quarta-feira, março 31

Mudança

Passado um ano a tentar ver claro, a partir de hoje este blog deixa de fazer referência ao que se passa em relação ao carnaval da pandemia. O autor guarda para si próprio o que pensa da situação e do que sobre ela noticiam. Pode haver mais mortos menos mortos, mais infectados menos infectados, médicos e cientistas corruptos ou não, políticos idem, pessoalmente vou seguir o sábio dito de Samuel Goldwyn: Include me out.

A Declaração de Great Barrington

Como epidemiologistas de doenças infeciosas e cientistas da saúde pública, temos sérias preocupações sobre os impactos prejudiciais para a saúde física e mental das políticas prevalecentes da COVID-19, e recomendamos uma abordagem a que chamamos Proteção Focalizada.

Viemos tanto da esquerda como da direita, e de todo o mundo, e temos dedicado as nossas carreiras à proteção das pessoas. As atuais políticas de confinamento estão a produzir efeitos devastadores na saúde pública a curto e longo prazo. Os resultados (para citar alguns) incluem taxas mais baixas de vacinação infantil, agravamento dos prognósticos das doenças cardiovasculares, menos exames oncológicos e deterioração da saúde mental – levando a um maior excesso de mortalidade nos próximos anos, com a classe trabalhadora e os membros mais jovens da sociedade a carregar um fardo mais pesado. Manter os alunos fora da escola é uma grave injustiça.

Manter estas medidas em vigor até que uma vacina esteja disponível causará danos irreparáveis, com os mais desfavorecidos a serem desproporcionadamente prejudicados.

Felizmente, a nossa compreensão do vírus está a crescer. Sabemos que a vulnerabilidade à morte da COVID-19 é mil vezes maior nos idosos e doentes do que nos jovens. De facto, para as crianças, a COVID-19 é menos perigosa do que muitos outras doenças, incluindo a gripe.

À medida que a imunidade se desenvolve na população, o risco de infeção para todos – incluindo os vulneráveis – diminui. Sabemos que todas as populações acabarão por atingir a imunidade de grupo – ou seja, o ponto em que a taxa de novas infeções é estável – e que isto pode ser assistido por (mas não depende de) uma vacina. O nosso objectivo deve ser, portanto, minimizar a mortalidade e os danos sociais até atingirmos a imunidade de grupo.

A abordagem mais compassiva que equilibra os riscos e benefícios de alcançar a imunidade de grupo é permitir que aqueles que estão em risco mínimo de morte vivam normalmente a sua vida para construir imunidade ao vírus através da infeção natural, ao mesmo tempo que protege melhor aqueles que estão em maior risco. Chamamos a isto Proteção Focalizada.

A adoção de medidas para proteger os vulneráveis deve ser o objectivo central das respostas de saúde pública à COVID-19. A título de exemplo, os lares devem utilizar pessoal com imunidade adquirida e realizar testes frequentes a outro pessoal e a todos os visitantes. A rotação do pessoal deve ser minimizada. Os reformados que vivem em casa devem mandar entregar alimentos e outros bens essenciais ao seu domicílio. Quando possível, devem encontrar-se com membros da família no exterior e não no interior. Uma lista abrangente e detalhada de medidas, incluindo abordagens a famílias de várias gerações, pode ser implementada, e está bem dentro do âmbito e da capacidade dos profissionais de saúde pública.

Aqueles que não são vulneráveis devem ser imediatamente autorizados a retomar a vida normal. Medidas simples de higiene, tais como a lavagem das mãos e a permanência em casa quando estão doentes devem ser praticadas por todos para reduzir o limiar de imunidade de grupo. As escolas e universidades devem estar abertas ao ensino presencial. As atividades extracurriculares, como o desporto, devem ser retomadas. Os jovens adultos de baixo risco devem trabalhar normalmente, e não a partir de casa. Restaurantes e outras empresas devem ser abertos. As artes, música, desporto e outras atividades culturais devem ser retomadas. As pessoas que correm maior risco podem participar se o desejarem, enquanto a sociedade como um todo goza da proteção conferida aos vulneráveis por aqueles que acumularam imunidade de grupo.

Dr. Martin Kulldorff, professor de medicina na Universidade, um bioestatístico e epidemiologista especializado em deteção e monitorização de surtos de doenças infeciosas e avaliações de segurança de vacinas.

Dr. Sunetra Gupta, professora na Universidade de Oxford, uma epidemiologista especializada em imunologia, desenvolvimento de vacinas e modelação matemática de doenças infeciosas.

Dr. Jay Bhattacharya, professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Stanford, um médico, epidemiologista, economista da saúde e especialista em políticas de saúde pública focando-se em doenças infeciosas e populações vulneráveis.

Translation by Marta Gameiro Branco and David Amaral

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terça-feira, março 30

Olhar e não querer ver

"O principal indicador para avaliar o impacto de um surto epidémico é a mortalidade excessiva, de tal forma as epidemias são complexas e têm efeitos tão diversos na sociedade.

Desde meio de Fevereiro que a mortalidade excessiva desapareceu em Portugal (e, já agora, em quase todos os países que são aderentes do Euromomo, o sistema de vigilância da mortalidade europeu que é usado, por exemplo, para avaliar os efeitos dos surtos gripais anuais ou o efeito dos extremos meteorológicos) e desde meio de Março que está mesmo abaixo dos quartis dos dez anos anteriores, isto é, estamos com uma mortalidade global abaixo do que seria de esperar para esta época do ano.

Pois bem, com mortalidades abaixo do que seria de esperar para esta época do ano, com os serviços de saúde dentro do que é normal (acho extraordinário que se pretenda que o país pare para que os serviços de saúde consigam trabalhar normalmente durante um surto epidémico, como se não fosse normal os serviços de saúde trabalharem excepcionalmente durante períodos sanitários excepcionais), continuamos concentrados em olhar para a árvore covid em vez de olhar para a floresta social, que tem árvores covid, com certeza, mas tem muitas outras coisas para que é necessário olhar."Aqui

 

Carneirinhos

 

Este não é o admirável mundo novo de Orwell, com o seu Todo Poderoso Big Brother, este é um admirável mundo de rebanhos de mansos e superobedientes carneirinhos que tudo assusta, guiados por pastorzinhos de igual calibre, que a uma hora dizem e na seguinte desdizem, juram e logo esquecem o juramento, prometem melhorias, mas antes que essas cheguem prometem também que tudo ficará pior, de modo que é preciso ter medo, muito medo, pois sem medo não haverá salvação. E os desobedientes, os incrédulos, os teimosos, os estúpidos não incomodem nem aborreçam quem se quer salvar, fechem a boca, saiam do caminho.

Pobres diabos, esses que não acreditam, não querem ver nem ouvir que novas pandemias ameaçam a Humanidade, cada uma mais perigosa do que a anterior. Mas o dia há-de vir em que o bom senso levará a melhor, e se não se querem proteger a lei os protegerá, ninguém lhes vai pedir se aceitam a vacina: agarra-se-lhes o braço e espeta-se a agulha.

 

segunda-feira, março 29

O racismo nos corações

Para Paolo S. Damiani

Meu caro Paolo,

Ao contrário do que supões, não me preocupo por aí além com manifestações racistas, nem jamais me passou pela ideia abandonar a Holanda por temor do racismo. Como é sabido, e por mais abjectas que elas sejam, em democracia cada um deve ter a possibilidade de exprimir as suas opiniões. Fora isso, devo-te confessar que, talvez por só os ter visto na televisão, o espectáculo de um grupo de racistas a marchar com bandeiras e siglas, uivando, os rostos distorcidos pelo ódio, leva-me a sorrir. Porque, mau grado o seu gesticular marcial e a violência de que por vezes usam, esses são os ingénuos que saem à rua e se dão a conhecer. Também me sossega a evidência de que a polícia e a lei agem com eficácia contra os excessos, e que um bom número de cidadãos se acha suficiente mente imbuído dos valores democráticos. Desse lado, portanto, nada de aflições. Mas concordo contigo em que, no que toca a racismo, não há matizes, nem níveis, nem percentagens. Não é questão de racistas maus, racistas menos maus, meios racistas ou racistas quase bons. Nesse particular forçoso é passá-los todos pela mesma peneira. Por conseguinte, embora sejam variadas as razões do ódio racial, não vejo diferença entre o racista holandês ou alemão que quer os imigrantes expulsos, o francês que persegue os árabes, o racista lisboeta que agride os cabo-verdianos, o chinês que chama «cães» aos estrangeiros... E assim por diante, neste nosso desavindo mundo de bósnios, sérvios e croatas, de pretos, mulatos e brancos, judeus, muçulmanos, cristãos, até aos hutus e aos tutsis do Ruanda, onde os primeiros cortam os pés dos tutsis para lhes diminuir a altura, e estes cortam os tendões do pescoço dos hutus, obrigando-os a suportar a cabeça com as mãos, até que muito lenta e muito dolorosamente morrem. Em essência, pois, e como antes disse, não vejo diferença entre uns e outros. Mas enquanto aqui pelo pólder, ou na sua vizinhança, não houver ameaças de linchamento nem suspeita de se importarem hábitos africanos, eu continuarei a dormir como de costume: umas noites bem, outras noites inquieto. Dá-se o caso que se em certas alturas os perigos que acima menciono me parecem distantes e hipotéticos, outras há em que a campainha de alarme que todo o emigrante tem na cabeça se põe subitamente a retinir. É que no dia-a-dia ocorrem por vezes pequeninos nadas que são outros tantos sinais dos sentimentos de ódio, superioridade e desdém que fervem escondidos nos espíritos. Então, talvez porque, nas cinco décadas que aqui levo, nunca consegui libertar-me por inteiro da consciência de me saber em terra alheia, surge à minha frente a longa procissão dos fantasmas dos perigos reais e dos perigos imaginados. Nesses momentos de pouco adiantam as recomendações de serenidade e os confortos dos que me querem bem, pois por toda a parte vejo racistas, e mesmo nas observações mais neutras descubro resquícios de xenofobia. Felizmente essa paranóia é de pouca dura, e se numa ou noutra altura me afecta o sono, ainda me não perturbou o equilíbrio. Contudo, água mole em pedra dura... De facto,

mal tenho tempo de me refazer dum choque, que já outro me atordoa. Tempos atrás escutava eu por acaso na rádio um programa sobre a situação das mulheres holandesas casadas com estrangeiros. Assinalada, como de costume, a seriedade da pesquisa sociológica efectuada sobre o assunto, e debitadas as banalidades habituais sobre as diferenças de cultura, o pro-grama ia deslizando em repetições, até que a uma das participantes ocorreu fazer uma observação para aprofundar o debate. Segundo ela, e aqui cito-a literalmente, «uma holandesa que casa com um turco ou um português perde status. Também são gente, mas enfim... são inferiores».

Como português, como homem e pessoa, senti-me, sinto--me ainda, profundamente ofendido. Mas em vez de protestar calei-me, na certeza de que nenhuma autoridade aceitaria aminha queixa. E é isso que por vezes torna frustrante e amarga a situação do emigrante. Pela lei ou pela força, ele sempre se pode defender dos tarados que saem à rua com uniformes e bandeiras, mas nada o protegerá contra as formas piores da discriminação e do racismo: as que vivem escondidas nos corações.

 

In Mazagran