sábado, novembro 30

A cruz do António Costa


Diz ele e tem razão, porque devem ser milhares, talvez centenas de milhar se se contar o Brasil, todas as partes onde se fala português ou onde há muitos portugueses, e deixar de fora a Espanha e a América Latina, porque então de certeza há mais de um milhão de Antónios Costa.
O avô materno, um primo direito, um sobrinho também se chamam António Costa, e o nome nunca lhes foi incómodo, mas com ele bastou uma gracinha do Figueiredo numa tarde que vinham de assistir a um Porto Benfica, os outros riram às gargalhadas, acharam a piada tão boa que desde aí, cada vez que o Primeiro Ministro aparece na televisão ou lêem qualquer coisa sobre ele nos jornais, lá vem o gozo.
Há uns três anos que começaram com aquilo, e embora sempre tenha votado socialista diz que mo conta porque sabe que para confidências sou uma sepultura, mas verdade é que antes das últimas eleições chegou a rezar para que os socialistas perdessem e António Costa não voltasse ao governo, porque então de certeza deixariam de o aperrear.
Está longe de ser um sósia, todavia, e embora isso o aborreça, ele próprio concede que de certa maneira há semelhanças no aspecto físico de ambos, na estatura, nas feições, no cabelo grisalho, no modo de olhar, na maneira como às vezes se atrapalha com certas palavras, e até no jeito em que parece ter dificuldade em traçar as pernas. Mas uma vez chegava e sobrava, talvez até ele próprio se risse. Agora, francamente, dos amigos é que não esperava que continuassem com os ditos e as piadas, e a chacotear, como se tirem daí uma satisfação igual à daqueles sádicos que se disfarçam de engraçadinhos, mas no fundo querem mesmo magoar.
Se está no café quando o PM aparece na televisão e por acaso vai sair, porque tem de ir a qualquer lado, é gargalhada geral. “Ó Costa, espera aí, pá! Vem-nos cá explicar isto dos aumentos, porque a gente não entende! É prá frente ou pra trás?”
Fica aborrecido e às vezes vira-lhes as costas, mas confessa que tem horas em que se não fosse o ter nascido ali, por muito que lhe custasse seria capaz de deixar o bairro.
O caso é que não pode mudar a sua natureza, para ele as amizades são sagradas, por isso me pergunta se acho uma boa táctica que em vez de se aborrecer se faça desentendido, e ele próprio se junte aos gozadores e troce do PM.
Respondo-lhe francamente que não me parece bem. Será melhor que tome o PM como exemplo e use para com os compinchas as tácticas que o dito usa na governação: são discutíveis mas é ele quem ganha.

quinta-feira, novembro 28

Nótulas (39)


Gostaria, sim, mas só poucas vezes me foi dado manter daquelas relações com quem se aprende e discute em liberdade, espicaçam o espírito, nos desafiam a ser melhores, ir mais longe, alcançar mais alto. Hoje vivo na certeza de que esse tempo para mim passou, ninguém virá desafiar-me com ideias que só parecem novas aos que agora começam a tarimbar e se vão entretendo a inventar a pólvora, a descobrir as vantagens da roda e dos degraus de escada. É assim que para me consolar do que não virá deito mão de um interesse antigo, releio uma atrás doutra as biografias de autores que ainda hoje me maravilham.
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quarta-feira, novembro 27

Nótulas (38)



É diferente para cada um e tanto também aquilo que conta que nunca chegamos a acertar nem conseguimos sossego. No momento em que pensamos estar no bom caminho ou ter encontrado a ideia que satisfaz e sossega, logo de todos os lados nos assaltam as contradições, as oposições, a má-fé, a raiva, a mesquinhice, descobrimos que por vezes há no próximo um desmesurado estoque de malvadez, que o cavalheiro (ou a dama) que vem cordial de mão estendida, a vai usar também para espetar a faca no momento em que voltamos as costas.
Por vezes oiço dizer que é assim a vida, e talvez seja, mas nada me impede de sonhar com uma que não exija um constante alerta, nem me leve a encarar o semelhante como um bandalho.