quarta-feira, março 31
terça-feira, março 30
Cacetada
Masoquismo à parte, pouco há de tão gratificante como receber uma cacetada seguida de um afago. A propósito do post de sexta-feira 26/03, intitulado "Uma bomba, Senhor!", recebi o elegante mail que segue:
Ex.mo Senhor J. Rentes de Carvalho,
Não sou, nunca fui, de achar que "há coisas que não se dizem", nem de crer em patetas superstições sobre a invocação da morte e de certas calamidades. Mas devo dizer-lhe que, embora com plena consciência do que me rodeia e apesar das enormidades que se dizem por aí, há muito tempo que uma afirmação não me chocava tanto. Não se trata de defender o direito à vida dos pulhas e trafulhas, ou por outro lado dos sofredores em geral, que isso cada ser humano vale pelo que vale, seja o meu vizinho do 5º esq. em Lisboa ou uma criança a morrer de fome em África: muito pouco, na imensidão das coisas, sendo certo que uns conseguem valer ainda menos do que os restantes. Do que se trata nem vale a pena explicar-lhe, porque sabe com certeza. Talvez possa catalogar esse seu post sob a etiqueta das "Grandes Imbecilidades". Sem ofensa, que grandes imbecilidades todos proferimos, nem que seja uma vez na vida. Que esta tenha sido a sua e que possa agora seguir caminho, com a qualidade e o interesse a que nos habituou.
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Prezada Senhora,
Veja o que são as coisas. Até à data era eu conhecido por indivíduo que, à semelhança dos mais, uma vez por outra caía a dizer asneiras. Agora vem a senhora alegrar-me com a nova de que fujo ao comum e mostro ter intelecto para debitar uma que merece ser etiquetada entre as "Grandes Imbecilidades". Creia que lho digo com franqueza: sinto-me honrado e surpreso de ter merecido a sua atenção. Além disso, o que também é de agradecer, fez-me sorrir.
Cordialmente,
J. Rentes de Carvalho
PS. O Altíssimo sempre ignorou as minhas preces, mas agora, promovido a uma categoria superior, nunca se sabe.
sexta-feira, março 26
Uma bomba, Senhor!
Foi na passada terça-feira, continua a doer. São sete da manhã e, hábito antigo, oiço as notícias da NOS, a estação oficial da rádio holandesa. Não há desastres de maior nem muito para informar, o programa termina com as previsões da meteorologia e a situação nas estradas.
Distraído, deixo o aparelho ligado, não atento na lengalenga da publicidade, acordo ao ouvir o nome de Portugal. Três economistas e dois políticos discutem a crise económica que afecta a Grécia e o nosso país, e eu, à medida que os oiço, vou encolhendo, vou-me envergonhando, cresce em mim a dor e a raiva da impotência. É a análise detalhada e fria do nosso atraso, da nossa fraqueza e desleixo, da incrível corrupção, da incompetência, da mendicidade que nos rebaixa.
Durante uma longa hora oiço o que preferia não ter ouvido, porque uma coisa é o conhecimento do que somos, bem outra é ouvir de estranhos e sem rodeios a verdade que nos dói.
Num dos meus cadernos de notas guardo um recorte da primeira página do Le Monde de 24 de Outubro de 1967, um pequeno quadro com o título Il suffirait d'une bombe, Seigneur! No texto o jornalista refere que no dia seguinte, na cerimónia da coroação do Xá da Pérsia, à qual assistiria um bom número de ditadores, tiranos e tiranetes, uma única bomba sobre o palácio imperial seria bastante para livrar dessa cáfila os países sofredores.
Assim é que desde terça-feira ando com uma ideia e faço uma prece. A maioria dos pulhas, trafulhas e traficantes que saqueia Portugal, vive em Lisboa. Bastará um terramoto, Senhor! Pagarão também os justos pelos pecadores, mas para um sem-número a morte será um alívio. Para os pobres, os esfomeados, os desempregados, os que sabem que vão perder o emprego, os idosos sem amparo, os que vivem no terror das contas e dos fins de mês, a pobreza envergonhada, tantos mais.
Um terramoto, Senhor!
quinta-feira, março 25
O meu dia
quarta-feira, março 24
Tango
Sou de preguiças e distracções, o que talvez seja uma inconsciente maneira de evitar aqueles confrontos para os quais sei de antemão que me faltam forças. Há também muito que me escapa, há alturas em que me pergunto se existo numa espécie de hibernação, pois quando dela desperto sou lento a compreender e a aceitar a realidade.
As pessoas são outra história. Com elas é menos questão de compreendê-las ou aceitá-las, do que não desacertar muito o passo quando dançamos juntos o tango do fingimento.
terça-feira, março 23
Poupas
O fotógrafo teve um bocado de sorte, mas provavelmente mais paciência e arte do que eu. Aqui em volta de casa há anos que esvoaçam duas. Quando as vejo ou oiço o seu estranho pio corro a preparar a máquina, mas é pena perdida, porque raras vezes pousam. Dão umas voltas e desaparecem atrás do muro onde de certeza fazem ninho. Produzem depois o que devem ser gargalhadas a troçar do meu esforço.
segunda-feira, março 22
Allors e Saddam
"Allors!" Ficou-lhe a alcunha, porque depois de quase meio século de França, e agora de volta, é assim que saúda toda a gente.
Redondo como um batoque, boné de pala, olhos miudinhos, sorriso permanente, mau para os cães, pai de Saddam. Este recebeu a crisma pela sua incrível parecença com o antigo ditador do Iraque, e por também disparar a espingarda com uma só mão, erguendo-a como se vê o ditador fazê-lo em fotografia conhecida.
Pai e filho têm um problema antigo. Enquanto o primeiro se desunhou a trabalhar, Saddam é de opinião que a vida foi feita para o gozo. Puta brasileira ao sábado, marisco ao domingo, a roda dos cafés, futebol na têvê, a bisca com os amigos, noites de espera ao javali, umas idas a Espanha para variar, chegado aos cinquenta nunca teve patrão nem procurou trabalho. Por isso foi grande a surpresa quando constou que andava com ideias de montar um negócio. Falava-se de garagem, restaurante, ou supermercado, mas ao certo só se sabia que viajara para França, que é, como disse Allors, a única terra onde as coisas se fazem à grande.
Soube-se ontem...
Comecei a escrever isto de manhã e, passado o arranque, a história emperrou. Depois veio um sujeito abusar da minha paciência. Mais tarde um outro, cheio de boas maneiras e atenções, demonstrou-me que a mesquinhice pode atingir um refinamento artístico. Um terceiro quis saber porque não lhe vendo um bocado de terreno que não me serve para nada, e ele diz que não presta, mas mesmo assim lhe faria jeito.
No meio tempo voltei umas quantas vezes ao que queria contar. Queria. Já não quero. Pouco ou nada se perde, mas há gente que consegue estragar mais do que a boa disposição alheia.
Ao findar a tarde
domingo, março 21
Notas de viagem (4)
Dorme-se bem em Magaz de Pisuerga e sai-se dali repousado bastante para manter o bom humor quando cinquenta quilómetros mais longe se chega a Valladolid. Foi cidade de agradáveis passeios e excelentes almoços no La Goya, mas tornou-se num tão feio estendal de arquitectura e modernidade que insensivelmente se carrega no acelerador.
Acena-se depois à torre do Arquivo Geral de Simancas, onde se guardam uns sessenta milhões de documentos da História de Espanha. Segue-se Tordesilhas, onde os nossos reis dividiram entre si o mundo, mas que para mim é o lugar onde pela primeira vez encontrei caixas de Multibanco, coisa que na progressiva Holanda só anos depois haveria.
Cem quilómetros até Zamora, cidade que conheci quase aldeã. Atravessado o Douro começam terras onde ora pastam enormes rebanhos, ora aparecem manadas de novilhos, pretos na cor, feios no cariz. Novidade é a abundância de painéis solares, provavelmente colocados ali para experimento.
Finalmente avista-se Fermoselle, por onde há quarenta anos passo e onde só uma vez parei. Em má hora foi, porque meti o carro numa rua tão estreita que a certo ponto teve de vir ajuda para me tirar do aperto. É terra com paisagens que maravilharam Unamuno e maravilham quem tem olhos para o agreste. Desta vez parei.
A barragem de Bemposta, logo adiante, mostrou-se como nunca vi, cheia até às bordas. Quando a atravesso sinto-me já em casa, os últimos quilómetros não contam.