São casos dum passado tão longínquo que quando se fala neles é precisa
muita explicação, de modo que mesmo alguns que já são avós encolhem os ombros,
queixando-se que não interessa, a gente de então está no cemitério, é um bocadinho
cansativo ouvir recordar as alcunhas, os tiques e os parentescos de pessoas que
já eram velhas quando alguns dos presentes ainda gatinhavam, por isso mude-se o
disco, fale-se doutra coisa.
Porque assim é, e mesmo entre os de igual geração muitas vezes há
discordâncias e aborrecimentos, o Fernando Matias e eu ganhámos o hábito de no
último domingo de cada mês nos juntarmos a almoçar. Não incomodamos os outros e
sem termos de nos afligir com remoques ao nosso saudosismo, podemos falar de
tudo o que nos vem à memória, ao mesmo tempo que nos iludimos de que, revivendo
este e aquele episódio paramos o tempo, esquecemos a nossa velhice, voltamos a
ser os putos que subiam às árvores para roubar ninhos, as cerejas do vizinho ou
de longe, à fisga e com boa pontaria, quebravam os cântaros que as mulheres
deixavam no fontenário à espera de vez.
Todavia, numa ou noutra altura ambos nos damos conta de que a nossa ânsia
de recordar o passado, e fingir que assim o revivemos, mais não é do que a
tentativa inconsciente de querer
abrandar o mêdo que nos causa a rapidez com que os anos fogem. Rapidez
essa para a qual a vida não nos prepara, mantendo-nos primeiro na ilusão de que
há sempre um amanhã, para de súbito, como um cortinado que escondia o
inevitável e de repente se abre, nos pôr defronte do destino a que ninguém
escapa.
Na última vez que nos encontrámos surpreendeu-me o Matias com a sugestão, de
facto o pedido, de que talvez pudéssemos recordar um bocadito menos o passado,
mas falar também de assuntos que no presente nos afligem, como por exemplo...
Aguardei que continuasse, mas à maneira que as pessoas por vezes têm, de
parecer que se arrependem do que iam confessar, o meu camarada baixara os olhos,
tamborilava na mesa, pigarreou, até que por fim, num sussurro conseguiu dizer
nunca ter sido pessoa de crendices, mas desde há tempos e nas ocasiões mais inesperadas,
se sentia tomado pelo pânico de que a sua morte era iminente.
Claro que todos conhecemos esse medo, mas duma maneira ou doutra a maioria
das vezes conseguimos que não se torne uma desagradável mania. Foi o que lhe
recordei, mas longe estava de esperar a sua reacção:
- Pra te dizer a verdade a morte é o menos! O que já não aguento é ficar à
espera, não saber quando!