sábado, outubro 31

Projectos e desafios

Há estatísticas, para tudo as há, mas falta-me paciência para ir procurá-las, e neste caso basta-me o que oiço. Vem isto de há muito, mas nesse tempo a fenómeno afligia-me menos e deitava-o eu à conta da simplicidade da vida de então, do analfabetismo e das condições em que se vivia. Mas hoje tudo são belas escolas, rádios, televisões, montes de jornais, montanhas de revistas e, contudo, ora me faz rir, ora me assusta, a pobreza do vocabulário com que, para falar à moderna, as pessoas interagem.

Anunciando talvez o futuro, já me aconteceu noutro país ter tido estudantes que quase exclusivamente se exprimiam de forma não verbal, com Ughs e Achs, Pffs, Sshhit, Buhh, mas pelo que observo há por aqui gente de estudos cuja linguagem me leva a temer que aquilo que dizem, e como o dizem, traduz um assustador vazio. Todos se afirmam envolvidos em projectos que são um verdadeiro desafio; têm trajectos; começam e terminam as frases com um "Pronto!". O riso tanto lhes serve para exprimir aceitação como discordância, e com "gajo", "coisa", "foda-se!", "bordamerda" e que tais, escondem mal os buracos do raciocínio.

Recordo ter lido que o falante se serve em média de dois mil vocábulos, mas isso foi nos longes do século passado. Hoje, avaliando pelo que oiço, pergunto-me se chegarão aos duzentos.

sexta-feira, outubro 30

Quando tudo termina

Uma tarde, a rir, no mesmo café onde tudo tinha começado, fizeram contas e discordaram. Ela dizia que fora em Outubro, fazia exactamente dois anos. Ele segurou-lhe as mãos e, paciente, pediu que recordasse. Tinha sido no começo de Dezembro, quando o Sérgio... Que não. E não lhe falasse no Sérgio. Estava absolutamente certa, até se lembrava do que tinha vestido e do casaco, aquele de alpaca com uma gola de raposa que...

Cedeu. Ouvia-a, sorria-lhe, acenava paciente que sim, mas o pensamento disparara. Ligação invulgar, clandestina, perigosa, apaixonante, a deles, cada um descobrindo no outro como que a metade que lhe faltara. E agora... Não, não, era ridículo, não era possível que semelhante ninharia... Lembras-te do casaco? Aquelas botas que eu tinha comprado, de Pollini, as de verniz com um tacão...

À medida que, entusiasmada, ela tentava convencê-lo, sentia crescer um sentimento de quase pânico, fundo, incompreensível, o acordar de uma hipnose.

Voltou a segurar-lhe as mãos. Sim, de facto devia ter sido em Outubro. Depois falaram doutras coisas e quando ela, com um sorriso malicioso, lembrou o encontro combinado para o fim-de-semana, teve um momento de hesitação. Era pena, devia ter-lho dito antes, mas tinham de adiar. Não deu razões, nem ela quis saber, o acordo tácito que tinham desde o começo.

Despediram-se com carinho e ainda se veriam uns meses, o sexo continuaria agradável para ambos, mas nunca lhe diria que, inexplicavelmente, por uma ninharia, naquela tarde tudo terminara.

quinta-feira, outubro 29

Compreensão


Que ninguém se aflija ou irrite, se zangue, comece com insultos e a chamar--me nomes, pois como todos (todos?) os meus semelhantes quero ser um poço de compreensão. Creio até que exagero no anseio de compreender. Que alguém me explique as suas razões e logo eu as subordino às minhas, um nada basta para que me flagele pela desastrada maneira que tenho de rir em vez de, sossegadamente, me imaginar na pele alheia.

Costumo repetir aquela frase de samba que diz "pau que nasce torto fica torto", e como nasci torto não é agora que vou mudar.

Mas oiça, chegue cá, não é preciso berrarmos estas coisas. O homem é holandês, tem sessenta e oito anos, chama-se Jan Jansen e goza de fama como designer de sapatos. Quando estou em Amsterdam, ele tem lá loja, se me acontece encontrá-lo desvio o olhar, ponho cara de pau. O que é que você faria? Estou certo de que não ia rir. Fico contente. Prova que também compreende.

quarta-feira, outubro 28

Terras do Demo


Preocupado com a minha segurança ou transtornado da memória, pois com frequência repete a pergunta, o vizinho quer saber se tenho pistola. Respondo que sim, mostro-lhe a Mauser que foi de meu pai, e falamos do tempo.

Não creio ter por aqui inimigos capazes de me esperarem de bacamarte apontado, mas em meios pequenos nunca se sabe. São neles muitas as frustrações, as raivas escondidas, as invejas, os ódios que fervilham sob as cortesias de Nosso Senhor o acompanhe, boas noites nos dê Deus.


Tenho eu em França um amigo que herdou uns hectares de boa vinha no Vouvray e que, depois de trinta anos de trabalho duro, conseguiu tornar-se um reputado éleveur de vinhos de qualidade.

Vive ele com a mulher, o filho e a nora num povoado que, pela força das circunstâncias, foi perdendo gente e onde hoje há pouco mais de uma dúzia de casas habitadas. Vive-se ali em paz, as pessoas ajudam-se, visitam-se, festejam aniversários, trocam presentes, conhecem-se desde a infância, quem por lá passa recebe a impressão de penetrar num modelo de bucolismo.

Tempos atrás foi um golpe num pneu do carro. Parecia de navalha, mas o meu amigo inclinou-se que deveria ter sido coisa acidental. Morreram-se-lhe dois cavalos e a seguir o cão. Depois, uma manhã, para seu grande susto, que aquilo era a sério, deu com as rodas fronteiras do tractor a abanar. Tinham-nas desaparafusado.

Desde então dá tratos à cabeça, perguntando-se quem terá sido e por que razão. Uma dúzia de casas, meia centena de pessoas se tanto, todos conhecidos e amigos...

Quando conversámos sobre o caso estive vai não vai para fazer como o meu vizinho e perguntar-lhe se tinha pistola, mas ele, como que adivinhando a sugestão, sorriu e disse, encolhendo os ombros:

- Meios pequenos, mon cher!... Terras do Demo!

terça-feira, outubro 27

"Ernestina"


Contá-las não adianta, porque já foram muitas, mais de cinquenta, as vezes que me vi a receber livros meus, mas sensação intensa como a de segurar nas mãos o primeiro, não se repete. Há, contudo, ocasiões especiais. Ter ontem recebido aqui, onde tudo aconteceu, uma tão cuidada edição na minha língua do livro que, entre todos os que escrevi, me é o mais caro, causou algo muito próximo do minuto de silêncio.

Nesse minuto, que foi longo e solene, desfilaram os mortos do meu passado e senti-me, se é possível dizê-lo assim, humildemente orgulhoso de lhes pertencer.