domingo, julho 30

O lacaio do Manhoso-Mor

 

No que respeita sujeitos desta espécie ponho um forte travão ao que me vai na cabeça, pois um descuido, ou se deixo que leve a melhor a fúria que me causa a idolatria deste imbecil, só a falta de forças da muita idade me impede de – como em Português arcaico se dizia -  passar a vias de facto.

Será caridade acudir-lhe depressa, porque só pode ser doença. E doença grave. Não das que levam de repente à cova, antes das que minam devagarinho o espírito, dando visões. Com má sorte terminam no desvario total da cabeça e encerramento na ala dos furiosos.

Semelhante caso de idolatria raro se vê. Comparados com ele, os Yesmen que orbitam em redor do Manhoso um degrau abaixo, e o incensam, sorriem quando ele sorri, parecem crianças de infantário a agradar à menina que os guarda.

Aos seus olhos o Manhoso-Mor nunca mente, nunca mentiu, jamais mentirá. Encarna a virtude e a justiça, o amor ao Povo – sim, com maiúscula. Para ele este novo Grande Timoneiro, além de nos ter salvo, é em carne e osso a certeza futura de dias felizes, do mágico sol que brilhará para todos nós e para sempre. São tantos os milagres que já lhe viu obrar, se mandasse ele fazia-o santo sem passar por beato.

Apresentam-se a este singular lacaio evidências em contrário dos actos e feitos do adorado? Cem evidências? Mil? Reage ele com um desdenhoso piparote dos dedos, e um ainda mais desdenhoso arreganhar dos beiços. Porque só um verme da espécie mais baixa recusa compreender as beneméritas intenções do Máximo. É preciso ser-se escória para desdenhar da grandeza dos seus planos, da argúcia que usa ao leme da caravela que, fôssemos melhores e mais agradecidos, há muito nos teria levado a bom porto.

É um caso e mete pena. Preferia que me fizesse zangar ou obrigasse a rir, mas não consigo.

 

sábado, julho 29

Fraca pinta

 

Esperávamos pelo eléctrico e tirei-o pela pinta. Telefonava, dizia a alguém num razoável inglês que se tinha atrasado, dei conta do saco de Viagens Abreu pousado no chão. Fechou o telemóvel e suspirou desconsolado: "Grandessíssima merda!"

Meti conversa. Fazia frio, o eléctrico demorava, estávamos defronte da Centraal Station onde há um bom café. Convidei-o e lá fomos.

O Alberto, solteiro, 36 anos, estudou História da Arte, Ciências da Comunicação, Sociologia, Relações Públicas, Inglês. Tudo pela rama, esperançado de descobrir uma paixão, desiludido de que nada o fizesse vibrar o bastante para terminar um curso.

Conta que já teve duas namoradas a sério, um T2 em Oeiras, um Audi que os pais lhe tinham dado. Esteve em Jerusalém e não gostou. De Londres também não. A falar verdade nem de Paris. A primeira namorada, muito apegada à família, não era de viagens, mas com a segunda visitou Cuba e o México, estiveram em Bali, no Nepal, na Índia, em Dubai, em Abu Dhabi. Num outro Verão andaram pela Turquia, a Geórgia, a Ucrânia - "Kiev! Espectacular! – a Rússia, a Polónia.

Oiço. Nada pergunto. Diz agora que a vida mudou muito, as coisas estão más, já não tem apartamento, carro, namorada. Faz dois meses que veio para Amsterdam, um bocadito à sorte. Um amigo holandês ajudou-o a encontrar  trabalho.

- Mas o trabalho… - ergue os braços, desconsolado.

Pergunto que trabalho era e ele, tristonho, fala de plantar flores em estufas, colher hortaliças, empacotar sementes.

- Pagava mal. Aquilo era mais para polacos. Andavam lá muitos.

Agora um rapaz de Aveiro ofereceu-lhe um quarto. Pode ficar o tempo que quiser, mas tudo é muito caro, e se não conseguir qualquer coisa terá de voltar. Um problema, porque os pais já cuidam dos três netos e da irmã divorciada.

- O de Aveiro trabalha nas limpezas. Só dá 12 euros por hora e é às noites. Acho que não posso. Ele próprio se queixa, diz que é pesado. Não sei, a minha ideia vai mais para quelquer coisa em  Relações Públicas, ou no ramo de viagens.

Pergunta o que penso, o que me parece, e eu respondo que se deite ao que vier. Limpeza, asilo de velhos, descargas, porteiro, moço de recados. Esqueça os estudos que não terminou e a vaidade que não pode ter. Ganhe o pão-nosso de cada dia. Dou-lhe em exemplo um amigo meu, brilhante doutor em Física, que quando, por falta de meios, a universidade inglesa onde trabalhava não lhe renovou o contrato, passou anos a lavar pratos e a fazer de jardineiro.

O Alberto não gostou de me ouvir, nem que lhe dissesse que o rapaz de Aveiro tem razão e está no bom caminho.

 

 

quinta-feira, julho 27

A tua hora

 

Não descubro volta a dar-lhe: falo com defuntos. Oiço vozes, tenho na cabeça todo um cinema onde repassam cenas minhas e da vida alheia, guiões que imaginei mas não deram filme, retalhos de querelas, momentos de euforia, tombos, meios desastres, benesses de última hora, precipícios evitados, outros onde ia a cair quando o anjo-da-guarda abriu as asas.

Trocando isto em miúdos, quer dizer que ando meio aborrecido e distanciado do mundo que me deveria ocupar, o dos vivos

É mau sinal, mas não lhe vejo remédio. Sei que abunda a inteligência, a beleza, a solidariedade. Sei que há lugares de eterna Primavera e gente que, dia após dia, tem razões de sorrir e cantar. Gente que reza nos templos, ama o semelhante e os animais, respeita os velhos, acode aos necessitados.

Assim é, mas longe, que aqui em redor pouco disso distingo, ou prefiro não ver. Fecho-me na solidão e chamo os defuntos, querendo saber deles se a viagem é longa, se chegando ao destino se prestam contas, se nos arrumam por tamanho, idade, raça ou nação, se de facto há por lá anjos a tocar harpas e trombetas.

Não julgues que desvario. A tua hora não chegou e para ti, felizmente, a palavra solidão é ainda vazia de sentido.

                                                                        


 

terça-feira, julho 25

Blá blá

 

 

É desoladora, sem conserto nem cura, a obstinação nacional da crítica injuriosa e do maldizer, palavreado pelo gosto do palavreado, botar figura seja de que modo for, a querer provar que se sabe da poda, que se tem voz na matéria, se é incontornável presença, se nasceu tribuno e detentor exclusivo do único bom caminho.
Cafés já não frequento, cortei na leitura de jornais, ponho de parte aqueles blogues onde, com as fortes certezas da vaidade, me explicam os males nacionais da economia e da política, os erros de quem manda, mandou, ou espera mandar.
Não há volta a dar-lhe e com aborrecida tristeza o repito: continuamos irremediavelmente os Alpedrinhas "das nossas terras palreiras da vanglória e do vinho". E para quê, senhoras e senhores? Para quê? O palavreado não convence, a ninguém engana, se alguma coisa prova é o mau fado de querer poder, mas empurrando para outros a responsabilidade e o esforço.