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São muitas e vontade nunca me falta, as ocasiões em que me sinto perto de mandar tudo às favas, perder as estribeiras, pôr fim à aparência de sujeito bem-educado, paciente e de sorriso pronto. O pachorra que aguenta a impertinência de A, a maluquice de B, o ar pomposo de C, a ignorância deste, a verborreia daquele, a autoestima do outro, a fingida humildade do santinho, a quem e a sério, o que apetecia era dar um pontapé, mas dos bem acertados, e naquela parte que D. Aninhas, senhora de boa família, definia como sendo “onde as costas acabam e as pernas começam”.
O caraças é que o peso dos anos - os meus – de quase tudo faz empecilho, obriga a cautelas, lembra e relembra que não é questão de poder muscular, mas o ukaze de que me mostre conforme à imagem que eles de mim criam, as reacções que esperam, a quase certeza de que correspondo ao clichê: o papa-açorda a quem, depois de tantos anos de estranja, se desculpa que não compreenda tudo muito bem, e se tenha de lhe explicar que isto está muito mudado, mas mesmo muito.
Sei eu que vão para o Algarve os mais ricos do mundo? E os mais famosos? Que se calhar passeiam por lá mais milionários do que na Suíça? Já ouvi falar da Taylor Swift? Que ela esteve em Lisboa, e foi a única vez que, com o entusiasmo do público, se sentiu o chão tremer como num terramoto?
Sorrio, arregalo os olhos e aceno que sim, manso que nem um cordeirinho. Se não me acautelar deixo escorrer a baba, enquanto nos pordentros tudo é turbulência e mau modo, desejo teatral de mocadas, berros, insultos. Farto deles, de mim próprio, mundo que julguei o meu, mas agora vejo com óculos que tudo transmudam e transformam, deixando-me às aranhas em busca da realidade. A do meu antigamente.
Deve ter passado os setenta, mas está longe da velhice, é daquelas pessoas que nas pequenas comunidades parecem existir para representar o papel de alguém que se reconhece na rua ou no café, mas de quem pouco se sabe.
É o velhote do cãozito amarelo, parece que mora para os lados do castelo, um ou outro lembra-se de que tinha duas filhas, mas isso há vidas. Do que todos sabem é que não tem íntimos nem dá confiança. Bom-dia, boa-tarde, um vago aceno, um meneio da cabeça, e de súbito parece esfumar-se, esquecem-no antes de virar a esquina.
Pelas aparências deve ter boa reforma, mas ideia nenhuma de quanto será, donde lhe vem, que profissão foi a sua, por que franças andou.
Felizmente, mordido por um alsácia teve o cãozito de ser levado à veterinária. E essa, boa na profissão e excepcional nas relações humanas, “descascou” o senhor, assim se sabe agora que há muito é viúvo, trabalhou anos no Iraque de Sadam Hussein, no Dubai, nos “petróleos” da Venezuela.
Mas o passado passou, hoje só se interessa pelo seu “fiel amigo”, e o jeito que sempre teve para a pintura. Não a clássica, morosa, com regras e estilos, mas à sua maneira, absolutamente livre e original.
Na mesa coloca em desalinho umas quantas latas de tintas de tons diferentes. Montado o cavalete, agarra três garfos, mergulha-os numa e noutra lata, esfrega-os depois na tela, fazendo os movimentos do que sente como inspiração.
Certas ocasiões “uma voz” diz-lhe que esfregue o dedo em certas manchas, do que resulta um inesperado sentimento de bem-estar.
- Na televisão e nos jornais – confessou ele à veterinária – há muitos a queixar-se de serem bi-popular assim, bi-popular assado, mas são raros os verdadeiros bi-populares, os que como eu têm a cabeça mais que cheia.
Sempre é melhor procurar saber, investigar, comparar, do que engolir as patranhas que nos querem impingir os senhores que ainda mandam. Aqui
A Telmo Azevedo Fernandes devo mais do que o abraço que ainda não lhe consegui dar. Com ele, muito mais jovem, tenho aprendido e lhe estou grato. O abraço será dado quando e se Deus quiser. De momento, mais uma vez, também ele made my day. Aqui