terça-feira, janeiro 31

Só as pernas

 

As pernas! O problema são as pernas, mas já lá vamos. Nalguns dias são sete, às vezes só os quatro mais fiéis, depois do almoço, hábito de anos, sentam-se no café à mesa junto da janela. Reformados, mas no viço dos setenta com força e saúde. Gostam da companhia e entretêm-se com a política, mexericos, futebol, a televisão de ontem, uma ou outra piada, o dominó. De vez em quando um não resiste e olha discretamente o relógio, mas os outros, se vêem, fingem não dar conta.

Ao quarto para as duas, pontual, ela vem do outro lado da praça, mas em vez de cortar a direito, o previsível, caminha ao longo dos prédios e só depois atravessa a placa, dando impressão de que se dirige ao café. Seguem-na até que dobra a esquina.

Houve uma altura em que se não continham – "Que pernas! Olha-me prá aquilo!" - mas depois qualquer coisa aconteceu e desde então calam-se,  só olham.

Terá vinte e poucos, o rosto não atrai, os olhos são mortiços. Mas que incríveis pernas! A elegância do passo! A saia que mal cobre as coxas!

Quando vão ao banco vêem-na numa secretária lá atrás, e um ou outro, com esperanças de adolescente, acontece andar por ali às cinco horas.

Às vezes encontram-na e fingem:

- Então? A dar uma volta?

- A dar uma volta.

 

 

segunda-feira, janeiro 30

¿Por qué no te callas?

 

Entra Abril e não falha, chega sempre o momento em que, durante o jantar, a avó arranja pretexto para repetir: "O dia dos meus anos é feriado nacional!"

O avô baixa os olhos, arrepanha os lábios, o resto da família sorri e aguarda a lista que infalivelmente segue: "aqueles inesquecíveis momentos!"; "a solidariedade palpável, a alegria"; "a chegada do Mário à Portela"; "Os nossos pais foram muito amigos"; "Na Almirante Reis, vocês não imaginam o que foi aquele 1° de Maio, o mar de gente!"

Fingem atenção e comem em silêncio, porque ela se irrita quando a interrompem. O episódio com o Urbano e a cena dos pára-quedistas precedem o momento em que encara a nora e suspira: "Foram anos muito felizes. Os melhores da minha vida."

Desta vez trocou-lhes as voltas. Ainda disse "O dia dos meus anos é feriado nacional!", mas em vez do relato costumeiro surpreendeu-os ao anunciar:

- Vou escrever as minhas memórias.

Fez-se o silêncio que precede as bombas, os terramotos, os grandes medos, as aparições da divindade. É que já ouviram em demasia o passado da avó e tremem do que poderá vir. O caso com o italiano, por exemplo. A amizade com a Natércia. O poema que o Cesariny lhe dedicou. A vez que no Café Gelo o Luís Pacheco lhe meteu a mão entre as pernas e depois escreveu uma história engraçada.

- Tenho tanto para contar!

O avô pede mais arroz doce e pensa no rei de Espanha, mas não se lembra bem como foi que ele disse ao Chávez da Venezuela.

domingo, janeiro 29

O caos da memória

 

Talvez seja uma questão de genética, verdade é que mal-grado a idade, a minha memória funciona sem que dela tenha razão para me preocupar, pois se mostra pronta a fornecer os dados, os nomes, as recordações que lhe peço.
Tenho, contudo, a suspeita de que esta memória é diferente daquela com que nasci. Não que negue serviço ou se tenha tornado lenta, mas como que se lhe acrescentou uma dimensão crítica que antes não possuía.
Assim, quando por vezes, saudosista, quero relembrar um momento, uma conversa, é como se no íntimo uma voz se interpusesse, perguntando ríspida que necessidade tenho desssas recordações, se me tornei incapaz de separar o importante do banal, se o recordar passou a ser um divertimento.

No caso do Amadeu talvez sim. Sempre quis parecer velho, e desde que se reformou exagera as características do ancião: caminha curvado, fala com vagar, cultiva uma surdez imaginária, oferece bons conselhos e gosta que se faça apelo à sua “vasta experiência.”
Dias atrás, sem que lho perguntasse, informou-me que já tem quase duzentas páginas das suas memórias, e quer terminá-las antes do Verão. Não disse mais, mas o comentário que aguardava não me ocorreu.
Curiosidade pelo seu opus também não tenho, e por isso ficamos num silêncio desagradável que ele finalmente quebrou, dizendo que se sente insatisfeito com o que fez. Em sua opinião um livro de memórias não deve ser apenas a listagem cronológica de recordações e acontecimentos, mas possuir sobretudo uma teia e um fio condutor. O que é que acho?
Sem convicção, só para evitar que o diálogo caísse no que lhe agrada e a mim aborrece, “o tom literário,” respondi-lhe que sim,  também acho. Mais tarde, recordando a conversa, digo-me que na vida, e nas memórias que sobre ela se escrevem, os fios condutores são ilusão. O caos, esse sim, é real e palpável.

 

sábado, janeiro 28

Para os incréus

 

 

Mostro-o porque lho contei e não acreditou, pois os tem melhores e de graça no quintal: ontem no meu supermercado em Amsterdam paguei € 3.27 por três pimentos.


 

sexta-feira, janeiro 27

Passatempo

 

Encomendaram-me uma lista. Pensei, repensei, remoí, nada saiu a contento. Aproveitando o meu cansaço a insónia divertiu-se a torturar-me com estas e outras tolices.

- Porque deixaram os homens de usar ceroulas?

- Quanto tempo dura a cópula dos gatos?

- Como explicar a uma estrangeira a diferença de tratamento entre senhora, dona, e senhora dona?

- É o que dizem: nos homens, o consumo excessivo de carne de frango faz crescer os peitos e perder o cabelo.

- Ainda haverá carros Panhard-Levassor?

- O Abel insistiu: só o Vouvray acompanha bem as ostras.

- Ponto, traço, ponto ponto traço... Morse... Marconi... ponto ponto, traço.

- Excursões de autocarro? Nunca mais.

- O Houaiss, o Aurélio, o Cândido de Figueiredo, o outro muito antigo.

- Já não se fabricam polainitos, pois não?

- Porque será que ela continua a escrever?

- "O meu primeiro Ómega!..." – não se cala com o relógio.

- Sapatos Manolo Blahnik nr. 48? E salto alto?

 

quinta-feira, janeiro 26

Encore

 



 

quarta-feira, janeiro 25

Old glory

                                             New York Herald Tribune   11.04.1998

terça-feira, janeiro 24

segunda-feira, janeiro 23

De facto grandes histórias

 

Comprado e lido em Janeiro de 1979, descoberto anteontem, durante numa tentativa de arrumar o que tende a ficar pelos cantos. Recomecei a ler as 709 páginas e tenho ideia de que também desta vez irei até ao fim.