segunda-feira, outubro 31

Mentiras e verdades

 

Logo de miúdo me descobri uma excepcional capacidade para fantasiar. Chamavam-me mentiroso e era-o, na opinião dos que não sabiam melhor, nem desejavam outras vivências, conhecer outros mundos.
Na realidade não mentia, inventava ambientes coloridos, paisagens diferentes, liberdade no ar, as praias que nunca veria. Mais tarde, com a escrita, descobri que a mentira se chamava ficção.
Curiosamente, quanto mais ficciono, mais frequente se torna a pergunta: “Oiça lá! Aquilo aconteceu mesmo, não aconteceu?”
Embora a contragosto, mas para satisfazer o desejo implícito na curiosidade, digo-lhes que sim, aconteceu. E a ficção torna-se verdade.

 

domingo, outubro 30

Só medos e ameaças

 

­­­O André diz, eu repito, e como pertencemos ambos à geração anterior à descoberta da penicilina, fazemos coro nas lamentações, e os nossos encontros ao sábado, um ritual, são marcados pela mesma tónica: por um lado, o espanto que nos causa tanta mudança, pelo outro o modo dos mais novos, que  parecem ter do mundo uma visão peculiar, e nos demonstram que lhes falta bom-senso.

Agitam-se eles com o alarme de que nada menos de 1 milhão de espécies corre o risco de desaparecer, causando irremediáveis danos ao planeta, à espécie humana, aos infindos e frágeis equilíbrios de que  raro nos damos conta, mas os cientistas estudam, concluindo que são de assustar as probabilidades de que o planeta, e nós com ele, acabemos mal.

Como se isso não bastasse vêm-nos com os polos a derreter, para não falarmos de como à força de tão desmesurado aquecimento a Terra se aparenta a uma panela de pressão prestes a rebentar.

Como já demasiadas vezes aturámos os sermões dos profetas do Apocalipse, é que o André e eu, com a  ingenuidade de que os idosos têm o privilégio, nos perguntamos o que terá acontecido na cabeça dos nossos semelhantes, para que tanto entusiasmo dediquem ao medo, e se assanhem contra os raros que, sem subsídio ou agenda política, investigam os vários pontos de vista.

Infelizmente a moda manda, e assim o proveito e a fama vão para os pastores do rebanho, que às vezes parecem mal saídos dos cueiros, mas tudo sabem da poluição, do calor no Ártico, do fim dos lagartos na Nova-Guiné e avisam, de dedo em riste, que a salvação do planeta e a nossa está nas eólicas e na fé vegan, razão de sobra para que nos apressemos a ver a luz e a seguir a sua crença.

É então que nós dois, com muitos anos e vivências de sobra, nos perguntamos: que raio de gente é esta, sem esperança, só a falar de medos e ameaças?

 

sábado, outubro 29

Bangkok

 

Coisa de vinte anos atrás, quando numa tarde quente de Agosto entrei no Sheraton, em Lisboa, surpreendeu-me a frescura do ar condicionado e a agitação do ambiente. No hall havia um grande número de mulheres, e os homens presentes pareciam executar em torno delas um bailado sem ritmo nem fito certo.
O recepcionista ia entregar-me a ficha do quarto quando uma senhora de idade o interrompeu:
- Ó senhor Abílio, isto é congresso?
- Não, Dona Maria, são tudo hóspedes. O hotel está um bocadinho cheio.
- Hóspedes uma gaita! - replicou a senhora com inesperada vivacidade. E voltando-se para mim:
- Isto está a ficar como Bangkok. Conhece Bangkok?
- Não conheço, mas faço ideia.
No ascensor - por simples acaso íamos ambos para o mesmo andar - ela achou uma pouca-vergonha que um hotel de luxo se abandalhasse assim. Porque se eu não sabia ficava a saber, aquilo eram tudo mulheres da vida.
Fiz-me surpreso e retorqui que não. Uma ou outra, talvez, mas a maioria via-se-lhes pela cara que eram senhoras de respeito.
Ela riu: - Pobre de si se ainda vai pelas caras! Senhoras de respeito uma fava. As que parecem sérias são as do part-time.
Achei exagero, mas não a contradisse. Mais tarde, quando voltei a descer, notei que de facto no hall havia um ambiente de extrema tensão erótica, menos devido aos ademanes das três ou quatro prostitutas de serviço, do que à indefinível electricidade que parecia faiscar entre os presentes.
Nenhum gesto era inocente, nos olhares havia espectativa, liam-se nos rostos desejos insanos, sentia-se que a virtude e a fidelidade, mesmo a decência, estavam ali por um fio.
- É do calor - disse-me o porteiro, habituado a ler pensamentos.