sexta-feira, janeiro 30

O Hospital

Primeiro fora, depois no rés-do-chão, tinha já dado tantas voltas no hospital que se me fora a paciência e começava a ourar. A amiga, mulher de “peso”, relacionada com uma mirabolante diversidade de gentes, talvez ajudasse a resolver o caso. Telefonei-lhe. Recomendou ela o maqueiro X ou o segurança F. Perguntei-me se tínhamos falado do mesmo assunto ou se eu começava a alucinar.

Retornei ao cubículo. O senhor simpático, de novo a folhear o caderno e separando lentamente as sílabas, repetiu que não havia nada a fazer. Eu não tinha o cartão de seguro europeu, um papelinho que todo o que habita no estrangeiro tem de ter, e sem ele...

Que lhe mostrasse os cartões das seguradoras que me seguram de tudo, e custam os olhos da cara, não o demovia. Era pagar cento e seis euros, mais a taxa de quatro euros e dez, ou não haveria consulta.

Paguei. Chamaram o meu nome. Num cubículo uma senhora simpática disse:

- Entre por ali. É o espanhol.

À minha frente, sem me ter encarado, caminhava um corpo trintão com postura de lutador de feira. Esse corpo afastou a cortina dum cubículo e, sem se voltar, gritou-me jovial:

- Senta, José!

Quase se me foi o fôlego.

- Diga-me uma coisa, você é médico?

Era médico. O que se seguiu fica para quando se fizer a telenovela do hospital.

quarta-feira, janeiro 28

"Go tell it on the mountains"


Em Janeiro de 1972 foi editado em Amsterdam. Vai na décima segunda edição neerlandesa, continua a ser vendido e citado. Trinta e sete anos passados chega à terra onde pertence. Francisco José Viegas, que o trouxe, merece o abraço.

Go tell it on the mountains.

sábado, janeiro 24

Temporal

Foi temporal. Umas catorze horas ininterruptas. Temeroso, porque por estes lados, desde as telhas às pessoas, as árvores e as antenas, as pocilgas, os muros, os galinheiros, tudo é caduco, frágil, há décadas a apodrecer. E com um vento assim, tanta chuva, desequilibram-se os idosos, voam os alpendres, a electricidade falha, cai a noite, volta a escuridão que antigamente se chamava de breu.
Um negrume que assusta, mas ao mesmo tempo chama a lembrança dos medos da infância, os melhores. Os do cinema: tremia-se no escuro, mas depois, quando as luzes se acendiam, sabia-se que tinha sido a brincar.

quinta-feira, janeiro 22

As portas de Atget

Ficar de cama uns dias tem as vantagens que todos conhecemos: ir preguiçosamente passeando pelos canais da TV – a minha antena oferece mais de trezentos, até do Alaska e da Mongólia – andar pela blogosfera, ler livros que há muito esperavam vez.

Tem também alguns contras. Assim estava eu a seguir um programa sobre Eugène Atget (1857-1927), o fotógrafo francês, quando entre os vários peritos surgiu no ecrã uma senhora de meia idade, olhar severo, dedo indicador para cima e para baixo a sublinhar agitadamente a autoridade dos seus dizeres.

A uma série de fotografias de cenas de rua, seguiu-se outra apenas de portas. E a senhora, que por momentos se eclipsara, reapareceu. Ainda mais competente e autoritária.

“Atget – pontificou ela – olhava para as ruas de Paris do mesmo modo e com o mesmo espírito com que, através da lupa, o entomologista examina um insecto!”


Eu a perguntar-me se o calor que em mim aumentava seria da febre.


“As portas! Só um génio! O espectador devia atentar nas portas! Ninguém, antes ou depois de Eugène Atget, tinha fotografado portas com igual e tão sobrehumana intensidade”.


Engoli o comentário e desliguei a televisão.

segunda-feira, janeiro 19

Gripe!

A tempestade que se levantou e dura, seria o menos. Esta barca já tem visto pior. Mas ontem à noite, com as amarras ainda mal presas, a gripe atirou o patrão de rastos.
Por conseguinte, com desculpas a quem vier bater à porta, durante uns dias não haverá escrita.

domingo, janeiro 18

"A Alice costuma avisar"

Entro e vou sentar-me junto dos outros em volta da lareira. Quatro mulheres, dois homens. A conversa interessa-os de tal modo que mal me encaram, e ao “Boas-tardes” respondem com um breve aceno.

......................

- Esse era o Gaspar.

- Ai não era o Júlio?

- Não. Esse era o Gaspar, o que casou com a Celeste. A mais nova.

- Mas então o Júlio..

- O Júlio é o que tinha a loja de panos.

- O que foi para Angola?

- Exactamente.

- O irmão já lá estava.

- O irmão já lá estava, e continua a estar, mas dá-se mal com o clima.

- A minha sobrinha é o contrário. Só gosta de calor. E praia. Agora anda a pensar...

- Mas então o Gaspar não foi o que esteve mal dos pulmões, e depois houve um acidente qualquer....

- Não. O Gaspar teve um cancro. Dizem que se calhar...

- E a Celeste?

- Também lá está. Mas se ele falecer volta logo, porque se dá muito mal com a pretalhada.

- A minha sobrinha também não gosta nada deles. Nem os garotos. A mais novita anda sempre a pedir... Coitadinha! É muito engraçada, aquela menina!... Ajoelha-se diante da mãe, de mãos postas, Ó mamã! Vamos embora! Ó mamã! Vamos embora!... Riem-se muito com ela!

- Quanto valerá o terreno que os Macedos têm ao pé da bomba de gasolina?

- Pelo que fica atrás da farmácia deram quinze mil e quinhentos contos. Agora...

- Quanto é isso em euros? Chega aí um papel.

- Ontem na Urgência encontrei o Sebastião com a mãe. Parece que não escapa. Querem levá-la para o Porto, mas ouvi dizer...

- Também com aquela idade!

- Seiscentos e quarenta mil e...

- Não pode ser! Dá cá o papel.

- A Alice já devia ter chegado. Será por causa do irmão?

- Ela costuma avisar. Mas hoje ainda não telefonou.

.....................

Primeiro amodorrei. Depois, perdido nos meus pensamentos e hipnotizado pelas chamas, devo ter cabeceado. Levantei-me como quem procura qualquer coisa e saí sem ninguém dar conta.

sexta-feira, janeiro 16

Criticar e escrever

“Em vez de ler um livro com a finalidade de o criticar, eu preferiria criticá-lo porque o li, atentando assim na subtil, e contudo profunda, distinção feita por Schopenhauer, entre aqueles que pensam para escrever e os que escrevem porque pensaram.”

Miguel de Unamuno, Ensayos