quarta-feira, março 30

Onde o que não é parece

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Com uma comunicação global, imediata, acessível  a todos, qualquer bicho careto logo ao acordar se sente genial, emite sentença, deita-a ao mundo.
Está no seu direito, gostosamente aproveita o que lhe é facilitado e, para benefício geral, talvez essa ilusão que se dá tenha efeitos curativos, evite que saia à rua com intenções menos pacíficas ou vá parar ao hospital psiquiátrico.
Não aborrece, não incomoda, solta os seus gritos, mas só esporadicamente damos por ele ao acaso de um clique e, encolhendo os ombros, passamos ao seguinte ou desligamos o computador.
Desagradável e irritante é o que tem estudos – ou parece tê-los – porque também emite sentença, pouco se lhe dando que mistura alhos com bugalhos, e confunde peras com maçãs.
Novinho ainda, fala de cátedra, tem já a atitude e o paleio que prepara altos voos na universidade ou na política, duas instituições de excelência onde o que não é parece.

segunda-feira, março 28

Novidade (sem)

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O visitante chega aqui, nada encontra de novo, vai alegremente bater a porta onde haja novidade ou matéria de interesse.
Fico eu sorumbático e com remorso, porque os mais dos dias de nada adianta o esforço de querer ter ideias originais, relatar casos interessantes ou, simplesmente, bordar trechos de prosa que tenham princípio, meio, fim, e miolo suficiente para interessar.
Será do tempo feio, porque a chuva não pára, ou recordação de momentos menos agradáveis, o caso é que olho para o ecrã do computador, pensando em você, que de um momento para o outro estará do outro lado.
Desta vez encontra a porta aberta, mas também nada mais lhe posso oferecer do que o voto de que o seu dia seja de uma claridade que o meu não tem.

quinta-feira, março 24

Piedade em saldo

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O vizinho sofre? Nem o conhecem ou passam de largo. Mas há desastre, atentado, fotógrafos e televisões, correm em massa, já com ramos de flores,  velinhas acesas, bandeirolas, o giz e o telemóvel, escrevem "Je suis Charlie, Nunca vos esqueceremos, No pasarán, O amor vencerá, Não temos medo…"
Fotografam, fazem selfies para a posteridade. Em Paris cantam a Marselhesa, mas a Brabançonne não serve, nem nunca a ouviram.
Dois dias passados, o que lhes dá tremuras é que demore a haver nova tragédia, uma que os poupe, mas lhes ofereça a ocasião de ir abraçar estranhos, escrever afectos no chão, dizer que testemunharam.

sábado, março 19

Saindo da hibernação

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Bons tempos, quando em 1965 o jovem Francisco Pinto Balsemão me convidou para escrever no Diário Popular.
Porque a Censura era o que se sabe, não havia maneira de publicar o que quer que fosse que cheirasse a crítica do regime. O subterfúgio que encontrei para contornar esse obstáculo foi a de escrever ditirambos sobre os vários aspectos da vida na Holanda, o que os censores devem ter considerado inócuo ou folclórico, pois nunca me cortaram uma palavra.
Elogiava a paisagem e o sistema escolar, os moinhos, a limpeza das ruas, a cortesia dos cidadãos, o funcionamento da burocracia, o civismo, a disciplina, com a esperança de dar aos leitores a oportunidade de fazer comparações. Duvido que tenha alcançado esse fim e, ao contrário do que esperava, pró ou contra nunca os meus artigos mereceram uma das "Cartas à Redacção".
Até ao dia em que, escrevendo sobre os benefícios sociais e o montante dos subsídios de desemprego, anotei que do mesmo modo de quem trabalhava, os desempregados recebiam também o décimo terceiro mês e tinham direito a subsídios de férias.
Caiu o Carmo e a Trindade nas "Cartas à Redacção". Se eu não tinha vergonha em escrever tanta mentira. Se julgava que os portugueses eram burros e iam engolir as minhas patranhas. O que eu merecia era um pontapé no bom sítio, inventando benefícios míticos no estrangeiro para apoucar a terra onde nascera.
Houve então mais do mesmo, e em 1969 achei que chegava, pus fim à   colaboração.
De meados de 1975 até 1978 escrevi para o Expresso. O país tinha mudado, o ambiente era bem outro, grande a esperança, mas porque há em mim demasiada curiosidade e algo que me leva a ir contracorrente, dos cerca de quarenta artigos, um pouco menos de metade não foi publicada, e explicações também não ouvi.
Convida-me agora o Correio da Manhã para escrever uma crónica semanal, e o sentimento que me toma é o de que acordo de uma longa hibernação.

sexta-feira, março 18

A intolerância

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O clube do outro é uma vergonha, o partido em que ele vota um nojo, as ideias que tem certificam-no atrasado mental, até a roupa que veste, o jornal que lê e a sua pronúncia o põem na craveira mais baixa.
Forte é o meu clube, sem mácula o partido a que me honro de pertencer. No resto do que sou, do que penso e faço, só os mal intencionados encontrarão defeito.
É sempre e infelizmente assim nas sociedades em atraso: não há espaço para outro, para as suas ideias, uma maneira diferente de olhar. Só nós merecemos o aplauso, a maneira de ser do outro pede cacetada.

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quinta-feira, março 17

Rabos de palha

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Ouvem-se as escutas de Lula e é quase enternecedor como os diálogos são comezinhos, caseiros, tu cá tu lá. Nada de palavras solenes ou explosões de raiva, mas os queixumes clássicos do acusado inocente, que não compreende como os que o serviam e bajulavam ontem mudaram para o adversário.
De teatro é também o pasmo dos que puseram nos cornos da lua o salvador do povo brasileiro, o que espalhava o maná, e agora se sentem chocados de que a máscara de generoso e sorridente mecenas escondesse um trampolineiro.
Por que demorarão esses sempre tanto tempo a decifrar os sinais? Cautela? Medo que se lhes veja o rabo de palha?