Há ocasiões, como hoje, em que
tenho a impressão de que a actualidade me baralha e asfixia, a ponto que me dá vontade
de fechar os olhos e os ouvidos, desligar a aparelhagem, e em pensamento ir de
volta para onde sempre me sinto bem e em paz, sobre o qual há anos escrevi
assim:
UM
LUGAR ERMO
Como há muito cheguei à idade em que se olha mais para
o passado do que para o futuro, ocorre-me com frequência ter ideia de que sou
transportado para um tempo que foi, e isso de um modo que não se assemelha a
visão ou fenómeno de memória, antes parece ser causado por uma estranha e
intensa vontade de reviver. Esses momentos incluem, por vezes, como que a
realização de desejos insatisfeitos, ou proporcionam ocasiões nunca antes
vividas, e assim, tornado outro, me encontro a semear uma leira ou a lavrar uma
encosta, segurando um arado dos de bico de ferro; vejo-me a espalhar superfosfato
que tiro de sacos de serapilheira com a marca da CUF; vindimo ou apanho
azeitona; estou à espera do comboio na estação de Carviçais, ignorando o que me
trouxe, mas atento a que a garotada não vá mexer no que tenho nos alforjes do
macho que comprei a um cigano de Santiago.
São desatinos de pouca dura, relâmpagos, e não me
preocupam por aí além nem vejo neles sintoma de doença, interpreto-os como uma
forma de remorso, penitência que talvez me caiba por não ser o transmontano que
devesse ter sido, ou castigo por tão intensamente me querer liberto da terra a
que pertenço, de não ter partilhado com ela, e com os que nela tiveram de
ficar, as dores, os sacrifícios, as decepções dos que são esquecidos e a quem é
negado o que lhes cabe na prosperidade da nação.
Porque também não acerto em descobrir quanta parte de
mim é genuinamente e por inteiro transmontana, ou em que medida o meu sentir, o
que vi do mundo, e o que nele tenho passado afecta o meu julgamento, tendo a
refugiar-me na memória, embora ciente de como ela pode ser traiçoeira e capaz
de extremos, tanto na capacidade de alindamento como na distorção da
perspectiva, sobretudo no que toca a misérias passadas e situações dramáticas.
Desse modo, em busca de algum equilíbrio mental e
sentimental, quando me vejo presa do fenómeno acima referido, esses relâmpagos
de vivências fantasiadas, procuro refúgio na paisagem, vou para os montes que
conheço desde a infância, escolhendo aqueles onde desde tempos imemoriais nada
mudou, e que só um titânico emprego de força ou colossal terramoto conseguirá um
dia transformar ou destruir.
Do meu poiso favorito não direi o nome nem revelarei o
local, baste assinalar que é inóspito, temeroso no aspecto e no negrume, com muralhas
rochosas que lembram as de um castelo, mas isso só pela verticalidade, pois que
eu saiba, na província toda não há fortaleza que as tenha daquela tamanho e altura.
Aqui e ali cresce um arbusto, mas no mais é tudo rocha
limpa, desempenada, quase só arestas e ângulos rectos. Mudando de perspectiva dá
a impressão de se ter defronte algo
semelhante a um bizarro órgão de tubos rectilíneos, ou estranhas chaminés de
fábrica. E porque naquele ermo raro se vê outra bicharada, é grande o contraste
que nele fazem os abutres, as águias e as abetardas que lá têm ninho, voando
com uma lentidão ao mesmo tempo assustadora e fascinante, pois em tão grande
isolamento são presença pré-histórica, levam a imaginar que muitos mil anos
atrás já outros terão parado como eu a seguir-lhes o voo, abismados também com
a soturna grandeza do sítio que, pela ausência de formas redondas que o
suavizem ou arvoredo que lhe dê cor, parece ter sido criado com mau intento por
um cataclismo sobrenatural.
Gosto do sítio porque nele encontro silêncio, e uma
paz que não é apenas de alívio do espírito, mas me dá um sentimento de
pertença, continuidade, de ser um elo numa infinda cadeia de existências.
É, sobretudo, desse sentimento de pertença que sinto
falta quando me encontro longe dali, dando-me ideia de ser então outro, alguém com
uma sensibilidade diminuída e os interesses passageiros da vida citadina, toda
feita de exigências, pressas, rituais e obrigações que lhe atestam a
superficialidade. Longe de mim, contudo, querer-me em permanência no ermo que ainda
rapaz por acaso descobri, e a que desde então me afeiçoei, pois se esse é por
excelência lugar de recolhimento, é também um que parece anunciar ameaças bíblicas.
Daí, agora que estou próximo do fim, se irem tornando
cada vez mais espaçadas as minhas visitas, e se para isso argumento com a
natural fraqueza das pernas, creio que seria mais honesto se confessasse que,
como aquele, há lugares que ao mesmo tempo fascinam e assustam, porque obrigam
a confrontos que, sejam elas da vida, da morte, ou da salvação, parecem eliminar
todas as certezas.