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Abstendo de sentimentos, emoções, antipatias ou simpatias
pessoais, esforçando-me por me limitar
ao potencial que para mim teriam se se tratasse de personagens de romance,
entre as figuras políticas que ao longo de muitos anos tenho acompanhado de
perto, duas - o ex-primeiro ministro
José Sócrates e Desi Bouterse, presidente da república do Suriname - ressaltam
dentre a mediania, o cinzento e a banalidade dos que, seja em Bruxelas, na
Mongólia ou no Haiti, se envolvem na arte de governar.
Não importam aqui virtudes ou defeitos, simplesmente o
que com elas se poderia fazer na criação romanesca. São personagens com drama, excessivos
em muitos aspectos do seu comportamento, mas dotados do carisma que exerce
sobre massas de cidadãos o fascínio que os leva a deitar água no vinho das convicções
e aceitar o que então lhes parece um mal menor.
Desi Bouterse (1945) nascido no Suriname, que até 1975 era
colónia holandesa, começou como sargento, liderou o golpe que instaurou a
ditadura militar (1980-1991), tomou parte no massacre de 1982 em que foram
liquidados quinze eminentes opositores ao regime militar.
Em 2000 foi condenado por um tribunal holandês a onze
anos de prisão pelo tráfico de 474 quilos de cocaína; há contra ele um mandado internacional
de captura por tráfico de droga; o seu filho foi condenado em Miami a uma longa
pena de prisão pelo mesmo crime. Presidente do Suriname desde 2010, foi
reeleito este ano para um segundo mandato. Tem opositores, mas não suficientes
para contrabalançar a enorme popularidade de que goza.
José Sócrates chamou-me pela primeira vez a atenção em
2005 durante os debates com Santana Lopes. Disse para com os meus botões, este
tem garra e carisma, é atentar nele. E desde então assim tenho feito,
acompanhando os altos e baixos da sua carreira, a resiliência, aquela capacidade
de enfrentar que recorda o truculento Adhemar de Barros, governador do estado
de São Paulo, que bradava na televisão, "Eu roubo, mas faço!"
Há suspeitas, há boatos, há manchetes nos jornais, a
Justiça ainda não se pronunciou, até mais ver presume-se inocente. De qualquer
modo tire-se-lhe o chapéu: depois de semelhante queda continuar em pé e a fazer
frente, é de personagem invulgar.
Seja qual for o desenlace, sou de opinião que José Sócrates
tem futuro na política: pelo seu carácter, mas também e mais ainda pela
qualidade que raros políticos dominam, a de "sentir" o povo. Salazar
era nisso mestre, Adhemar de Barros e Desi Bouterse idem.
Bom conhecedor do povo é-o também aquele banqueiro que no
começo da austeridade disse: "Aguenta, aguenta!"
Haja quem conheça as regras de bem o cavalgar, que é com esses que se fazem interessantes políticos e bons personagens de romance.