A obrigação de ir ao entêrro
justificava o fato escuro, tinha-o despendurado do roupeiro e ficara de boca
aberta, a duvidar que lhe pertencesse, mas finalmente vestiu-o para ver se
ainda servia e parou a olhar o espelho, descrente
que os anos o tivessem mudado de tal forma e que de tão abonado o fato fizesse
dele um espantalho.
Fora de questão o dar-se em
espectáculo ou que o julgassem menos respeitoso ao vê-lo aparecer desleixado
como andava em casa, e ali ficara, certo que não iria experimentar os outros
fatos, porque havia muito que os não tinha vestido, o resultado seria o mesmo.
Foi então que lhe ocorreu que
com os regulamentos de agora talvez nem pudesse ir, os funerais são só para a
família, e com um gesto de desânimo despendurou do roupeiro os outros que lá tinha,
encheu com eles três sacos grandes dos do lixo.
Olhou para a roupa que restava,
abriu uma gaveta aqui e ali, estranhando tantas camisas, gravatas, pares de
sapatos de que não se lembrava, hesitante se devia guardar o preciso e dar ao
resto igual destino, ao mesmo tempo a temer que se o fizesse talvez não parasse,
pois há muito aprendeu como são supérfluas tantas coisas que o rodeiam, a ponto
de por vezes se perguntar o sentido de uma existência como a sua, sem parentes
próximos, os vizinhos gente que desconhece, os amigos espalhados por longe,
tendo por magro conforto a rotina dos dias que se habituou a aceitar com uma passividade
de penitenciário, indiferente se são de chuva ou sol.
Tem consciência de que nunca foi
o que se chama um optimista, mas o destino também não lhe poupou contratempos e
pode dar cartas em matéria de solidão. Contudo, por orgulho ou teimosia nunca
virou a cara às dificuldades, nem vai cair na armadilha de deixar que o
assustem com as ameaças e os perigos que dizem são de agora, mas pouco diferem
dos que tem conhecido a vida inteira. Diferente e aterrador, o que a ele tira o
sono é o mêdo, esse sim, que nestes últimos meses vê ir aumentando e, uma vez generalizado,
de pouco precisa para dar razão ao provérbio homo homini lupus – o homem
é um lobo para o seu semelhante.
Finge que não repara, mas nota-o
quando vai ao supermercado, a maneira como uns o olham amedrontados, a ver nele
a ameaça de um perigo mortal e outros se afastam com a pressa de quem teme uma
bomba-relógio.
Este perigo há-de passar e
outros hão-de aparecer, sempre assim foi, mas talvez a tragédia maior esteja no
medo, que quando não pára de crescer torna impossível a vida em sociedade.