quinta-feira, outubro 31

A rosa dos ventos


"Tenho amigos da esquerda e da direita." Frase recorrente, tantas vezes lida e ouvida que involuntariamente lhe esqueço o significado e me ponho a magicar no que subentende.
Garantias não dá, cabe na mesma lista daquela outra, "também tenho amigos homossexuais",  a ênfase do também a reforçar a existência de uma imaginária virtude.
É coisa do princípio do meu mundo, a arrelia que tenho com a chamada classe média portuguesa, corpo social amorfo que por baixo toca o povinho, e na outra ponta se quer fidalga, esquecendo, ou ignorando, que o verdadeiro brasão não se herda nem se compra, ganha-se.
A essa classe de gente, que vai do Zé da Mouca a D. Francisco de Rodrigães Penha d'Alembourg e Castedo, pouco me custaria fechar os olhos à vaidade, à jactância, ao egoísmo de que dá  mostras e provas, à infantilidade do comportamento, ao grotesco da sua necessidade de imitar.
O que não lhe perdoo é a alma de merceeiro, o espírito mercantil, a escassez de vergonha, a  ganância de comer a dois carrilhos, a habilidade de ter amigos em todos os pontos da rosa dos ventos.

quarta-feira, outubro 30

A força de vontade


Melhor ou pior, uns mais, outros menos, vivemos as histórias que nos contamos, as que mentimos, as que nos ajudam e, por vezes, in extremis  nos salvam.
Infeliz, o que vive sem imaginação, aquele que por horizonte e esperança só tem o que os olhos alcançam. Cego por dentro, tudo lhe parece fronteira, obstáculo, razão de desistência.
Pedro M. não é desses. A findar os cinquenta, trinta de casado, pai, avô, sem aflições ou queixas de maior, possui uma forte certeza: para alcançar basta querer.
Afirma-o em voz alta, e constantemente o pensa desde que conheceu a Rosalia, a extraordinária galega casada com o Abreu.
Entontece ao imaginar o alarve com ela na cama. Entontece na praia. Retesa os músculos, a impedir-se de lhe arrancar o biquíni. Entra no café e logo se dá conta: parece limalha atraída pelo íman.
- Buenos dias, Rosalia.
O desnecessário espanhol usa-o ele como mostra de ternura, e o beijo na face, um nadinha mais longo do que o preciso, é código fácil de decifrar .
Um dia atreve-se. Falarão de livros e vê-a já interessada, curiosa. Para que não fique arisca só depois dirá que o leu no Kamasutra. Nada de erótico, tem mais a ver com uma sensação de calor e alívio, um sentimento de bem-estar.
Tomará um ar sério, quase científico, para dizer que se aplica a unha do indicador num ponto muito preciso da nuca da outra pessoa e, fazendo um mínimo de pressão, raspa-se ligeiramente na vertical. Uns cinco centímetros. O resultado é incrível, o corpo parece levitar, alcança um estado de serenidade que excede de longe o dos exercícios de ioga. Tudo depende, mas por vezes…
Não decidiu como irá continuar, mas uma certeza tem.

segunda-feira, outubro 28

Entremez


- Lembra-se de mim?
- Com certeza.
Encaramo-nos. O sorriso, o silêncio, os gestos de fingida simpatia não escondem o embaraço em que ficamos.
Involuntariamente? Não. Maldosamente recordo uma fotografia que dele vi num jornal, em pé numa rocha, mão direita a segurar o seu último livro de poesia, o olhar perdido num horizonte de montanhas.
- Deve ter sido há dois anos.
- Creio que sim. O tempo passa muito depressa.
Ó Senhor do Céu e da Terra! Quantas vezes me digo que é melhor calar do que esconder o embaraço com banalidades tolas?
Mas não tenho emenda, e aí vou eu a elogiar-lhe a poesia que nunca li, o outro em mim rindo de me ver à procura de palavras condizentes à situação – telúrico, prosódia, alexandrino, estilística – e debitá-las com a patetice que cabe nos entremezes.
Felizmente, ele não me fica atrás: vejo-me comparado "aos Namoras, aos Aquilinos", a um para mim desconhecido Gomes, a um A.C. Nunes que "escreve lindamente sobre a nossa região".
Acode-me uma santa, que segura uma bandeja com copos e pergunta se quero tinto ou branco.

sexta-feira, outubro 18

Camelos

Tem lembrança de que foi muito antes do casamento, um livro de Torga, emprestado, um diário? o autor a contar que estivera em  Marrocos, e uma manhã, num mercado de camelos, presenciara a cópula de dromedários, no dizer dele um espectáculo revoltante. Com azedume, terminava o relato  afirmando que só a cópula humana excedia a daquelas bestas disformes em nojo e fealdade.
Tinha lido e esquecido. Deve ter sido surpresa para o João o não ser virgem, mas as experiências sexuais do passado de ambos era assunto em que não tocavam.
Viviam em mediania, amavam-se sem extremos, a rotina dava estabilidade, as noites de quarta e as manhãs de domingo garantiam uma maneira de consolo.
Três anos sem mudanças nem variações. Um domingo, ele com uma bruteza que lhe desconhecia, e aos urros, a bufar, a ter de agarrá-lo pelos pulsos para que a não magoasse, veio-lhe a lembrança do que tinha lido e desatara a rir.
- O que foi?
Não esqueceria aquele rosto quase a tocar o seu, a expressão raivosa, os dentes arreganhados como os de cão pronto a morder.
- Diz! – e os dedos apertaram-lhe o pescoço.
Estrebuchou, ele soltou-a, ficaram lado a lado em silêncio. Depois ainda o ouviu resmungar qualquer coisa antes do estrondo da porta do quarto de banho. Desde então só falam o preciso e dormem separados.


terça-feira, outubro 15

As Primeiras Coisas

(Clique)

APRESENTAÇÃO DE AS PRIMEIRAS COISAS, ROMANCE DE BRUNO VIEIRA AMARAL – FNAC CHIADO 14.10.2013
 
Boa-tarde.

Porque me conheço há muitos anos, o ver-me numa cerimónia para a qual me falta experiência, é bico-de-obra. E as quase quatro décadas que passei no ensino, portanto a falar para um público, em vez de ajudar, apenas aumentam o meu desconforto.
Numa sala de aula, ou num anfiteatro cheio de estudantes, a minha posição era de autoridade. Não vou exagerar, dizendo que me sinto aqui como o cristão atirado às feras, mas devo conceder que há lugares e situações em que sinto mais alívio.
É que a voz pode falhar, os óculos podem cair, às vezes um gesto resulta em caricatura, há o temor de não corresponder à expectativa. Levo também em conta a probabilidade de que, mesmo involuntariamente, alguém entre os presentes me encare com aquele modo de quem não espera nada de bom. Ou que sorria, e eu, pessimista por natureza, interprete esse sorriso como uma  advertência e comece a gaguejar.
Para até certo ponto diminuir os percalços decidi valer-me da experiência das mulheres de virtude, dos políticos, dos amantes, dos colibris e das religiões, escondendo a minha insegurança atrás do ritual.
Sendo uma forma de baptismo, a apresentação dum livro assemelha-se-lhe, pelo que, de modo a acatar os mandamentos da cerimónia, em contraponto à sobrepeliz e à estola do sacerdote, vesti eu fato, pus gravata.  
E assim paramentado, espera-se que de seguida augure bem ao recém-nascido, exalte as qualidades e o talento do progenitor, lhe assegure estrondoso êxito, profetize que de Coimbra à Guarda, de Bragança a Portimão, se irá falar de Bruno Vieira Amaral como a grande promessa da nossa literatura.
Aqui chegados, é provável que um ou outro dos presentes se diga que me vê a fazer o clássico frete.
Frete não é, sim consequência de uma situação mafiosa. Ligado pelo juramento do sangue à família Quetzal, amigo da Lúcia, do Francisco, do Bruno, das moças e moços que, para os lados de Benfica, mourejam a produzir livros, estou a cumprir os deveres de um soldado da Máfia.

Deixem que pare o gracejo e desminta o que disse, não vá algum espírito doentio tomar-me à letra.
Um intróito picaresco pode, às vezes, servir para desanuviar um ambiente, esconder uma insegurança. Neste caso é o disfarce de uma desculpa.
Conhecendo as minhas limitações, eu devia ter ouvido o bom-senso e recusado a incumbência, pois nem de longe posso pedir meças aos mandarins da crítica literária, que a esses basta uma linha para escancarar o fosso que os separa do amador.
Também encontram sempre o floreado que realça a qualidade de uma obra, são  enciclopédicos no conhecimento, prontos na referência aos clássicos.
Além disso manejam um vocabulário que, inacessível ao comum, torna difícil compreender se estão a separar o trigo do joio, a meter tudo no mesmo saco, ou a rir da ignorância alheia.
É facto que me senti tocado de emoção quando li o romance do Bruno, e também gostaria de sobre ele dizer coisas profundas, mas falta-me ciência. O que tenho de sobra é inveja. Pagaria bom dinheiro para, sobre As Primeiras Coisas, ser capaz de escrever frases deste género: "A escrita não vem aqui depois do vivido, enquanto representação de uma anterioridade… É um modo, uma declinação – do mal, do apodrecimento, do estranho… Trata-se de desconjuntar a sintaxe, de fazer dela um instrumento que tortura, destrói, enlouquece."

Suspeitem que ironizo, riam se quiserem, mas é assim que vale a pena.

Por azar não me chega a cabeça para essa concisa eloquência, nem sequer para outra de menor calibre. Mas uma vergonhosa confissão devo fazer: estive tentado a plagiar. Só por um triz me salvei de dizer que, em As Primeiras Coisas, "Não se trata propriamente de uma metaliteratura ou de uma inclinação textualista, mas uma experiência e um saber (do mal, da morte, da estranheza, da decomposição, dos restos, da ruína) que só podem ser ditos sob determinadas condições da palavra literária."
E paro as citações, estas chegam para que se avalie a desvantagem, melhor dizendo o prejuízo, que o meu destrambelhado apadrinhamento acarreta ao Bruno.

Acerca da escrita de As Primeiras Coisas, já José Mário Silva referiu a "altíssima qualidade da prosa",  superlativo de que, avisadamente, o crítico do Expresso não é pródigo, embora também não devam ser muitas as oportunidades de o empregar .
Todavia, devo dizer que não apreciei. Senti-me roubado, pois elogio semelhante  já eu tinha feito ao autor, logo que terminara a leitura do manuscrito.
Mas é assim a vida, há sempre quem nos corte o passo.
O romance do Bruno merecia, na verdade, uma apresentação em que, de par com a análise doutoral, se esmiuçasse a subtileza com que ele cria personagens, expõe sentimentos, desenvolve cenas, faz o leitor ressentir o incómodo do confronto com as próprias faltas e cobardias, as ocasiões em que fechamos os olhos em busca de descanso para a alma.
Mas a imparcialidade obriga a que também se lhe apontem falhas. O ambiente do romance desconcerta. A narrativa poderia, como é moda, e por certo ganhava em atractivo, se tivesse por pano de fundo a Mongólia, o Japão ou a Groenlândia, oferecendo assim, juntamente com o enredo, a mais-valia do exótico.
Abria-lhe também a ocasião de extrapolar para o sentimento religioso, as visões que ocorrem nos lugares mágicos, para ascender àqueles estados de espiritualidade que realçam a comunhão de sentimentos com os leitores e estes tanto apreciam.

Mas jovem, e provavelmente mal aconselhado, Bruno Vieira Amaral, pontapeia o leitor para a Margem Esquerda, a Outra Banda de antigamente. E estou certo que isso vai desagradar, talvez até lhe cause um imerecido dano.
Porque no Chiado, na Linha, nas Avenidas Novas - onde habita o grosso dos que lêem e dos que compram - o Bairro Amélia valerá apenas como um insólito longe de que o Tejo os separa e a névoa matinal agradavelmente oculta.
É para esse soturno território, na aparência tão próximo, na realidade mais afastado do que a província transmontana, que o Bruno nos força a olhar.
Aí se movimenta uma gente de extremos, social, económica e sentimentalmente, se não expulsa da civitas, de certeza empurrada para o extramuros, que é a versão moderna e legal do gueto.

Entrei no livro com algum incómodo, perturbado pelas reacções dos personagens, os seus medos, a para mim incompreensível violência, a estranha lógica das atitudes.
Mas graças ao métier do narrador e, sim, à "altíssima qualidade da prosa", entranhei-me no ambiente, vivi com eles, tornei-me um deles,  antes de ter chegado ao Epílogo mais de uma vez se me apertou a garganta.
Não só pela força da narrativa, pela sua humanidade, a gama de sentimentos, o tom original, o elegante e cuidado uso da nossa língua, mas pela emoção de, terminada a leitura, poder afirmar que acabava de ler um grande romance.
Que poderia dizê-lo com convicção e, honestamente, parafrasear o que Saramago, meio século atrás, escreveu sobre o primeiro romance de um outro noviço: "Não se espera e acontece."

Numa vida longa em anos e decepções literárias, há muito deixei de acreditar e esperar. Todavia, à maneira das crianças e dos que jogam na roleta, mantenho a ponta de esperança incoerente que me leva a ler aquela sumidade, o jovem que me dizem promissor, a dama que no céu das Letras brilha como a estrela do norte, mesmo o bobo que confunde a arte de escrever com as tropelias do palhaço.
Leio, desanimo, já nem sequer encolho os ombros.
Para mal de nós todos, a literatura portuguesa contemporânea é muito de modas, aborrece histórias, enredos e testemunhos, quer estados de alma, problemas de identidade, do ser, exames detalhados do umbigo.
Os seus cultores ouviram falar da riqueza do vocabulário e da melodia da prosa, mas essas antigualhas não têm cabimento no universo dinâmico dos Iphones, apps e Rock 'n Roll.
Tomando por certezas os próprios desejos e os malabarismos da psicologia de algibeira, concluem eles que, num mundo que supõem a deslizar na superficialidade, é desnecessário ser, basta parecer.
A precisão da sintaxe, o demorado carpinteirar das ideias e do enredo, a procura de ritmo e melodia, tudo isso lhes parece esbanjar tempo, certos de que, o que em catadupa lhes sai da cabecinha, tem mais autenticidade, espelha melhor o mundo em que vivemos.

Fernando Pessoa escreveu no Livro do Desassosse­go  que "A ruína da influência aristocrática criou uma atmosfera de brutalidade e de indiferença pelas artes, onde um medidor da forma não tem refúgio. Dói mais, cada vez mais, o contacto da alma com a vida. O esforço é cada vez mais doloroso, porque são cada vez mais odiosas as condições exteriores do esforço.
A ruína dos ideais clássicos fez de todos artistas possíveis e, portanto, maus artistas. Quando o critério da arte era a construção sólida, a observância cuidadosa de regras - poucos podiam tentar ser artistas, e grande parte desses são muito bons. Mas quando a arte passou de ser tida como criação, para passar a ser tida como expressão de sentimentos, cada qual podia ser artista, porque todos têm sentimentos."


Olhando em volta é impossível contradizer o poeta.
Desconhecendo a necessidade de regras, e ignorante de que a estética existe, nas últimas décadas o populus deitou-se a escrever, ciente de que os balbucios do ego são uma expressão de arte. Que dos espasmos da bebedeira, da anorexia, do incesto, da neurose, do amor aos cães, da cirurgia plástica, das sardinhas de escabeche - de tudo, afinal - mesmo os simples de espírito podem tirar um livro ou uma obra de arte. E os editores editam, os museus compram, o povo admira e regozija-se consigo próprio.
Proust e Joyce, tendo aberto com o seu génio, e a "corrente de consciência", um inesperado caminho aos sem-talento, são dos grandes da literatura, mas podem também contar-se entre os seus verdadeiros "malfeitores." Freud faz-lhes companhia, e Marx, que ajudou a criar as ilusões que sabemos, completa o quarteto.

Voltando a As Primeiras Coisas: embargou-se-me a garganta, como já disse. Não só por aquele final de antologia, mas pela certeza de que tinha lido obra moderna no melhor dos sentidos. E obra de primeira. Respeitosa dos cuidados que a língua merece, original na criação, grande na sua humanidade, espectacular na sarabanda de episódios, personagens e enredos.
Tal como Saramago, eu também não esperava, mas a minha satisfação é grande por ver que aconteceu, e porque, finalmente, me foi dado ler um romance em que descubro a continuação da linha do melhor e mais valioso da nossa literatura.
Nada de pequices de suposta vanguarda, elucubrações pedantes, arrebiques, linguagem falseada, arrebatamentos em Katamandu, sol poente nas Maldivas. Nada disso. Simplesmente dura, crua, genuína e pesada, aquela existência a que, por convenção, os que vivem em conforto chamam marginal.

Não se vai lá de visita, nem com as chamadas boas maneiras: anda-se por ali aos empurrões, aos trambolhões, aos vómitos, dando socos, gargalhadas incoerentes, sentindo medo, sendo enganado pela neutralidade de capítulos como o intitulado "Gastronomia", não evitando que o Bairro Amélia profundamente se nos entranhe, transforme e desoriente.
Mais de uma vez perdi o fôlego, como se estivesse a revisitar os momentos cinematográficos mais contundentes de Buñuel, Fellini, Scuola ou Tarantino.
Em As Primeiras Coisas quase todos os actores têm nome e são inesquecíveis, mas entre eles, Lito, o Rei-Sol negro, o Lito-Capone, merece destaque.
A história está na página 179. O leitor assusta-se, depois é-lhe dada uma ténue esperança de happy end, de salvamento, e vai por ali fora, sente a tensão crescer, a violência aumentar, uma fúria de tempestade. Mas nada o prepara para a cena com que termina. Cena estranha, poderosa, em que a humilhação, o medo, a violência, e uma peculiar forma de cortesia e loucura se dão as mãos.

Espero que acreditem se lhes disser que a literatura é a minha vida. Que nos juízos que sobre ela faço não entram amizades nem gentilezas, muito menos favores. Dependências não conheço, dívidas não tenho, nem submissões. Também podem estar certos de que sou avaro de qualificativos, e não me arrisco a fazê-los à ligeira.
Pesando as palavras, seguro de que não exagero, é invulgar a satisfação que tenho em poder dizer que Bruno Vieira Amaral é um grande escritor, e As Primeiras Coisas um grande livro.

 Creio que o ritual manda que, simbolicamente, eu ofereça agora ao autor o primeiro exemplar da sua obra. Mas peço ao Henrique Raposo que seja ele a fazê-lo, dando-me assim oportunidade para assinalar a amizade que os une e não desmerece da de Cosme e Damião.

Muito obrigado.