A
sabedoria popular é fraca justificação, mas há alguma verdade no provérbio que
diz: burro velho não toma andadura.
Mau grado
as provas de que é contraproducente, mantenho de nascença a teimosia de querer ver claro. Mas como a sociedade raro aprecia a
clareza, e funciona melhor na sombra, com meias palavras e meias-tintas, tem-me
acontecido ser desmancha-prazeres, estragar uma ou outra festa, pôr o dedo nesta
e naquela ferida. Sofro entãoas consequências
e, sem discutir, pago o que custa.
Felizmente
não havia Inquisição na Holanda quando, em fins de 1975, este livro foi editado.
Mas da extrema-esquerda à extrema-direita, se não me enfiaram o sambenito, nem
puderam acender a fogueira, um excessivo número de cidadãos, e uma boa parte dos
media, arrastaram-me pelas ruas da
amargura e, de fascista a traidor, de cego a vendido ao capital, não pouparam
os insultos.
Um quarto
de século depois comecei a ouvir uma ou outra desculpa, e agora que na Holanda sai a segunda edição, leio tratar-se
de um clássico, oiço arrependimentos aqui e ali.
Bizarro
destino, o de um livro que tem a sua génese uma tarde de Março de 1964, em
Paris, no café em que uma dezena ou mais de "figuras gradas da Oposição",
como já nesse tempo se intitulavam, começaram uma zaragata de murros e
insultos, denúncias de vigarices, de traições e poucas-vergonhas.
Nos três
ou quatro comícios da oposição portuguesa a que na altura assisti, repetiam-se essas
cenas, abundavam os clichés ideológicos, era muito o vento e pouco o movimento,
dividiam-se os presentes em quatro ou cinco facções, cada uma delas mais pura
no ideal, pronta a enterrar a faca no interesse e na reputação do camarada.
Recordo
que uma noite, depois de um desses comícios, me fui a jantar com Joaquim Novais
Teixeira, o brilhante jornalista que já muito me tinha aberto os olhos, e,
contando-lhe o que testemunhara, resumiu-me ele o historial da oposição a
Salazar, terminando por uma frase que é difícil esquecer: "A oposição democrática
portuguesa, só tem razão (…) mais nada."
Estranhei,
preocupou-me, e deitei-me a investigar.
Nesse
Verão de 64, retornando pela primeira vez a Portugal depois de mais de uma
dezena de anos de ausência, tive a boa sorte de conhecer António Alçada
Baptista. Desse encontro iria nascer uma amizade que durou até ao seu
falecimento.
Inteligente,
franco, com a excepcional visão que as suas relações e amizades lhe permitiam
ter da sociedade portuguesa, Alçada Baptista foi para mim, ao longo dos anos,
uma inestimável fonte de informação, ora partilhando confidências, ora deixando-me
entrever o que acontecia nos bastidores da política nacional e da sociedade
lisboeta.
A ele
devo muito. Devo muito também ao Professor Kenneth Maxwell, da Universidade de
Harvard, e ao Professor David Birmingham, das Universidades de Canterbury e Ohio, ambos excepcionais
conhecedores da sociedade e da política portuguesa.
Um dia,
ouvindo David Birmingham afirmar que a revolução financeira, social e sexual,
que viria a explodir na metrópole com a Revolução dos Cravos, tinha de facto
tido o seu início nos anos 60, em Angola e Moçambique, experimentei uma sensação mais desconcertante do que a de
ser operado às cataractas.
Devo
ainda um obrigado a um certo número de pessoas, mas para isso terei de explicar
um passo da minha biografia.
Durante
um período de cerca de dez anos, entre ter deixado de ser funcionário da
embaixada do Brasil e aceitar o convite para uma docência na Universidade de
Amsterdam, fui homem de negócios.
Ora
proveitosos, uma ou outra vez deixando-me, como dizem os brasileiros, em mangas
de colete, mas de qualquer forma pondo-me em contacto com alguns homens de
poder e influência.
Por
simpatia, apreciando o meu genuíno interesse e, numa ou noutra altura, avaliando
erradamente as minhas simpatias políticas em função do corte do fato e da
qualidade da gravata, proporcionaram-me eles pontos de vista de que eu nem
sequer suspeitava, abriram portas que doutro modo me seriam fechadas.
Ouvi então
muito que preferiria não ter ouvido; aprendi o que, para o sossego do meu
espírito e ilusões do futuro, seria melhor ignorar; em mais de uma ocasião
deram-me prova cabal de que, de facto, no teatro da política, e no dos grandes
negócios, nunca os actores são o que parecem, nem o enredo é como se vê.
De modo
que assisti ao 25 de Abril com a alegria de testemunhar o fim de um pesadelo,
mas sem fé nas consequências da mudança, tanto mais que às antigas moscas se
juntava uma nova espécie: carente de vergonha e esfomeada, decidida - como
Mário Soares afirmaria num discurso em 1985
- "a chupar ao máximo a teta" que a entrada, na então
Comunidade Económica Europeia, iria proporcionar.
A teta,
de facto, tem sido gulosamente chupada, não por aqueles a quem ela se destinava,
e dela precisavam, mas pelos chicos-espertos que batem no peito, jurando amar a
pátria e defender o povo.
Pessoalmente,
convicto de que o retorno só me traria inimizades e dissabores, optei por ficar
onde estava, certo que os meus direitos eram garantidos, a Justiça imparcial, e
o meu bem-estar não dependia de amizades, complacências e submissões.
Agradeci
os convites que então me fizeram para regressar a Portugal, dando sempre a mesma
resposta: as mudanças não me convenciam e, mais família menos família, o país
continuava a ser dos poucos que de facto nele mandavam e o tinham como coisa
sua.
E assim continua.
São esses que cinicamente recomendam que quem não está bem muda-se, ou vai
embora.
Os cravos
simbolizaram a esperança, mas a foice que os cortou não foi, como por um instante
se temeu, ou fingiu temer, a do papão comunista, sim a dos lobos que a traziam escondida sob o disfarce
de cordeiros.
Cabe
aqui, a terminar, um agradecimento ao Francisco José Viegas.
Em meados
dos anos 80, um seu colega, editor em Lisboa, quis ler o manuscrito, sentenciando
depois que talvez dali a dez anos editasse o livro.
Passado
esse tempo, quando lhe lembrei a promessa, respondeu ele que nem dali a trinta
iria correr o risco.
O Francisco correu o risco de editar um livro incómodo,
contracorrente, e isso lhe agradeço. Mas de facto, pelo que lhe estou profundamente
grato, é por me ter trazido de volta à literatura a que pertenço.