime, é obra de enxada em terra dura, com morosidades de boi antigo nas voltas da nora.
Obriga-me a escrever beijo, quando por vontade escolheria ósculo. Falo de lusco-fusco, envergonhado de dizer arrebol. Mas poeta não é qualquer, nem quem quer, só aquele que as Graças favorecem.

sábado, fevereiro 25

Club Transmontano de Angola, 1912 - 1946

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Em 1946 festejava o Club Transmontano de Angola 34 anos de existência. Para marcar essa  efeméride da "primeira instituição regionalista criada em Angola" editou-se um número comemorativo da sua revista. Um exemplar da mesma foi nesse ano remetido para Lamego ao Padre Aníbal Rebelo Basto, provavelmente pessoa conhecida, pois bastou o nome, não precisou de endereço.
Em 1996, no Outono, querendo dar publicidade a Trás-os-Montes, organizei eu uma excursão com 100 holandeses que, em 10 dias, descansando e pernoitando em várias aldeias, caminharam os quase 100 km de Moncorvo a Miranda. Desse grupo fazia parte uma jovem que, tendo gostado da terra e das gentes, desde então volta com frequência a Portugal.
No Verão de 2001, encontrando-se em Lamego, despertou-lhe a curiosidade uma maleta atirada para um monte de lixo. Uma vez aberta, descobriu nela uma revista, um par de óculos, uma boquilha e alguns postais. Guardou a revista, esqueceu-a, redescobriu-a esta semana e decidiu que eu era a pessoa a quem a iria oferecer.
Assim me vejo na posse de uma interessante publicação, de cujo conteúdo, a par de poesia e curiosidades, faz parte um "Recenseamento dos Transmontanos residentes em Angola". Contando por alto, estão nesse registo cerca de 1300 nomes de pessoas e as respectivas localidades de origem, residência e profissões.
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Transmontanos residentes em Angola em 1946

Numa apressada vista de olhos pelas listas, procurando vizinhos, encontrei gente de Freixo-de-Espada-à-Cinta, Lagoaça, Bruçó, Carviçais, Adeganha, Moncorvo, Carrazeda de Ansiães, Vila Flor, Vila Nova de Fozcoa, Alfândega da Fé, Sambade, Meirinhos, Mogadouro, Castelo Branco, Miranda, Chacim, Azinhoso, Poiares, Larinho, Vilar Chão...















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sexta-feira, fevereiro 24

De boca aberta

Esperar vinte e cinco anos depois da morte do homem  para maldizer do Zeca Afonso, não me parece de uma coragem exemplar.
Felizmente, não é só a fealdade dos sentimentos que nos deixa de boca aberta. Vai-se aqui e descobrem-se maravilhas.

quinta-feira, fevereiro 23

O rapaz de Aveiro

Esperávamos pelo eléctrico e tirei-o pela pinta. Telefonava, dizia a alguém num razoável inglês que se tinha atrasado, dei conta do saco de Viagens Abreu pousado no chão. Fechou o telemóvel e suspirou desconsolado: "Grandessíssima merda!"
Meti conversa. Fazia frio, o eléctrico demorava, estávamos defronte da Centraal Station onde há um bom café. Convidei-o e lá fomos.
O Alberto, solteiro, 36 anos, estudou História da Arte, Ciências da Comunicação, Sociologia, Relações Públicas, Inglês. Tudo pela rama, esperançado de descobrir uma paixão, desiludido de que nada o fizesse vibrar o bastante para terminar um curso.
Conta que já teve duas namoradas a sério, um T2 em Oeiras, um Audi. Esteve em Jerusalém e não gostou. De Londres também não. A falar verdade nem de Paris. A primeira namorada, muito apegada à família, não era de viagens, mas com a segunda visitou Cuba e o México, estiveram em Bali, no Nepal, na Índia, em Dubai, em Abu Dhabi. Num outro Verão andaram pela Turquia, a Geórgia, a Ucrânia - "Kiev! Espectacular! – a Rússia, a Polónia.
Oiço. Nada pergunto. Diz agora que a vida mudou muito, as coisas estão más, já não tem apartamento, carro, namorada. Faz dois meses que veio para Amsterdam, um bocadito à sorte. Um amigo holandês ofereceu-lhe cama e mesa por duas semanas, e prometeu que o ajudaria a procurar trabalho.
- Mas o trabalho… - ergue os braços, desconsolado.
Pergunto que trabalho era e ele, tristonho, fala de plantar flores em estufas, colher hortaliças, empacotar sementes.
- Pagava mal. Aquilo era mais para polacos. Andavam lá muitos.
Um rapaz de Aveiro ofereceu-lhe um quarto. Pode ficar o tempo que quiser, mas tudo é muito caro, e se não conseguir qualquer coisa terá de voltar. Um problema, porque os pais já cuidam dos netos e da irmã divorciada.
- O de Aveiro trabalha nas limpezas. Só dá 8 euros por hora e é às noites. Acho que não posso. Ele próprio se queixa, diz que é pesado. Não sei, mas a minha ideia vai mais para um trabalho de Relações Públicas, ou no ramo de viagens.
Pergunta o que penso, o que me parece, e eu respondo que se deite ao que vier. Limpeza, asilo de velhos, descargas, porteiro, moço de recados. Esqueça os estudos que não terminou e a vaidade que não pode nem deve ter. Ganhe o pão-nosso de cada dia. Dou-lhe em exemplo um amigo meu, brilhante doutor em Física, que quando, por falta de meios, a universidade inglesa onde trabalhava não lhe renovou o contrato, passou anos a lavar pratos e a fazer de jardineiro.
O Alberto não gostou de me ouvir, nem que lhe dissesse que o rapaz de Aveiro tem razão e está no bom caminho.

quarta-feira, fevereiro 22

Desespero meu

É desoladora, sem conserto nem cura, a obstinação nacional da crítica injuriosa e do maldizer, palavreado pelo gosto do palavreado, botar figura seja de que modo for, a querer provar que se sabe da poda, que se tem voz na matéria, se é incontornável presença, se nasceu tribuno e detentor exclusivo do único bom caminho.
Cafés raro frequento, cortei na leitura de jornais, e agora ponho de parte os blogues onde, com as fortes certezas da vaidade, me explicam os males nacionais da economia e da política, os erros de quem manda ou de quem mandou.
Não há volta a dar-lhe e com tristeza o repito: continuamos irremediavelmente os Alpedrinhas "das nossas terras palreiras da vanglória e do vinho". E para quê, senhoras e senhores? O palavreado não convence, a ninguém engana, se alguma coisa prova é o mau fado de querer poder, mas empurrando para outros a responsabilidade e o esforço.

terça-feira, fevereiro 21

Manuel António Pina

Não é hábito, mas também raro acontece ler entrevistas deste teor.
Parabéns a Manuel António Pina pelas respostas, e a Nuno Ramos de Almeida que tão inteligentemente o entrevistou.  

segunda-feira, fevereiro 20

Duas perguntas (resultado)

Ficou longe de ser uma avalanche. Não seria de esperar nem o prémio o justificava, mas sempre foram sessenta e sete os leitores que se deram ao trabalho de formular as duas perguntas que me fariam se fossem jornalistas.
Reuniu-se o júri a meio da tarde de ontem. Leu-se, discutiu-se, ponderou-se, e com pena se descobriu que muitos, de facto quase todos, tinham uma pergunta boa, mas outra fraca. Finalmente, de novo debatendo e deliberando, foram nove os papelinhos metidos no saco. Chamou-se criança inocente e foi ela que de lá tirou o nome de Isabel Gonçalves, que tinha perguntado:

- Viajado como é, pelo mundo e pela vida, se lhe desse para fazer um balanço introspectivo, gostaria que me dissesse, à luz desse balanço, se, para si, são as circunstâncias que fazem o homem ou, antes pelo contrário, o homem forja e molda as suas próprias circunstâncias?

- Certezas não tenho, mas se fosse possível forjar e moldar as próprias circunstâncias, creio que a minha vida teria sido bem diferente, sem aventura, com menos sobressaltos, moderada nos resultados. Por outro lado, isso implicaria também a perda de momentos de muita  adrenalina, de sentir extrema alegria, alguns êxtases, viver revelações surpreendentes, ter motivos para admiração e paixão. Posso dar-me a ideia de, uma vez ou outra, ter sido o timoneiro da barca, mas a força da corrente sempre pôde mais e levou a melhor sobre a minha perícia ao leme.

- Como leitora diária e atenta do seu blogue infiro que são muitas as características, digamos, menos nobres do ser humano que lhe causam sentida e sincera tristeza. A minha pergunta é, por oposição à minha afirmação, que resultados, que efeitos, da sua escrita, lhe causaram e continuam a causar-lhe uma profunda e genuína alegria?

- Uma das desagradáveis características da alegria, mesmo profunda e genuína, é a velocidade com que perde impacto e se vai esvaindo da memória. Tivesse ela a força e a permanência da tristeza. Mas eu seria desagradecido e hipócrita se quisesse esconder ou diminuir as alegrias que a escrita me tem dado. Conto por alto: ver impresso o meu primeiro romance; os primeiros artigos de jornalismo; o impacto de Com os Holandeses no público holandês; as excelentes críticas aos meus livros na Holanda, na Bélgica, na Alemanha, no Le Monde e no International Herald Tribune; o êxito de Portugal, um guia para amigos; a recente edição da minha obra em Portugal.
São de facto muitas, grandes e pequenas, as alegrias que me têm vindo da escrita, mas entre as mais íntimas conto os testemunhos dos leitores, quando me dizem como, e por que motivo, os tocou um ou outro livro meu.

domingo, fevereiro 19

Amstrad 1512

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Nada a fazer: rendo-me à evidência de que me falta cabeça e vontade para continuar ao corrente da evolução da Informática.
Em 1986 comprei o meu primeiro computador, um Amstrad 1512, gémeo do que se vê acima, e desde então anda à volta de duas dezenas os que funcionaram e funcionam cá em casa.
Aprendi muito e esqueci ainda mais. Formatar disquetes , decifrar MS-DOS, lidar com WordPerfect e Corel Draw, as primícias de Word, modems que eram externos e depois incorporados. Mandar mensagens, as avós de e-mail, era nesse antigamente acompanhado de silvos, ruídos e muita incerteza quanto ao resultado.
Para não me atrasar no conhecimento, cedo comprei livros e assinei revistas, e até recentemente fui leitor fiel e estudante devotado, mas chegou a hora de parar. As revistas da semana passada, empregando uma linguagem para mim esotérica, falavam de Android,High-End Routers, Spotify, Password managers, IPv6, Streaming, Cloud, SSD 600MG/s, Virtual Private Servers, iTunes Backups, Torrent, SpotGrit
Folheei. Li, compreendendo muito pouco.Terminei as assinaturas. De hoje em diante, em matéria de computadores continuarei no estádio em que agora me encontro, deixo de acompanhar e dispenso aprender.

sábado, fevereiro 18

Allah nos livre!

Começou hoje em Teerão o processo de 32 pessoas acusadas de uma fraude de dois mil milhões de euros. Além de terem falsificado documentos de várias instituições financeiras, pondo em perigo a estabilidade económica do país, mantiveram-se impunes através da corrupção de autoridades.
O principal arguido é acusado de "corrupção laica", o que no Irão o classifica como "inimigo de Deus". Se o juiz o considerar culpado será condenado a morrer na forca.

Deixem-nos em paz e fiquem os iranianos onde estão, não lhes vá dar a ideia de exportar o código para a Lusitânia. Felizmente, cá não dava. Os nossos brandos costumes não suportam selvajarias.

Gorjeios

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Dizia o dicionário antes de ter chegado o fenómeno:
"Twitter1s. gorjeio; agitação; inquietação; algaraviada; estado nervoso.
2vi. gorjear, chilrear; falar excitadamente; estar nervoso."

A você, que chilreia ao longo do dia, pondo o mundo ao corrente dos seus estados de alma em 140 caracteres, desejo longa vida e recomendo que estude Semiótica, pois o momento chegará em que mesmo o gorjear lhe vai parecer complicado e cansativo. Profetiza-se, aliás, que para o grosso da Humanidade, a que você agora pertence, o futuro está nos símbolos.
E a propósito daqueles 2754 amigos que tem no Facebook, sinceramente espero que se multipliquem, pois quantos mais amizades dessas tiver melhor se assombrará com o vazio que criou. Talvez então se dê conta que é hora de acordar.
Não lhe aconselho livros nem poemas, pois temo que para si já seja tarde, mas talvez ainda se possa despedir do autómato.
Volte a ser gente, reaprenda a língua que lhe ensinaram de pequenino, use a fala que Deus nos deu para que nos distinguíssemos do resto da Criação.

quinta-feira, fevereiro 16

Auto-ajuda

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Talvez porque desconfio de receitas e sou avesso a mudanças de comportamento em que não tenha mão, ainda nunca li um livro sobre auto-ajuda. Se me acontece passar os olhos por  artigo que trata do assunto, leio a coisa em diagonal e não fica recordação, curiosidade ou interesse.
Na minha juventude tinha fama a ainda hoje muito estudada "bíblia" de Dale Carnegie  (1888-1955), How to Win Friends and Influence People, e os avós dos que agora se estafam em ginásios e Pilates seguiam as doze lições do método Dynamic Tension de Charles Atlas (1892-19720), de seu nome Angelo Siciliano, considerado então, de Brooklyn à Califórnia, "O Homem Mais Bem Proporcionado do Mundo".
A idade obriga-me a poupar energia, mas também é facto que por natureza sou contrário à demasia de esforço físico. No que respeita fazer amigos sigo a intuição e ainda nunca me subiu à cabeça a tontaria de querer influenciar o meu semelhante.
Por isso não irei mudar de ideias, nem tornar-me fanático de Mensendieck para manter a forma, mas agora que os anos vão pesando e começo a dar-me conta de certa moderação nos juízos, pergunto-me que motivo, fora a malícia ou a inveja, me leva a rir dos que querem aumentar dois centímetros à estatura e doze aos peitorais? E que mal pode haver na crença de que um método ajude alguém a ser feliz, ou pelo menos mais ajustado?
Não leio livros de auto-ajuda nem entro em maratonas, mas talvez por isso sou fanático de horóscopos e do que predizem as cartas.

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quarta-feira, fevereiro 15

Fazendo contas

Fazendo contas não destrinço se é das recordações ou da imaginação que me vem  proveito, se da rotina ou duma ou doutra tarefa a que me obrigo. Ao certo sei que me interrogo sobre a utilidade do que faço, do pouco que faço, e em que fundo nascerá este agudo sentimento de independência que me obriga a não participar, mesmo quando daí me viria benefício.
É dizer que sempre andei e continuo a andar desacertado do mundo, há horas em que me desconheço, momentos em que a certeza de existir me vem apenas do peso do corpo, porque o espírito, esse esvoaçava pelos longes da irrealidade e do impossível.
De modo que até para mim próprio sou má companhia, e abundam as ocasiões em que de bom grado me despediria desse outro que também sou. Pagaria, mas não há à venda, para ter uma alma como tantas invejo, as que possuem certezas fortes, traçam um caminho e o seguem sem desvios nem hesitações.
No que me toca, e desde que dela tomei consciência, a minha rota tem sido de hesitações e recuos, desvios, estranhos confrontos, perguntas sem resposta. Ganhei? Perdi? O Diabo que o diga, e Deus me dê paz.

terça-feira, fevereiro 14

"Guerra de trincheiras"

Comecei bem o dia. Se também lhe interessa esta Pátria de nós todos, lhe dói o espectáculo, anseia por melhores dias, gente com mais cabeça, menos ódio e livre de mesquinhez, leia aqui.

segunda-feira, fevereiro 13

O meu escrever

Escrever, pelo menos o meu escrever, é forma de loucura mansa. Escrevendo imagino-me, construo-me, sou quatro, dez em vez de um só, voo sem asas, marcho sem fadiga, amo, luto, conquisto. Escrevendo desfaço nuvens, sou pai de mil, invento dores, ressuscito mortos e fantasmas, ganho em roletas, nenhuma altura me estonteia, não há duelo que perca, precipício que tema, mágoa que não sofra e depois vença.
Escrevendo perco-me, refaço-me, cresço e mingo, oiço o eco dos gritos que ninguém deu, sofro medos que fantasio, por terras que desconheço traço rotas que não seguirei, visto cem trajes, ponho cem máscaras, por detrás delas finjo outras tantas vidas e mais uma, a única que não conta.
Escrevendo gozo por igual a liberdade e a prisão. Defendo, acuso, perdoo, insulto, sou sempre outro e pelo menos dois, às vezes multidão em que me escondo, fugindo do súcubo que eu  próprio crio e no qual me torno.
O meu escrever é isso e mais, é também o caminho que um dia tomei, ignorando que era só caminho, sem meta, sem destino.

domingo, fevereiro 12

Pobre antigamente

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Já Bocage e mais antes dele o assinalaram, fizeram-no também Camilo, Eça, Fialho e outros, mesmo assim continua a surpreender: à medida que diminui a sua capacidade de intervir ou a possibilidade de agir, mais o português analisa e palra, cheio de certezas e conhecimento dos arcanos da política, da economia, do mundo da banca, dos subterrâneos do poder.
Palra com a convicção e fervor que são a marca da impotência, do medo dos confrontos, da incerteza em que vive, da desarranjada balança em que pesa os seus direitos e deveres.
Palrar e bazofiar podem ser agradável passatempo, entre amigos, durante e depois do almoço, mas são mau sinal quando se tornam maneira de ser.
Em Portugal discute-se muito, sofre-se em demasia, mas raro se faz o preciso a tempo e horas. E palavras leva-as o vento. Sem obra nem alicerces, os que vierem depois de nós não vão ter um antigamente de que se possam orgulhar.  
..................
A ilustração é de Hilary Senhanli.

sábado, fevereiro 11

Frio (5)

Hoje em Alblasserwaard
Hoje em Amsterdam
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Gostaria

Gostaria, mas não me é dado, tudo compreender, de tudo gostar, sorrir a todos, ser cristão nos sentimentos e mandamentos. Gostaria, mas não me é dado, esconder a raiva, perdoar o insulto. Gostaria, mas não me é dado, voltar à inocência, viver loucuras, alegrar-me com o voo da águia, o fulgor das estrelas, o sol poente. Gostaria, mas não me é dado, ser de jeito manso, só ver harmonias, ter ilusões, acreditar em sonhos, fadas benfazejas, dormir a sono solto, não sentir o corpo.
Gostaria, mas não me é dado esperar amanhãs.

sexta-feira, fevereiro 10

Reviravolta

(Ilust. Frank Frazetta - Clique para aumentar)
Rapaz que fecha os olhos e, por comodismo, ignorância, desleixo, anseia ficar parado no tempo, está em maus lençóis. Digo-lho eu, que venho do século XIX (*) , ou ainda de mais longe  e, julgando ter visto muita mudança, me dou conta que elas são tantas, e tão rápidas, que ainda o meu espírito não se habituou à novidade, já outra mais recente me confunde.
De facto venho de longe, de um tempo em que a mulher, sem ser de facto coisa, e estando um pouco acima do cão, só na aparência gozava de estatuto humano. As leis podem ser justas e  generosas nos parágrafos, mas a realidade doméstica pouco ou nada tem a ver com as intenções do legislador. Daí a minha dificuldade em apagar da memoria as violências e humilhações que testemunhei, a vergonha que ainda sinto das vezes em que, por um ou outro motivo, me pareceu que, como queria a Igreja e diziam os costumes, a mulher nascera para a subordinação e a obediência.
Paris deu um pontapé no atavismo das minhas convicções. Ali, se num ou noutro momento a mulher se mostrava no papel tradicional, fazia-o por interesse, jogo ou coquetterie e, findo o teatro, logo pronta também a vestir as calças e pedir meças ao companheiro.
Daí por diante não passou ano sem abalo para as minhas certezas. Perplexo, uma vez ou outra com genuíno receio de castração psicológica, testemunhei o avanço das hostes femininas e a sua vitória no assalto à fortaleza do machismo. Tive depois a impressão de que a guerra dos sexos entrara numa espécie de armistício, ora perturbado pelas exigências feministas, ora pela oposição masculina  à demasia das perdas.
Com um temor que, por estar fora de jogo não devia sentir, mas elimina os resquícios do que em mim ainda restava de orgulho macho, leio agora num inquérito que as jovens mulheres com estudos superiores e boas posições, encaram séria e pragmaticamente o casamento com rapazes de  bom físico e só o secundário. Nada de ideias, discussões sobre a Arte, a Economia ou a Política, o futuro do mundo, mas dos que ignoram a ambição, tenham um emprego que lhes dê para os alfinetes e deixe tempo para cuidar dos filhos e da lida de casa.
Venho de longe. Calhou-me assistir à igualdade dos sexos, preparo-me para, dentro em pouco, testemunhar a reviravolta completa, e ler nos jornais que o rapaz se queixou à Polícia de que a sua senhora lhe deu um par de bofetadas por não ter a comida pronta.
.................
(*) Não é erro. Nasci em 1930, mas em Gaia os costumes ainda eram dos meados do século anterior. Em Trás-os-Montes datavam da ocupação romana.

quinta-feira, fevereiro 9

Sem futuro

 
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Na minha idade não há futuro. Se me tornar excepção poderei viver ainda dez e chegar aos noventa ou, alcançando o século, tornar-me notícia de primeira página no boletim da paróquia.
Por isso conto apenas com o dia de hoje. Sem pessimismo nem optimismo, temperando os assomos, repelindo da memória as paixões que me mostraram como é o Inferno, repelindo também, mas docemente, as que abriram a frincha por onde apercebi o Paraíso.
Na medida em que o posso vou temperando os sentimentos, controlo as febres, esforço-me por evitar os picos de raiva e as funduras da decepção. Esforço-me, mas raro consigo, porque mesmo sem futuro tudo me obriga a ter consciência do mundo, a sofrer e a alegrar-me com ele. Ora de pé, sorrindo, logo depois sombrio, aos rebolões, temendo a queda.
Vivi em pleno, mas por mais de uma vez, testemunhando a tragédia alheia, fiz vénia, e disse também: "There, but for the grace o God, go I." Infelizmente, nem o que vivi ou aprendi me serve agora de amparo, pois já não tenho futuro onde  empregar o que ganhei de experiência, tão-pouco me abençoou a sabedoria. E assim vou indo, de longe a longe olhando para trás, surpreso cada vez que o dia nasce.

Frio (4)

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quarta-feira, fevereiro 8

Mpemba?

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Desconhecia, aprendi hoje: o efeito Mpemba ocorre quando a água quente congela mais rapidamente que a água fria. A temperatura estava a 15 graus negativos e este senhor atirou ao ar uma panela de água a ferver para fazer a experiência, e de facto assim acontece.


Nós

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Tanto grito e tanto insulto, tantas raivas, invejas e despeitos. Tanta energia esbanjada a exigir o que ninguém pode dar. A fanfarronice a esconder o temor e a impotência, a ignorância, o desespero, a aflição, as lágrimas que se choram para dentro. As mostras de pequenez, o egoísmo velhaco, o tolo apontar de culpas, o fingimento de vestir o sambenito, o gozo parolo de ser bom no papel de coitadinho.

Como nos desenharia Bordallo se voltasse? Por onde andarão os jovens Bordallos?