quinta-feira, março 31

"Tive casos"


Há boas pessoas que trasbordam de simpatia e, porque são assim, boas e empáticas, não se dão conta que, como em tudo, a sobredose tem efeitos nocivos.
Entre os meus conhecidos um há que, faz tempo, decidiu ser eu a pessoa indicada sobre quem despejar - despejar é o termo adequado - uma enxurrada de memórias, explicando que, embora lhe leve quase trinta anos e tenha visto mais mundo,  talvez pudesse aproveitar certas das suas ocorrências para um romance.
- Tive casos - sussurra ele, confidencial. – Quem me vê não diria, mas tive casos!... E tenho visto muita coisa. As pessoas costumam dizer, a minha vida dava um livro, mas eu, se tivesse jeito e tempo para a escrita… Infelizmente…!
Como quer ser prestável, e porque de certeza o tempo me sobra mas nem sempre estarei inspirado – como o saberá? – insiste em fazer confidências que, na sua ideia, me poderão ajudar a moldar um personagem ou a cerzir uma intriga.
O tempo passa, mas finalmente chega a altura em que, sem rodeios, volta ao assunto:
- Então? Fez alguma coisa com aquele caso da Anita?
- A Anita?
- Não se recorda?
- Desculpe, não me lembro.
- Julguei… E como tinha dito que era interessante…
Acende outro cigarro e, esperançado numa reviravolta, confessa que até já tinha contado à Anita que um dia destes era capaz de se ver num romance.


quarta-feira, março 30

Parecença


Não foi em Bangladesh ou numa rua de Calcutá, mas em Groningen, no norte da Holanda: dias atrás, durante uma excursão escolar, uma garota de doze anos deu à luz um bebé.
Grande surpresa, pois nem ela sabia que estava grávida, nem na família, na escola, ou na vizinhança tinham dado conta do que quer que fosse.
Estranha gente. E eu anoto, digo-me que já nada me toca, mas a verdade é que dentro de mim cresce o medo de um mundo que cada dia se me torna mais alheio, mais irreal, e a vida nele ganha às vezes parecença com os maus programas de televisão.

terça-feira, março 29

Dez florins


Na Holanda, em 1945, devido ao mercado negro e à colossal massa de dinheiro falso que os alemães tinham posto a circular, impunha-se tomar medidas drásticas para restabelecer o equilíbrio financeiro. E assim se tornou célebre o Ministro das Finanças Piet Lieftink (1902-1989) pela decisão de cunhar nova moeda e ordenar que, no prazo de uma semana, fosse depositado e registado todo o "dinheiro velho", o qual seria restituído em "dinheiro novo" depois de verificada a legalidade da sua origem.
Milionário ou sapateiro, general ou lojista, sem distinção de meio, classe ou amizades, nessa semana recebeu cada cidadão dez florins em moeda nova para atender ao necessário e mais urgente.
Nem todos aplaudiram, mas os que tinham razão de queixa foram prudentes, preferindo calar donde lhes tinha vindo o dinheiro.


É interessante ler e ouvir como tanta gente, uns por genuína preocupação, outros por vaidade, muitos interessados apenas em manter sabe Deus que tacho, ou arranjar um, discutem e argumentam sobre a situação do nosso país, como se a palavreia fosse mezinha para resolver o que noutras partes necessita de trabalho, dedicação e consciência social.
Ia dizer que a vida política portuguesa dos passados trinta anos me incomoda e arrelia, mas na verdade enoja. Mais que a dos anos de Salazar, mais que a do breve momento em que houve uma réstia de esperança e as ilusões o não pareciam
Malabarismos, ladroagem, raivas a fingir, as inimizades de comédia, os V. Exa, o ridículo das atitudes, a arrogância, a peneirice… Será que essa gente tem espelho em casa? Não se dará conta, passada a fronteira, dos olhares com que os outros desdenham da fanfarronice, do bling-bling que a corrupção compra, do ar mafioso, do contentamento tolo com que debitam discursos de vento e pose?






domingo, março 27

Explicação


Queixa-se a família, queixam-se vizinhos, amigos, conhecidos e desconhecidos,  de que não temos tempo para convívios, se vemos alguém é sempre de longe a longe e na pressa de visita de médico.
A explicação reza assim: isto aqui na aldeia é vida e casa de dois, sem criada nem assistente da limpeza (técnica doméstica, como já ouvi), quatro gatos e três cães, o que, junto às andanças – o supermercado, a farmácia e o resto ficam a vinte e quatro quilómetros para sul ou para norte – mais o corrente do dia-a-dia, esgota o tempo e poucas abertas deixa para descanso.
Essa era a situação até à passada quarta-feira, a qual, mau grado as poucas folgas e  muitas urgências, avaliada agora nos parece de grande paz.
Quarta-feira, num ritual de anos, almoçámos pois em Moncorvo com a nossa jovem e amiga Isabel, veterinária do município, que a dado momento, como que a justificar o seu ar sombrio,  contou que dias antes uma alma cristã tinha abandonado num silvedo uma ninhada de cachorros recém-nascidos, e outra alma, mais cristã que a anterior, se dera ao cuidado de levá-los para o canil.
Dos sete entre a vida e a morte conseguira ela colocar quatro em casa de gente boa, mas os três restantes teriam de ser abatidos, porque das finanças da Câmara, que mal dão para os necessitados, pouco sobra para cães.
Foi assim que num impulso, sem aguardar a boa disposição que sempre vem com a sobremesa e o café, dissemos à nossa amiga que ficávamos com eles.
Agradeceu ela, mas avisando que, com duas semanas de vida, dariam muito trabalho, sujariam tudo, não sabia se aguentaríamos, se nos aborrecessem podíamos devolvê-los.
É o devolves. Acto contínuo, munidos de biberões e latas de um leite especial, rumámos com eles para casa.
De facto quando saem do ninho borram tudo com a caganeira que primeiro lhes veio da fome e lhes causa agora a fartura. Cinco vezes se lhes dá o biberão, a horas certas, começando às seis da manhã, a última sessão à meia-noite. Depois de cada "refeição" há que limpar-lhes o focinho e o traseiro, pô-los no regaço, massajá-los como faria a mãe, deixar que chupem um dedo para que não sintam em demasia a falta de teta. Chupam, satisfeitos, e mordem com dentes  afiados que nem serrilhas, para logo depois caírem no sono dos bem-aventurados. Uma botija de água quente no ninho faz as vezes de ventre maternal.
Multiplicado por três leva isso quase uma hora. Que depois se multiplica por cinco. Fora o resto. E porque assim é, onde arranjar tempo para amigos, convivências e cortesias?
 (Clique para aumentar)

sábado, março 26

Imagem

Aprendi alguma coisa, mas sei pouco, e por mais que me esforce não consigo realizar aquilo que tantos parecem alcançar com a facilidade e a presteza traduzidas pela expressão "com uma perna às costas".
Há por aí putos, ainda embrulhados nos cueiros da Literatura, que o ouvi-los dissertar sobre a profundeza dos seus personagens e o labirinto dos sentimentos que os empurram, me deixa em estado de prostração. Debalde me pergunto porque fizeram os outros generosamente complexos e me deixaram a mim num estupor de simplicidade que me  atrapalha os dias e torna doentiamente invejoso. Porque eu queria ser assim! Queria saber falar dos amores e da morte, das raivas, dos ciúmes, dos desejos e loucuras naquele tom que é de fingido desprendimento mas, em simultâneo, deixa entrever como lhes são familiares as riquezas da Filosofia e os arcanos da Alma.
Invejo-lhes ainda, e sobretudo, a capacidade que possuem de criar imagem. Usar barba quando é eficiente ser barbudo; trazer a cara rapada, mas com bigode, se é essa a moda; calçar peúgas das que dão na vista aos fotógrafos; citar Agustina e recitar Sophia, trazer à conversa aquela conversa com Jorge de Sena.
Fosse eu como esses muitos, sabido e competente na apresentação, não me teria acontecido o estar ontem sozinho na única e deserta rua da nossa aldeia, à espera do correio, quando chegou um carro donde se apearam dois senhores trajados à cidade:
- Boas-tardes. Onde é que mora o escritor?
Atarantei-me, sorri, fiz os gestos vagos que os estranhos esperam do meu aspecto e idade. Então um deles, bondoso e alto, deitou-me a mão no ombro a confortar o meu visível acanhamento:
- Não se incomode.  Perguntamos no café, que lá com certeza sabem.


sexta-feira, março 25

Fui ao banco

Fui ao banco, não para acertar contas ou fazer depósitos, mas pelo hábito antigo e provinciano de dois dedos de conversa.
Desapareceu o longo balcão, agora são tudo cubículos de vidro fosco e aparelhagens automáticas, televisões no tecto a intercalar avisos - "O seu número: 114" -  com sorrisos e percentagens de poupança. Os clientes andam por ali hesitantes, alheados, a precisar  ajuda, que aquilo é informação eficiente, mas fria e distante na sua precisão. Já não se toma o cafezinho à secretária do funcionário amigo.
Felizmente, mesmo sem cafezinho e entre duas pressas, ainda se conversa. Conversámos dos podres da política, da ladroagem dos mandantes, acenámos que sim, ninguém sabe onde isto irá parar, se fosse como na Grécia já tinha havido bombas e mortos. Deus nos livre!
- Lá na Holanda também há crise?
- Nada que tire o sono ou obrigue a comer menos.
- Julguei… Digo isto porque antigamente vinha muito dinheiro de fora e agora nota-se que os emigrantes o transferem para lá.
Os nossos olhares cruzaram-se no relógio digital e concordámos que estava a chegar a hora do almoço.

Senhores analistas, comentadores, deputados, profetas das soluções para a crise - crise? miséria – economistas e politólogos, estrategas de café, atentem no aviso: não são ratos a abandonar o navio que se afunda, são aqueles que suam no trabalho e fogem com o dinheiro que lhes custou muito a ganhar, pondo-o a salvo da rapinagem.

quarta-feira, março 23

O gigante da LER

É sabedoria antiga, já cantada pelos Ink Spots na saudosa canção Into each life some rain must fall. De facto não há jeito de escapar a que, quando menos se espera, nos envolva a morrinha dos aborrecimentos. Grandes ou pequenos, uns previsíveis, outros que vêm sem se saber donde, alguns até com uma pontinha de indesejado masoquismo.
Acontece assim que quando há coisa de duas semanas vi a capa do último número da LER, onde se menciona que George Steiner considera António Lobo Antunes um gigante, e a ele, não a Saramago, deviam ter atribuído o Nobel, senti tonturas.
Desde que, uns trinta anos passados, li Language and Silence, George Steiner tornou-se para mim autor obrigatório. Com ele aprendi; as suas ideias levaram-me, por vezes a contragosto, a rever as minhas; muitos dos seus estudos dos clássicos tenho-os eu como dos melhores.
De António Lobo Antunes pouco sei, os três romances que li não me entusiasmaram, mas fora de  dúvida é homem notável, escritor muito presente na literatura portuguesa. Chovem-lhe elogios, não lhe escasseiam admiradores e, como só cabe aos literatos de prestígio, com ou sem razão  assanham-se sobre ele os invejosos e os detractores. Todavia, em questões de merecida fama literária pouco conta a opinião dos contemporâneos, a dos críticos literários ainda menos, a dos picuinhas universitários nada coisa nenhuma, pois aí manda o tempo e o afastamento.
Ao afirmar que António Lobo Antunes é um gigante – os séculos o dirão – George Steiner não caiu do pedestal onde merece estar, mas quebrou-se-lhe a redoma onde eu ao longo de todos estes anos o mantive. Porque, sejamos razoáveis, se sabemos, para só citar estes, a que craveira chegam Shakespeare ou Tolstoï, e George Steiner sabe-o como poucos, torna-se dolorosa a ligeireza do seu qualificativo.
E vamos lá ver: quantos gigantes há no milénio da nossa literatura? Posso desfiar nomes grandes, mas gigantes? Chamasse eu gigante a Eça de Queiroz, a quem imensamente admiro, logo ele lá de cima atiraria um cínico "Ó menino, tenha juízo!". Camilo, Camões, Pessoa, Bocage, Gil Vicente, Fernão Lopes, gente de grande valia, mas aquém daquele que em minha opinião é o nosso e único gigante literário: o Padre António Vieira.
Já ouvi chamar gigante a Aquilino Ribeiro, a Raul Brandão, a Júlio Diniz, a Alves Redol (lembram-se dele?), a Ferreira de Castro… Até de José Cardoso Pires, que merecia melhor, quando faleceu li nos jornais ter ele sido "o maior escritor do século vinte".
Mas ao fim e ao cabo tudo isto é passageiro, pouca razão tem o incómodo, alegro-me de ter descoberto um argumento para repor George Steiner em redoma igual à que quebrou.
Ignoro em que circunstâncias decorreu a entrevista com a LER, mas estou quase certo de que, à carinhosa e gentil maneira portuguesa, foi durante almoço ou jantar. De forma que Steiner, criado nas brumas inglesas e professor de Oxford, universidade onde se bebe razoavelmente, mas se come do pior, deve ter resistido mal à quantidade dos pratos e à qualidade dos vinhos com que o festejaram.          

Nostalgia - 7

(Frank Sinatra - 1915-1998)

terça-feira, março 22

Nostalgia - 6

The Ink Spots


segunda-feira, março 21

Nostalgia - 5

Thelonius Sphere Monk (1917-1982)


domingo, março 20

Nostalgia - 4

Gilbert O 'Sullivan - Nothing rymed


sábado, março 19

Nostalgia - 3

The Chordettes

sexta-feira, março 18

Nostalgia - 2

Charles Aznavour (Chanhour Varinag Aznavourian - 1924)

quinta-feira, março 17

Nostalgia - 1

Dalida (Yolanda Christina Gigliotti -1933-1987)


quarta-feira, março 16

Compasso

Foi pura coincidência, mas com o "Adeusinho" de anteontem, e o "Fim" de hoje, dá impressão de que estava escrito nas estrelas. Talvez estivesse. O caso é que se abre um compasso de espera, e não há data fixa nem certeza de quando, ou se, a barca volta à navegação. Depende da capacidade de afastar névoas, tarefa em que este que escreve não costuma brilhar.
Agradecem-se as visitas, isso sim.

Fim

(Clique para aumentar)
Amavam-se. Compreendiam-se. Amavam-se, mas eram desiguais, de tal modo diferentes que parecia milagre a atracção que os prendia.
De cada vez – um passado, experiência má, outro temperamento, medo? – ela pedia num sussurro:
- Espera. Sê paciente comigo.
Até que veio o momento em que o quis, o desejou com a força acumulada dos sonhos, da carne, dos medos esquecidos, da vitória sobre si própria.
Dessa vez, porém – contrariedade, distracção? – ele não se deu conta que a hora tinha chegado, e disse que sim, que compreendia.  E, como sempre, apertou-a carinhosamente nos braços, beijou-lhe a face, afastou-a com brandura.
Instantes depois, o amor que crescera e durara tanto tempo começou a morrer.