segunda-feira, março 31

Raposas


De vez em quando a tentação é grande, tanto mais que parecem  inconscientes de como seria fácil assentar-lhes uma bordoada no ego, na vaidade, naquela importância de pechisbeque. Mas no silêncio está a paz. Deixa andar.
Empurram-se na ilusão de que têm de ser sempre os primeiros, os do lugar de honra, que o mundo nada mais faz do que olhar para os mais dez isto, os mais dez aquilo, quem tem estrelas, e quantas, quais, onde.
O que tarde ou nunca aprendem é a esconder a ganância, a inveja: mesmo quando sorriem descaem-lhes os cantos da boca, na tez ganham o amarelo do fígado envenenado.
São moles na espinha e no aperto de mão, caminham de lado com manhas de raposa, a risada que conseguem é um gargarejo que sai meio entupido, sincopado de bílis.
Que o Senhor a todos favoreça.

sexta-feira, março 28

A segunda

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Terá de se arranjar nome para a "hibernação"dos livros. Por curioso acaso, este sai em nova (segunda) edição no país onde nasceu, depois de, mais mês, menos mês, ter "dormido" quarenta anos.

quinta-feira, março 27

Topo de gama


Um governo digno, consciente dos seus deveres, respeita e educa os cidadãos, não os insulta nem alicia com brindes. É falta de vergonha tratá-los como débeis mentais, querer  agradar-lhes com lotarias, acenar-lhes com luxo quando a realidade em que o povo vive é a da miséria.
Infelizmente, e para mal de todos, na nossa desgraçada pátria não o são apenas os carros do burlesco sorteio, topo de gama é também a bacoquice governamental.

segunda-feira, março 24

Martinis e chocolates


Começo da noite. No bar do hotel a animação e o burburinho da semana a findar, gente de várias cores, castas e idiomas. Na mesa, o colorido de dois martinis, as rodelas de laranja e limão equilibradas na borda dos copos, uma pequena, mas elegante, caixa de chocolates, presente da jovem mulher que o veio visitar.
Conversam, mal tocam na bebida, ele dando-se conta de que está na presença de alguém incomum na sensibilidade, na inteligência, no entusiasmo, na sinceridade. Na coragem também. No modo directo.
Por delicadeza não pergunta, mas a diferença de idade deve ir além do meio século. Escuta fascinado e surpreso. Interrompe o menos possível.
Pouco mais terá passado que uma hora. Os copos continuam quase cheios. Agarra a caixa de chocolates e acompanha-a até à saída. Cai uma chuva miudinha, pouco mais do que névoa. Despedem-se. Vê-a atravessar a rua e entrar no táxi.
Absorvido em inesperados pensamentos, volta à mesa, bebe um gole do martini, pousa o copo, repara que continua a segurar a pequena caixa de chocolates.
Nesse momento, recordando o que falaram descobre que ganhou uma amizade, mas perdeu uma personagem. Tão fora do comum que seria indelicado, mesmo vergonhoso, aproveitar aquela franqueza e um dia usá-la num romance.

sábado, março 22

Lançamento de "Portugal, a Flor e a Foice" - na FNAC Chiado

A sabedoria popular é fraca justificação, mas há alguma verdade no provérbio que diz: burro velho não toma andadura.
Mau grado as provas de que é contraproducente, mantenho de nascença a teimosia de querer  ver claro. Mas como a sociedade raro aprecia a clareza, e funciona melhor na sombra, com  meias palavras e meias-tintas, tem-me acontecido ser desmancha-prazeres,  estragar uma ou outra festa, pôr o dedo nesta e naquela ferida. Sofro  entãoas consequências e, sem discutir,  pago o que custa.

Felizmente não havia Inquisição na Holanda quando, em fins de 1975, este livro foi editado. Mas da extrema-esquerda à extrema-direita, se não me enfiaram o sambenito, nem puderam acender a fogueira, um excessivo número de cidadãos, e uma boa parte dos media, arrastaram-me pelas ruas da amargura e, de fascista a traidor, de cego a vendido ao capital, não pouparam os insultos.
Um quarto de século depois comecei a ouvir uma ou outra desculpa, e agora que  na Holanda sai a segunda edição, leio tratar-se de um clássico, oiço arrependimentos aqui e ali.  

Bizarro destino, o de um livro que tem a sua génese uma tarde de Março de 1964, em Paris, no café em que uma dezena ou mais de "figuras gradas da Oposição", como já nesse tempo se intitulavam, começaram uma zaragata de murros e insultos, denúncias de vigarices, de traições e poucas-vergonhas.
Nos três ou quatro comícios da oposição portuguesa a que na altura assisti, repetiam-se essas cenas, abundavam os clichés ideológicos, era muito o vento e pouco o movimento, dividiam-se os presentes em quatro ou cinco facções, cada uma delas mais pura no ideal, pronta a enterrar a faca no interesse e na reputação do camarada.
Recordo que uma noite, depois de um desses comícios, me fui a jantar com Joaquim Novais Teixeira, o brilhante jornalista que já muito me tinha aberto os olhos, e, contando-lhe o que testemunhara, resumiu-me ele o historial da oposição a Salazar, terminando por uma frase que é difícil esquecer: "A oposição democrática portuguesa, só tem razão (…) mais nada."
Estranhei, preocupou-me, e deitei-me a investigar.

Nesse Verão de 64, retornando pela primeira vez a Portugal depois de mais de uma dezena de anos de ausência, tive a boa sorte de conhecer António Alçada Baptista. Desse encontro iria nascer uma amizade que durou até ao seu falecimento.
Inteligente, franco, com a excepcional visão que as suas relações e amizades lhe permitiam ter da sociedade portuguesa, Alçada Baptista foi para mim, ao longo dos anos, uma inestimável fonte de informação, ora partilhando confidências, ora deixando-me entrever o que acontecia nos bastidores da política nacional e da sociedade lisboeta.
A ele devo muito. Devo muito também ao Professor Kenneth Maxwell, da Universidade de Harvard, e ao Professor David Birmingham, das Universidades  de Canterbury e Ohio, ambos excepcionais conhecedores da sociedade e da política portuguesa.
Um dia, ouvindo David Birmingham afirmar que a revolução financeira, social e sexual, que viria a explodir na metrópole com a Revolução dos Cravos, tinha de facto tido o seu início nos anos 60, em Angola e Moçambique, experimentei  uma sensação mais desconcertante do que a de ser operado às cataractas.

Devo ainda um obrigado a um certo número de pessoas, mas para isso terei de explicar um passo da minha biografia.
Durante um período de cerca de dez anos, entre ter deixado de ser funcionário da embaixada do Brasil e aceitar o convite para uma docência na Universidade de Amsterdam, fui homem de negócios.
Ora proveitosos, uma ou outra vez deixando-me, como dizem os brasileiros, em mangas de colete, mas de qualquer forma pondo-me em contacto com alguns homens de poder e influência.
Por simpatia, apreciando o meu genuíno interesse e, numa ou noutra altura, avaliando erradamente as minhas simpatias políticas em função do corte do fato e da qualidade da gravata, proporcionaram-me eles pontos de vista de que eu nem sequer suspeitava, abriram portas que doutro modo me seriam fechadas.
Ouvi então muito que preferiria não ter ouvido; aprendi o que, para o sossego do meu espírito e ilusões do futuro, seria melhor ignorar; em mais de uma ocasião deram-me prova cabal de que, de facto, no teatro da política, e no dos grandes negócios, nunca os actores são o que parecem, nem o enredo é como se vê.

De modo que assisti ao 25 de Abril com a alegria de testemunhar o fim de um pesadelo, mas sem fé nas consequências da mudança, tanto mais que às antigas moscas se juntava uma nova espécie: carente de vergonha e esfomeada, decidida - como Mário Soares afirmaria num discurso em 1985  - "a chupar ao máximo a teta" que a entrada, na então Comunidade Económica Europeia, iria proporcionar.
A teta, de facto, tem sido gulosamente chupada, não por aqueles a quem ela se destinava, e dela precisavam, mas pelos chicos-espertos que batem no peito, jurando amar a pátria e defender o povo.

Pessoalmente, convicto de que o retorno só me traria inimizades e dissabores, optei por ficar onde estava, certo que os meus direitos eram garantidos, a Justiça imparcial, e o meu bem-estar não dependia de amizades, complacências e submissões.
Agradeci os convites que então me fizeram para regressar a Portugal, dando sempre a mesma resposta: as mudanças não me convenciam e, mais família menos família, o país continuava a ser dos poucos que de facto nele mandavam e o tinham como coisa sua.
E assim continua. São esses que cinicamente recomendam que quem não está bem muda-se, ou vai embora.
Os cravos simbolizaram a esperança, mas a foice que os cortou não foi, como por um instante se temeu, ou fingiu temer, a do papão comunista, sim a dos  lobos que a traziam escondida sob o disfarce de cordeiros.

Cabe aqui, a terminar, um agradecimento ao Francisco José Viegas.
Em meados dos anos 80, um seu colega, editor em Lisboa, quis ler o manuscrito, sentenciando depois que talvez dali a dez anos editasse o livro.
Passado esse tempo, quando lhe lembrei a promessa, respondeu ele que nem dali a trinta iria correr o risco.
O Francisco correu o risco de editar um livro incómodo, contracorrente, e isso lhe agradeço. Mas de facto, pelo que lhe estou profundamente grato, é por me ter trazido de volta à  literatura a que pertenço.

quinta-feira, março 20

No ATUAL - EXPRESSO

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Convite

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quarta-feira, março 19

Na TIME OUT



Portugal a
Flor e a Foice

J Rentes de Carvalho

Se alguém disser que os
Descobrimentos foram no mar
uma anarquia de roubos e em
terra uma série de depredações
sanguinárias muita gente achará
que é uma piada de mau gosto. Se
de Vasco da Gama se lembrar que
ordenou o saque de uma nau de
peregrinos de Meca e que a fez
explodir com 300 homens
mulheres e crianças lá dentro
entre outras violências muitos
ficarão incomodados. E se a isto
ainda se acrescentar que os
escritores e intelectuais
portugueses usaram a desculpa
da censura para se demitirem da
realidade política e social do país
quase todos duvidarão que
alguém tenha afirmado tal coisa.
Mas é de afirmações destas e
muitas outras do género que se
vai fazendo o espanto perante a
quantidade de liberdade de
pensamento contida neste livro de
J Rentes de Carvalho. E sendo
estranho que se sinta um valor de
novidade perante um livro escrito
e publicado na Holanda em 1975,
os quase 40 anos de espera
tornam ainda mais frenética a
urgência de correr as páginas.
Não importa estar de acordo ou
contra. Importa que tudo é dito
muito antes de haver frieza para
isso sem olhar por cima do ombro.
Que dá vontade de ler frases em voz
alta perante mesas cheias só para
ver a expressão na cara dos outros.
E que tão depressa dá gargalhar se
um homem vem a correr para
Portugal quando Salazar cai da
cadeira a contar com agitação e
encontra toda a gente na praia,
como o estômago pesa ainda antes
de a frase acabar. E que tem muita
piada, mas não é uma piada o que
tanto vale para este episódio como
para o livro todo.

Catarina Homem Marques

Time Out

terça-feira, março 18

Alcateias

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De um passado remoto, de vez em quando, com saudade, vêm à tona as histórias da carochinha com que me embalaram na meninice, aquelas da grandiosa nação, com reis justos, valentes e magnânimos, rainhas santas, heróis de lenda, povo contente, os séculos polvilhados de milagres.
Saudade deixam também as da adolescência: as da igualdade e do povo soberano, pão para todos, alegria e sorrisos, o sol a brilhar em permanência.

Douglass North, prémio Nobel da Economia em 1993, divide as sociedades em dois tipos. A sociedade aberta e a sociedade fechada. Nesta última uma elite chama a si o poder e os seus membros beneficiam-se mutuamente, atirando de vez em quando uns favores e umas côdeas  ao resto, o suficiente para, se não contente, esse resto se mantenha quieto.
A sociedade aberta distingue-se pela concorrência económica e política, o que permite a proeminência dos talentosos e competentes, tornando-a mais duradoura, eficiente e justa  do que a sociedade fechada.
O que eu, se o conhecesse, perguntaria a Douglass North, era que me explicasse o funcionamento de uma sociedade que não é exactamente fechada e onde não existe uma elite -  isso é  luxo de sociedades civilizadas - mas uma composta de alcateias, ferozes na ganância e cegas de estupidez. E que futuro será razoável esperar duma sociedade desse tipo.