domingo, dezembro 31

O tempo é um carrasco

 

Longe de mim gracejar ou querer fingir sabedoria, pois nem a ocasião se presta a ligeirezas, nem os muitos anos me tornaram sábio, e o que fui aprendendo durante o longo caminho percorrido, é travão bastante para exageros ou diversões.

Todavia, um ano a encerrar e outro a surgir, no momento em que soam as doze badaladas finais, poucos -  e entre eles me conto -  escapam ao vago sentimento que, inexplicavelmente, junta ao medo que os primitivos conheceram nas cavernas, uma angústia que parece sem fundamento, pois são colossais os avanços e melhorias que deles nos separam.

Por si só, tomar consciência um instante que fosse, do muito que temos e podemos, mesmo o que os nossos antepassados, um par de séculos atrás nem se atreviam a sonhar, deveria ser mais do que o preciso para conseguirmos alguma paz de espírito. Infelizmente, para nosso mal, parecemos condenados a uma permanente dúvida, inquietação e insegurança, só em raros instantes nos mostramos capazes de calar o temor e o desespero, fazer frente à adversidade, termos consciência do que, indivíduo ou cidadão, não somente podemos, mas é nosso dever, contribuir para que se realize um mundo próspero e muito mais justo.

Contudo, no instante em que soam as doze badaladas, das quais como por mágica, esperamos que façam esquecer dores e prenunciem boas-novas, vemo-nos devolvidos à condição dos nossos mais longínquos antepassados.

Não estaremos, como eles vestidos de peles; o calor que nos aquece não vem de toros a arder numa fogueira; não satisfazemos a fome rasgando com os dentes nacos de carne crua; não comunicamos aos urros e aos guinchos. Todavia, mesmo assim,  embora seja apenas num relâmpago, à meia-noite somos tomados pela angústia milenar da ignorância do que nos espera, e o temor de que essa angústia, impiedoso algoz, não tenha a caridade de ser fugaz, e no instante seguinte desapareça, mas regozije no poder que tem de alongar o nosso sofrimento. Aqui.

 

 

sábado, dezembro 30

Toujours le même

 

Deve ter sido depois da agitação do Maio de 1968 em Paris que me dei conta de que o mundo  - o Terceiro Mundo e o resto – estava cheio de vítimas. Vítimas da pobreza, vítimas da sociedade, vítimas dos patrões, vítimas da exploração colonialista, vítimas disto, disso, daquilo, do resto e mais alguma coisa.

Há cerca de uma década para cá o número de vítimas no mundo inteiro não pára de explodir: não há bicho careto que dum ou doutro modo não seja, não se sinta, ou não queira ser vítima, desde os pretos que se querem entre os brancos, dos brancos que prefeririam ser pretos, das mulheres que sofrem por não ser homens ou por terem de continuar a ser mulheres, e os homens idem, depois as vítimas das alterações climáticas, os que se sentem vítimas porque são jovens ou porque são anciãos, ou porque os aflige que haja no mundo quem coma carne e ainda não se possa obrigar o próximo a viver de verduras. E assim por diante num crescer que não pára.

O gosto de ser vítima, não importa por que motivo real ou imaginado, não vai mudar tão cedo, pela simples razão que é chique, dá status e, melhor ainda, é prova de lutar do lado bom da barricada.

Pobre de mim e daqueles que mesmo esforçando-se não conseguimos subir a esse patamar, porque equivale a estarmos fora do verdadeiro mundo.

 

sexta-feira, dezembro 29

quinta-feira, dezembro 28

quarta-feira, dezembro 27

segunda-feira, dezembro 25

Cancioneiro


 

domingo, dezembro 24

Votos de Boas-Festas

Estou quase certo que é um pensamento a que poucos escapam. Levado pela proximidade dos festejos do nascimento em Belém, andei mais dias do que o razoável a remoer a ideia, dizendo-me como, dentro do espírito natalício, seria agradável distribuir cumprimentos a uns quantos. Este e aquele, gente conhecida, anónimos que me divertem, com quem tenho aprendido, e por vezes me levam a rever a justeza de alguns dos meus cavalos de batalha. Fui anotando nomes e compondo uma lista, com a ideia de, a partir de anteontem até ao final do ano, diariamente assinalar alguém que, por razões várias, me parecesse merecer atenção.

Ainda bem que, acalmado o entusiasmo, e recordando Henry David Thoreau (1817-1862) autor que bastante contribuiu para a minha formação na adolescência, encontrei nele a razão de não levar a ideia por diante. Porque de facto, quem raio sou eu, que autoridade me dou para distribuir cumprimentos? Afirma esse meu antigo mentor: "Compliments and flattery oftenest excite my contempt by the pretension they imply; for who is he that assumes to flatter me? To compliment often implies an assumption of superiority in the complimenter. It is, in fact, a subtle detraction." (Devido à pretensão que implicam, os cumprimentos e a lisonja provocam muitas vezes o meu desdém; pois quem é esse que supõe poder lisonjear-me? Cumprimentar implica com frequência uma pretensão de superioridade por parte daquele que cumprimenta. É, de facto, um subtil desapreço).

E já agora uma anotação em rodapé: durante a sua vida Henry David Thoreau foi um quase desconhecido, mas como tantas vezes acontece, uma vez morto e enterrado descobriram ser ele uma das figuras mais relevantes da Literatura americana do século dezanove.

quarta-feira, dezembro 20

Pouco préstimo

 

Cedo gravaram em mim a ideia do pouco préstimo. "Não vales pra nada!" tornou-se o slogan  dos mais variados momentos, e eficiente lavagem do cérebro, pois se aplicava igualmente ao corriqueiro, ao acidental, às situações em que, tendo sido bom, poderia ter feito melhor, e mesmo àquelas em que se me censurava, ora o excesso de actividade, ora a preguiça.

Mas mal comecei a andar na vida pelo meu pé e a seguir a própria cabeça, pouco demorou a livrar-me do trambolho, caindo então no extremo de não dar ouvido a conselhos nem avisos, seguindo o que me parecia o bom caminho, o qual, nalgumas ocasiões, mostrou ser o do  precipício.

Mas das vezes que caí, não voltei a ouvir o anúncio da minha fraca utilidade, tão-pouco bateram palmas quando, à força de pulso, e rangendo os dentes, me viram sair dele.

Digo-me então que, ao fim e ao cabo, e porque a vida é luta, aquele "Não vales pra nada!" talvez faça sentido: além de provar que reparam em nós, fornece um adversário.