terça-feira, fevereiro 28
segunda-feira, fevereiro 27
1968-2014 - 46 anos de viagem
“Chove, faz sol,
chego às duas da tarde, a Mariana abre a porta e Madame recebe-me no
salão, porque com o Outono o visconde foi-se embora e a casa está vazia.
De lição não tratamos, que ela se aborrece depressa, eu
não tenho jeito de professor, a ideia tinha sido do padre que queria
vê-la ocupar-se do dispensário. O visconde aceitara, meio a contragosto
porque não ia com a minha cara, e o padre fizera um retrato em meias-tintas, eu
não frequentava a igreja, corriam uns boatos, «Tout ça je vous le dis en confidence», mas que não havia outro na freguesia, a não ser que Vossa
Excelência queira mandar vir um professor do seminário.
Mas o visconde não gostara da ideia, nem da despesa, e
ela não se queria ver todos os dias com um padre. Daí...
Entontecia-me com tanto falar. De Paris. Do Brasil. Da
Côte... Mundos. Tinha estado em toda a parte, falava de tudo, sabia
tudo, conhecia toda a gente. Aga Khan? Rothschild? Cocteau? Tu cá tu lá.
O Amazonas? De jangada, de canoa. A Índia? De ponta a ponta. Aquele par
de jarras? Picasso.
Eu saía ao escurecer, zonzo, dorido dum lado, esperançado do
outro.
Se ao menos pudesse! Ó Deus! Se ao menos pudesse!”
in Montedor, Quetzal. 2014
domingo, fevereiro 26
O que não tem nome
O
pai, e depois ou antes dele os irmãos, os tios, o padrinho. Mais tarde, quando
já se sabia, perdeu-se a conta, um qualquer acenava e ela obedecia, encostava-se
ao muro, levantava a saia, deixava-os fazer. Depois, à maneira de adeus, alguns
batiam-lhe, chamavam-lhe cadela, cabra, porcalhona. De longe a longe
deixavam-lhe uns tostões, pagavam-lhe um copo na taberna. Um amarrou-lhe as
mãos com uma corda, prendeu-a a uma oliveira e foi buscar o irmão tolinho, que
aos quarenta ainda não conhecera mulher.
Começou criança, e para aquilo, para o que tempo sem fim fizeram com ela, os
verbos da ralé não servem, não chegam, nem de longe podem dar medida da
bestialidade, do desprezo, do sofrimento e do nojo, do vácuo animal, do escuro
de algumas vidas e do seu destino.
O que a ela cabia era desmanchar, esconder, ou parir e enterrar. Nunca ninguém
quis saber quantos terão sido, nem a infeliz guardou memória. Dos sem conta escaparam
dois, criados ao deus-dará com o pão da esmola e aguardente na chupeta, gente
na aparência, bichos no resto.
Ainda rapaz, fraco da cabeça, chupado da miséria e do vinho, ao mais novo levaram-no os ciganos para Castela. Mais ninguém sabe, nem importa se por lá ficou.
O outro, corpo de gigante, cabeleira ruiva, desgrenhada, olhos cinzentos, barba de profeta, há tempos “deu-lhe uma coisa”. Ficou com a perna torta, e como o médico lhe disse que só curava se andasse, anda sem parar. Dia ou noite, chuva ou sol, calor ou frio. Era o “Cabeçudo”, chamam-lhe agora o "Peregrino”.
Os homens passam de largo, as mulheres fingem não ver quando o encontram no caminho ou ao voltar da feira. Diz-se que jurou que pouco lhe importa ir para a cadeia, mas o dia que lhe der na gana vai agarrar uma, e essa não escapa, paga por todos, há-de lhe fazer cem vezes pior do que fizeram à mãe.
sábado, fevereiro 25
O poder do Além (continuação)
O marido serviu-lhe o melão, cortou
a fatia em pedacinhos que ela começou a comer de olhos cerrados, hipnotizada.
– Imaginem vocês que a missão é de tal ordem que ela teve de aprender russo.
Aprendeu em dois meses! Língua dificílima! – e acariciando-lhe a cabeça: – Diz
umas palavrinhas, bem.
– Não. Agora não.
Cardoso explicou, baixando a voz:
– É para não perturbar a sessão, sabem vocês. Vera neste momento é várias
pessoas ao mesmo tempo, está encarnando, e até pode ser que eles se manifestem.
Repara na expressão. Que é, bem? Está querendo alguma coisa? Fala.
– Me dá mais melão – pediu ela numa surpreendente voz de barítono.
– Outra vez?
– É. Me dá essa fatia toda.
Passava da meia-noite quando se despediram, ela sonolenta e inconsciente,
Cardoso insistindo que na primeira oportunidade os visitassem em Ibiquí.
– Lindíssima praia!
– Adeus!
– Adeus!
Ficou a acenar até o táxi desaparecer e quando voltou à sala já tinha desfeito
o nó da gravata, deixou-se cair no sofá com um grande cansaço, desatou os
sapatos. Quem haveria de dizer! Cardoso pregando espiritismo! A vida era um sem-fim
de surpresas, bem sabia, mas francamente!...
A mulher saiu da cozinha, furiosa, atirando com a porta, resmungando que a
empregada voltara a esquecer a água.
– Luísa! Pelo amor de Deus! Você me disse!
– Não, Aniceto! A água do papagaio, eu lhe disse. Mas agora foi a água quente!
Ela esqueceu outra vez de ligar!
Parecia incrível que a dor de cabeça resistisse às aspirinas que tinha tomado.
Quatro ou cinco. Efeito nulo. E a mulher diante dele a enumerar pelos dedos os
esquecimentos da em-
pregada, uma alsaciana trombuda que não podiam despedir, porque um dos seus
predecessores, em maré de generosidade, a tinha nomeado para o quadro com
equivalência de escriturário letra A.
– Eu falo com ela, Luísa. Amanhã antes de sair eu falo. Mas agora me deixa em
paz.
A campainha do telefone fê-los sobressaltar e ela precipitou-se aflita para o
aparelho, no outro lado da sala:
– A esta hora só pode ser mamãe! Aconteceu desgraça! Minha Nossa Senhora!
Era o Cardoso e ela passou-lhe o aparelho:
– Alô! Aniceto?
– É.
– Você desculpa. Têtê queria avisar uma coisa, mas es-
queceu. E pediu para eu telefonar urgente. Ela diz que essas dores de cabeça
que você tem...
– Dores de cabeça?
– Certo. Têtê sentiu em você um grande sofrimento. Diz que é seu guia.
– Meu quê?
– Seu guia espiritual. Ele está fazendo força para encaminhar, para mostrar,
mas pelos jeitos você não compreende.
– E então?
– Têtê diz que a única coisa é você se entregar ao poder do Além.