quarta-feira, junho 30

Quando a alma se despede

Acordo a meio da noite sufocado de calor. Saio e vou debruçar-me na varanda. Na maioria dos prédios há luz. Um homem e uma mulher fumam sentados na pequena ponte sobre o canal. Na ponta dum muro um gato olha pensativo para a água. De vez em quando ouve-se ao longe o ruído dos comboios de mercadorias na linha Amesterdão-Utreque.

Éramos jovens, fáceis de entusiasmar, os filmes de Ingmar Bergman pareciam-nos o sumo do que se realizava na arte cinematográfica. Ao fim de cada sessão corríamos ao café a discutir, a analisar, a incensar o trabalho do realizador. Mesmo no corriqueiro ou no acidental dos seus filmes adivinhávamos intenções geniais. Quanto mais estáticas eram as cenas mais elas nos pareciam prenhes de significado, o nosso apreço não tinha limites quando um personagem, de costas para os espectadores, ficava minutos imóvel a olhar para um horizonte cinzento e vazio.

Gradualmente, porém, fui-me perguntando se uma tão incondicional admiração não era igual à dos súbditos que aplaudiam a passagem do rei nu. A vinda ao de cima do meu senso crítico resultou num apreço mais moderado pelo cineasta sueco, e num frequente franzir de sobrolho quando os meus amigos insistiam em me explicar o simbolismo hermético de certas cenas.

Assim, já não sei em que filme, no momento em que um personagem moribundo olhava fixamente o céu, ouvia-se ao longe o ruído dum combóio e, muito ténue, o silvo de uma locomotiva a vapor.

Eles afirmavam que se tratava de uma subtileza sonora, usada por Bergman para assinalar o momento em que a alma se despegava do corpo. Eu retorquia que na filmagem da cena, em exteriores, a gravação do ruído tinha sido acidental. Eles que não, eu que sim, até que de tão excitados tínhamos passado dos gritos aos insultos.

O gato saltou do muro, o homem e a mulher continuam a fumar sentados na ponte. A aragem virou e o matraquear dos comboios na linha Amesterdão-Utreque tornou-se quase indistinto. É pena que as locomotivas não sejam a vapor e tenham deixado de apitar.

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28.01.2001

terça-feira, junho 29

São dferenças

Faz muitos muitos anos éramos três a almoçar em Lisboa. Eles escritores de nomeada, eu o pexote que ambos tinham convidado por simpatia, e respeitosamente mudo embasbacava com aquela esgrima de ideias dobre a política, a história, a religião, a literatura, as mulheres, a arte…

Opunham-se em quase tudo e eu tive a impressão de que, só para me dar um exemplo de cortesia, é que de vez em quando cediam num ponto ou aceitavam uma hipótese.

Era evidente que se respeitavam, mas o facto de um viver em Paris e ser um verdadeiro e brilhante homme du monde, e o outro viver ensimesmado numa sonolenta cidade provinciana, agudizava a diferença das suas maneiras de ver.

A certo ponto, a propósito de uma observação sobre Salazar, o homem do mundo ridicularizou com verve a onda de patriotismo em que Portugal parecia ter mergulhado.

Abespinhando, empunhando o talher, o provinciano quase se ergueu da cadeira:

- Saiba você que nunca eu aceitaria viver separado da Pátria! Que nunca trocaria o nosso Portuga pelo estrangeiro! Digo-lhe mais: é tal o medo que tenho de me desnacionalizar que nunca atravessei a fronteira!

O homem de Paris segurou o queixo num gesto cansado e depois, enquanto o outro arfava de emoção, lançou-lhe friamente:

- Você não tem medo nenhum de se desnacionalizar. Do que você em medo é que, indo ao estrangeiro, lhe confirmem que além de mau poeta nem sequer sabe comer com faca e garfo.

segunda-feira, junho 28

Mandamentos

Comparados aos da sharia islâmica os mandamentos da doutrina cristão são de inegável doçura: nada de apedrejamentos, amputações, forcas ou crueldades medievais. No mundo dito ocidental podemos, com algum orgulho, mostrar aos nossos irmãos árabes – se eles ainda não se deram conta – que, embora sem termos chegado a uma verdadeira igualdade dos sexos, entre nós, regra geral, as mulheres não temem ser consideradas como simples animais de carga ou aparelho reprodutor.

Claro que há aqueles casos de violência doméstica em que nem os vizinhos gostam de se intrometer, nem a Polícia se apressa a acudir. E em consequência da igualdade antes mencionada, acontece também que já não são apenas as mulheres a fugir espavoridas do lar: aqui na Holanda criaram-se os primeiros refúgios destinados aos homens que se querem pôr a salvo da violência física e/ou da crueldade mental das suas caras-metades.

Esta sensível medida demorará certamente a ser adoptada no Arkansas, o estado de que Bill Clinton foi governador antes de chegar a presidente dos E.U.A: a legislação estadual estabelece que o marido só será punido por bater na esposa se o fizer mais de uma vez por  mês.

21.03.2004