Soubesse eu por onde começar. Pelo amor aos animais? Pela tolice? A arrogância? A atitude impassível do homem? Será que alguém vê nisto romantismo colonial e vai sonhar com os bons tempos?
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PS. a fotografia foi tirada no Congo Belga, talvez no início do séc. XX, e encontra-se no Koninklijk Museum voor Midden-Afrika em Tervueren (Bélgica).
"Mas de tudo o que eu via da janela, o que mais me encantava era o rio. Então a barra ainda era funda, entravam por ela enormes cargueiros, tantos que às vezes ficavam atracados dois a dois, desde o Lordelo até à ponte. E porque na margem de Gaia não havia cais, a carga era morosa e pitoresca. As pipas, os fardos, os caixotes, rolavam pelas pranchas ou levavam-nos os homens da estiva à cabeça para as barcaças, que iam acostar aos navios. Os guinchos funcionavam a vapor e ao içar a mercadoria ou quando a baixavam para os porões, saía deles silvando um longo penacho de fumo."
No porto de Stavoren, pitorescacidadezinha no norte da Holanda, um desses comboios que controlam o estado dos carris não parou no terminal, mas avançou por uma praceta, uma pista de bicicletas, um estacionamento, e cortou a meio uma loja.
Como não houve mortos nem feridos graves, só prejuízo material, toma-se o caso à ligeira e daria para rir.
Daria, mas não dá. É que todas as estações de rádio e televisão, a imprensa inteira, os comentários na Internet, assinalaram o importante detalhe de que o maquinista era italiano. Não importa saber se o homem adoeceu ou a locomotiva avariou , e é assim que, em pequeninas coisas, a xenofobia levanta a cabeça naqueles países onde a tolerância é ponto assente.
Um estudante quis saber de um velho rabino que ensinamentos se podiam tirar do Talmud, e este respondeu-lhe contando o caso dos dois homens que tinham caído numa chaminé.
- Um deles chegou ao fundo todo enfarruscado, enquanto o outro se mantinha limpo.
- É isso o que o Talmud nos ensina?
- Não – respondeu o rabino – o homem que se tinha sujado olhou para o outro e julgou que ele próprio estava limpo.
- É essa a lição do Talmud?
- Não. Ao reparar nas próprias mãos, e vendo-as enegrecidas, o homem soube que se tinha sujado.
- Esse é o ensinamento – concluiu o estudante.
- Não – disse o rabino.
- Mas então – quis saber o estudante – o que é que vou aprender com o Talmud?
- Nada aprenderás com o Talmud, se começares por acreditar que quando dois homens caem por uma chaminé abaixo só um deles se suja.
Até hoje apenas duas vezes estive num tribunal. Ambas como queixoso e de ambas saí de lá contente de que me tivessem dado razão. Mesmo assim, porém, talvez por inata desconfiança da justiça dos homens, o tribunal assusta-me. Passo de largo.
Infelizmente, num pesadelo que de longe a longe se repete, vejo-me no banco dos réus. Ao meu lado uma desconhecida de que não descortino o rosto. À minha frente um juiz. Deve haver público, porque oiço o sussurro de conversas. O ambiente é de impaciência, mas ninguém se move, a impressão que tenho é de que se espera a chegada de personagens que demoram.
Cada vez mais próximo, o som ritmado de soldados em marcha. Vozes de comando. O juiz faz um gesto com a mão e a mulher levanta-se, encara-me assustada, compreendo que também me devo levantar. O badalar de uma sineta anuncia a chegada do carrasco, vulto gigante, encapuchado, todo de preto.
A mulher cerra os olhos, curva-se como a oferecer o pescoço e é morta de um só golpe do garrote. Terá chegado a minha vez? O carrasco aproxima-se, os seus olhos brilham por detrás da máscara, mas de súbito o chão abre-se e despenhámo-nos ambos numa queda sem fim.
Nos instantes que seguem o acordar tenho a impressão muito viva de que fui condenado por algo que não fiz e desta vez escapei. Da próxima não garanto.
É verdade. Tenho medo dos tribunais. Pouco se me dá que sejam os da sociedade ou os do pesadelo.
Pois está quente o tempo, mas estes senhores, numa fotografia surripiada ao Time Magazine, desfilam em Londres, fazendo publicidade para uma empresa de telecomunicações. Achei graça, e também é facto que nada tenho para dizer a quem me bate à porta.
Digo-me que é do calor, mas não é. Nem da preguiça, nem do ladrar dos cães do vizinho, nem do melro que me acorda às quatro e meia da manhã, pontual como se tivesse relógio. Tão pouco é do romance que ando a ler, obra de um sueco de fama, história mal escrita e mal traduzida. O almoço foi bom, soube-me bem, dormi uma regalada sesta, por isso não é daí que vem o mal. Arrelias de momento não tenho, e as passadas há muito as esqueci. Tragédias que me toquem de perto, não vejo nenhuma. Que o tonto desenterre Simón José Antonio de la Santísima Trinidad Bolívar Palacios y Blanco não me aquenta nem arrefenta...
Donde virá, então, este extraordinário vazio da cabeça, estranho e invulgar como uma experiência extracorpórea, eu a olhar assustado para o espectro que se senta diante do computador e se dá uma ilusão de existência alinhavando dúzia e meia de palavras? Donde virá?